Quem chegava à Praça Floriano, em frente à Câmara dos Vereadores do Rio, ouvia vozes femininas ressoando ao microfone na tarde desta quinta-feira, 14 de março. “Queria ver essa escadaria cheia de mulheres negras, com mais mulheres da periferia”, disse Silvia Mendonça, ativista do Movimento Negro Unificado. De pé, ela segurava um microfone participando de um ato que lembrava exatamente um ano da execução de Marielle Franco, vereadora do PSOL. Em 2018, encontrei Silvia Mendonça no mesmo lugar, em outra circunstância. Ela gemia de pesar, as pernas bambas: “Estou sem chão”, dizia naquele dia, amparada por uma colega ativista mais jovem.
O ato desta quinta em muito se diferenciava daquele feito um dia após a morte de Marielle, no ano passado. Foi mais ruidoso, ainda que tivesse menos gente. E tinha um clima mais leve do que há um ano, quando havia um silêncio fúnebre, reverente. Quando as únicas vozes ouvidas eram as dos choros aflitos de mulheres se amparando mutuamente ou das vozes imperativas de mulheres organizando o ato na marra, no grito. Exigindo da imprensa sedenta por registros que se afastasse para que o corpo de Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes pudessem passar. “Imprensa, pra trás! Imprensa, pra trás!”, elas diziam. Todas negras. Hoje não tinha a mesma quantidade de fotógrafos e cinegrafistas.
O evento teve início com uma roda de mulheres, a maioria negras, lembrando seus encontros com a parlamentar nascida e criada no Complexo da Maré. Mendonça, que trabalhou com Marielle assessorando-a sobre políticas culturais, continuou ao microfone: “Me dói lembrar das vezes que vi Marielle pegar um Uber, sem blindagem, sem qualquer segurança. Não havia cuidado com sua segurança. E a gente conhece as estatísticas de negros mortos. Me doía.”
Outras falas de mulheres negras seguiram a de Mendonça. E todas pareciam fazer um balanço do legado deixado pela vereadora.
“Marielle era uma das poucas estudantes negras de sua época na PUC. Ontem eu entrei no Centro Acadêmico de minha universidade e vi cinco estudantes negros participando da reunião. E não era uma reunião de um coletivo só de negros. Ela nos deixou essa coragem de ocupar os espaços. Olha quanta mulher negra ocupando uma cadeira no Legislativo”, disse uma jovem estudante de direito.
Sentadas na escadaria da Câmara, as pessoas ouviam atentas as vozes que tomavam os microfones, indicando que, ao contrário do que seus algozes poderiam supor, a morte de Marielle havia potencializado a presença dessas mulheres negras na política e na militância pelos direitos humanos.
Há um ano, Buba Aguiar, moradora de favela e ativista do Coletivo Fala Akari fugiu da favela de Acari, na Zona Norte, com medo de represália de policiais do 41º Batalhão da PM. Dias antes de ser executada, Marielle Franco compartilhou uma publicação do coletivo de Aguiar, na qual eles pedem o término das operações policiais em Acari, pois elas tinham deixado um rastro de morte e medo. Como a imprensa associou a morte da vereadora à denúncia, Aguiar e outros três ativistas tiveram que fugir da favela.
Ainda assim, no dia seguinte à morte de Marielle, Buba Aguiar insistiu em se despedir da companheira de ativismo. E contra todas as recomendações de seus colegas ativistas, foi ao ato na Cinelândia. “Naquele momento, além de tristeza, eu tive medo. Na noite em que Marielle morreu e tive que fugir, fiquei acordada o tempo todo. Depois tirei um cochilo e fui. Meus companheiros de luta me pediram para não ir. Mas um sentimento maior me impulsionou. Lembro de ficar confusa ao ver o rosto de Marielle em todos os lugares naquele dia. E como ela tinha uma personalidade muito vivaz, era como se eu ainda não acreditasse na morte dela. Como ainda é difícil de acreditar.”
Buba Aguiar esteve no ato desta quinta-feira, mas ficou por pouco tempo. “Não aguentei. Passou um filme na minha cabeça. Comecei a me sentir mal e fui embora”, disse Aguiar. “O importante é que Marielle se tornou o rosto de uma bandeira de lutas que são travadas há séculos, mas não está mais aqui com a gente fisicamente.”A fala da ativista exprime o sentimento na manifestação desta tarde. A tristeza pela perda, mas o reconhecimento de que a morte da vereadora não silenciou as lutas sociais.
Por volta das 15h30, a deputada federal Talíria Petrone chegou à Praça Floriano. Tinha uma expressão pesarosa no rosto, mas nem de longe lembrava a face consternada que imprimia no ato-velório da colega. Petrone, que à época era vereadora em Niterói pelo PSOL, e, assim como a colega Marielle, enfrentou a milícia. Na manifestação do dia 15 de março de 2018, Petrone mal conseguia andar. Era amparada por amigos e chorava copiosamente. Hoje, estava mais calma. Todos estavam mais calmos, mas não menos triste.
A polícia que, tradicionalmente, se aproxima das manifestações no Centro, mais uma vez esteve ausente. No ano passado, não havia qualquer presença de policiais próximo ao ato. Os manifestantes bradavam: “Não acabou, tem que acabar. Eu quero o fim da Polícia Militar.” Havia uma forte suspeita entre os manifestantes de que policiais pudessem estar envolvidos na execução da vereadora. Há quatro dias, dois acusados pela morte foram presos. Ambos egressos da PM e envolvidos com a milícia.
Depois que a roda de mulheres acabou, começaram algumas apresentações artísticas de teatro, música e dança num palco. Com o forte calor, as barraquinhas aproveitavam para vender cervejas e refrigerantes. O clima foi ficando cada vez mais ameno.
Afastada do palco, estava a estudante de pedagogia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Unirio, Jéssica Lene, 20 anos, moradora da favela de Manguinhos. Vestia uma camisa preta com o nome de Marielle. Perguntei sobre sua lembrança do dia do velório de Marielle e Anderson há um ano. “Revolta, indignação. E a certeza de que não era um assassinato qualquer como algumas pessoas especularam. Era uma execução. E hoje eu vejo que estava certa. Todos nós tínhamos certeza de que era uma execução. Lembro de abraçar muito e reconfortar minhas irmãs negras. Tínhamos perdido uma referência forte.”
E sobre o que estava achando do ato de hoje? “Acho que não deveria ter esse clima de comício. Tinha que ter mais cara de luto”, disse Lene apontando para o palco onde havia uma apresentação musical. “Não tem nada para comemorar. Apesar da prisão dos assassinos, ainda há muitas perguntas sem respostas. Quem mandou matar Marielle?”