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Um idiota perigoso incomoda muita gente

Memórias e reflexões sobre o tempo em que voltamos a empilhar cadáveres por causa de um vírus

Eduardo Escorel | 08 jul 2020_08h32
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Quem chamou Donald Trump e seu imitador brasileiro de “idiotas perigosos” foi o historiador John M. Barry, autor de A Grande Gripe, em entrevista ao Globo (2/7). Publicado nos Estados Unidos em 2004, o livro é considerado a obra definitiva sobre a pandemia do vírus influenza, conhecida como gripe espanhola, responsável pela morte de milhões de pessoas no mundo entre 1918 e 1919.

Quando chegou ao Brasil, em setembro de 1918, o vírus causou mais de 35 mil mortes, cerca de 12.700 no Rio de Janeiro e mais de 5 mil em São Paulo. Uma das vítimas na pauliceia foi minha avó paterna, Maria Carmelita de Oliveira Escorel, de solteira, Escorel Rodrigues de Moraes após casar com Floriano Rodrigues de Moraes. Quando meu avô Floriano adoeceu, Carmelita cuidou do marido, foi contaminada e morreu na terceira e última onda da gripe espanhola iniciada em fevereiro de 1919. Deixou dois filhos, Flávio, de cinco anos, e Lauro, meu pai, com um ano e meio. Tendo se recuperado, Floriano criou o filho mais velho e deixou o menor aos cuidados de Titiá, Adalgisa Dulce de Oliveira Escorel, de 26 anos, solteira e irmã mais moça de Carmelita.

Meu pai não lembrava de sua mãe, nem da cena que Titiá nos descreveria décadas depois – cadáveres empilhados em carroças passando pelas ruas. Creio que ele mencionou a mãe e a causa de sua morte poucas vezes durante a vida. Por isso, talvez, nós crescemos, minhas irmãs, meu irmão e eu, sem atribuir o peso devido ao fato de a pandemia de 1918 e 1919 ter tornado nosso pai órfão de mãe antes de completar 2 anos. Para mim, ao menos, o que essa morte representou para ele pessoalmente só adquiriu sua verdadeira configuração trágica ao longo destes meses de isolamento social, passados em casa, junto com Ana Luisa, minha mulher. A tragédia humanitária ocorrida há um século e o evento individual que afetou nosso pai ganharam nova dimensão aos meus olhos à medida que o número de mortos, vítimas da Covid-19, foi aumentando no Brasil, chegou a mais de 64 mil pessoas em 5 de julho e continua a crescer.

Lauro e Flavio Escorel Rodrigues de Moraes, 1919/Foto: Arquivo familiar.

 

No início deste ano, a repetição em alguns países do descaso com que foram recebidas as primeiras notícias sobre a pandemia de 1918, agravou a responsabilidade de governantes “idiotas perigosos” pela calamidade humanitária mundial que estamos atravessando. Além dos dois mencionados por Barry, no Brasil há governadores e prefeitos que vêm tomando medidas precipitadas e sem nexo de retomada de atividades variadas que põem em risco milhares de vidas. Isso sem esquecer os desmiolados do Baixo Leblon, das praias cariocas e de outros lugares, que ignoram medidas mínimas de proteção, como usar máscara e evitar aglomerações, e ficam reunidos à noite em calçadas repletas, na frente de bares, como se não houvesse amanhã. Se um idiota perigoso incomoda muita gente, dois idiotas perigosos incomodam muita mais, e assim por diante.

Em entrevista dada a David Remnick, editor da revista The New Yorker, publicada em 25 de março, John M. Barry afirma que o coronavírus veio para ficar. A expectativa do autor de A Grande Gripe em relação aos Estados Unidos não é que ocorra o famigerado “achatamento da curva”, mas “que isso vá e venha” em “várias ondas”. Ele recomenda esperar “altos e baixos… em ao menos vários ciclos”. “A verdadeira chave do sucesso”, segundo Barry, “é cumprir as regras. Se as pessoas não obedecerem, estaremos metidos em uma encrenca danada.” As palavras do historiador se aplicam ao fracasso do Brasil diante da pandemia e à incerteza frente ao que nos aguarda no futuro próximo – o isolamento social foi e continua a ser insuficiente, além de o uso de máscara ser amplamente desconsiderado, não apenas pelo principal idiota perigoso, mas também por desgovernantes estaduais e municipais, sem esquecer os demais que voltaram a frequentar locais públicos desprotegidos. Ao serem retomadas algumas atividades comerciais e de lazer, assim como serviços e práticas coletivas, o deplorável espetáculo a que assistimos faz lembrar a declaração, comentada por Barry, do Surgeon General dos Estados Unidos (cargo equivalente ao nosso ministro da Saúde), em 1918, frente aos primeiros sinais da gripe espanhola: “‘Se precauções adequadas forem tomadas, não haverá nenhuma razão para ficar alarmado’… mas não fizeram nada e mentiram para o público.”

Macaquear a postura inicial de Trump e minimizar os efeitos da pandemia tem sido a atitude do nosso “idiota perigoso” de plantão. Ele insiste em ser omisso, mentir, dar mau exemplo e, há dias, vetou trechos da lei aprovada pelo Congresso, na tentativa de sabotar o uso obrigatório de máscara.  

Anuncia-se agora a reabertura dos cinemas em São Paulo, se até 27 de julho a cidade completar quatro semanas na fase 3 (Amarela) do planejamento para a retomada das atividades econômicas, chamado de Plano SP. A previsão anterior do governo estadual era só abrir os cinemas na fase 5 (Azul), quando a pandemia estivesse controlada. Acompanha a mudança de plano recomendação para pessoas com mais de 60 anos, e as pertencentes a grupos de risco, de permanecerem isoladas, em casa, o que dá bem a medida do perigo de atender ao interesse dos exibidores, antecipando a volta do funcionamento das salas. As perdas econômicas do setor são inegáveis, mas parece arriscado antecipar a reabertura de cinemas para antes de haver redução drástica do número diário de mortes e contaminados. Por enquanto, não é o que vem ocorrendo.

A hipótese de as salas de cinema voltarem a operar será outro exemplo da nossa tendência congênita de imitar os Estados Unidos, sem levar na devida conta as diferenças entre a situação de lá e daqui? A reabertura das salas está prevista para a próxima semana em algumas cidades americanas. Artigo de Tom Brueggemann, publicado no site IndieWire, em 29 de junho, afirma que “o problema subjacente é que as salas de cinema podem ser particularmente inadequadas no mundo pós-COVID-19”. Para Brueggemann, “os exibidores estão diante de um terrível dilema: por maiores que sejam as precauções, elas nunca poderão restaurar o luxo inerente ao negócio. Cinemas enfrentam um conjunto único de desafios. A maioria dos pontos de venda requer apenas visitas curtas e, embora possa ser incômodo, a garantia de que os clientes ficarão espalhados, o que é possível. Restaurantes e bares enfrentam desafios maiores, mas muitos se adaptaram. Cinemas são projetados para reunir grande número de pessoas sentadas próximas umas das outras em ambientes fechados, com ar condicionado, por períodos de pelo menos duas horas”. [grifo meu]

O artigo examina o variado leque de questões suscitadas pela expectativa de as salas de cinema serem reabertas e termina com uma indagação sombria: “E se ir ao cinema antes de haver uma vacina significar que a diversão acabou? Tradicionalmente, muitos espectadores adoram se aglomerar para ver os principais lançamentos no fim de semana de estreia, buscando especificamente o prazer de assistir a filmes cujos ingressos esgotaram. Como isso funcionará com o distanciamento social, as máscaras faciais e as tensões que elas trazem? O medo de alguém tossir destruirá o enlevo do entretenimento? Cinemas são feitos para escapar, mas essa é uma proposta difícil se parecerem mais uma armadilha mortal.”

É provável que cinemas em shoppings, no Brasil, procurem se adequar ao padrão que prevalecer nos Estados Unidos. Isso deverá fortalecer a vertente do cinema brasileiro que disputa espaço nesse mercado, com maior ou menor sucesso. O que vai se tornando cada vez mais nítida é a dificuldade adicional que a produção audiovisual brasileira de cunho autoral terá que vencer na pós-pandemia. Acossada por um desgoverno federal que tenta asfixiá-la desde que tomou posse, os impasses crônicos desse setor da atividade vão se tornando cada vez mais difíceis de desenredar.

A fábula política em curso no país aguarda o teor dos depoimentos de Fabrício Queiroz, preso em Bangu 8; o que Frederick Wassef ainda terá a dizer sobre a morte do miliciano Adriano da Nóbrega, abatido em confronto com policiais militares na Bahia; e a resposta à incômoda pergunta que não quer calar: “cadê a Márcia?”, personagem central, foragida no momento. Um dos protagonistas dessa intriga vem se mantendo recolhido e até posou de presidente da República ao sobrevoar por trinta minutos, no sábado (4/7), Tijucas e Governador Celso Ramos, dois dos mais de 165 municípios de Santa Catarina atingidos pelo ciclone-bomba. A falta de verossimilhança dos lances dessa trama põe em cheque a experiência dos melhores roteiristas de plantão. Haverá algum dia um filme à altura desse enredo? Realizá-lo será outro desafio para os cineastas brasileiros.

Cronistas políticos do Globo, ao comentarem manobras e invencionices dos personagens envolvidos nessa fábula, escrevem que “é possível conviver mais dois anos e meio com ele [o idiota perigoso], desde que se contenha ou seja contido” (Ascânio Seleme); e que “não existe possibilidade de as Forças Armadas apoiarem uma aventura ditatorial” (Merval Pereira). Será mesmo? O preço a pagar por essa convivência que a Constituição determina não será alto demais, em termos de vidas perdidas, pessoas contaminadas, recessão econômica e desgoverno em geral? Quanto às Forças Armadas, elas não fazem mais do que sua obrigação ao se manterem nos limites de suas atribuições constitucionais, com o agravante, porém, que militares da reserva e da ativa são o sustentáculo decisivo do desgoverno chefiado por um “idiota perigoso”.

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Até amanhã, 9 de julho, a mostra online de dez Clássicos do Cinema Japonês prossegue, promovida pela Fundação Clóvis Salgado. Através do site da Fundação, estão disponíveis três longas de Yasujiro Ozu, três de Kenji Mizoguchi, três de Mikio Naruse (1905-1969) e um de Kinuyo Tanaka (1909-1977).

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A campanha pública de apoio aos funcionários e prestadores de serviço da Cinemateca Brasileira (CB) atingiu pouco mais de 60% da meta proposta, graças às contribuições de 1049 benfeitores. Resultado na verdade decepcionante face à gravidade do risco que o acervo audiovisual da instituição está correndo.

Permanece ativa a página Cinemateca Acesa, iniciativa do “movimento que pretende articular novas ideias, produções e processos de criação em defesa da CB e de seus funcionários”, em defesa do Cinema Brasileiro e da CB, patrimônio da nossa sociedade. Em https://www.facebook.com/CinematecaAcesa/ estão sendo disponibilizados “tesouros” do acervo da CB que correm o risco de serem perdidos, e há informação atualizada sobre o andamento dessa ameaça. Na semana passada, foram exibidos A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, e Garrincha, alegria do povo (1962), de Joaquim Pedro de Andrade.

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Estreou na Netflix, em 30 de junho, Homemade, série de curtas-metragens realizados em isolamento social, devido à Covid-19. Os filmes foram realizados por dezessete diretores, entre eles Kristen Stewart, Maggie Gyllenhaal, Ladj Ly, Ana Lily Amirpour e Paolo Sorrentino. Até o momento, os filmes vistos foram decepcionantes, em especial o de Paolo Sorrentino, que chega a ser é aberrante. Honrosa exceção é o episódio 4 do volume 1, de Pablo Larraín.

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J’ai huit ans (1961), de Yann Le Masson e Olga Poliakoff; e Algérie, année zéro (1962), de Marceline Loridan-Ivens e Jean-Pierre Sergent, destacam-se entre as novidades disponíveis na plataforma de streaming gratuita da Cinemateca Francesa.

 

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