As recentes tempestades em São Paulo geraram intenso debate sobre o conflito entre distribuição de energia elétrica e arborização urbana. Ventos fortes derrubaram árvores que, em contato com fios aéreos suspensos sobre postes, provocaram uma interrupção no fornecimento de energia que chegou a uma semana em algumas regiões da cidade, com prejuízos vultosos para moradores, empresas e comércios.
Seguiu-se, então, uma troca de acusações, com a prefeitura responsabilizando a concessionária Enel por não enterrar os fios e esta acusando a administração pública de não fazer a devida conservação das árvores, que devem ser podadas para evitar que os galhos interfiram na fiação ou retiradas quando estiverem mortas. O conflito de fato existe, e muitas vezes a própria companhia realiza as podas, mas sem a devida articulação com o município – o que, com frequência, acaba por comprometer a arborização.
Os benefícios do enterramento da fiação elétrica vão muito além da eliminação de interferências entre árvores e cabos. Abrangem também a prevenção de acidentes de eletrocussão e a proteção das redes contra ligações clandestinas, que favorecem a ocupação irregular do solo e resultam em tarifas mais elevadas para os usuários regulares; a melhora da paisagem urbana, com reflexos na estética da cidade e, por força disso, na qualidade de vida dos moradores; e a redução de obstáculos nas calçadas, beneficiando em especial as pessoas com mobilidade reduzida.
Algumas cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, aprovaram leis determinando às concessionárias o enterramento da fiação de eletricidade, telefonia e tevê a cabo, sob pena de multa. A jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal), no entanto, é no sentido de que os municípios não podem impor obrigações ou cobrar taxas de serviços públicos federais, como fornecimento de energia elétrica e telecomunicações. Para superar esse impasse, foram apresentados no Congresso Nacional projetos de lei para financiar o enterramento das redes por meio de consórcios federativos e de aumento de tarifas, assim como o estabelecimento de prazos por lei federal.
O enterramento efetivo dos fios exige uma fonte de financiamento definida, que pode ser o orçamento público, uma contribuição específica ou a tarifa paga pelos usuários. Nos primeiros casos, outras políticas públicas terão que ser preteridas ou o contribuinte será onerado; no último, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) terá que aumentar a tarifa paga pelos consumidores.
Dados os prejuízos significativos dos eventos recentemente ocorridos na capital paulista e a provável repetição desses fenômenos climáticos, o enterramento dos fios é uma necessidade. Seu custo não deve, no entanto, recair exclusivamente sobre o setor elétrico, o que resultaria em aumento das tarifas.
O problema é complexo e exige uma solução mais abrangente. Os postes não sustentam apenas fios da rede elétrica, mas também cabos de telecomunicação. Existem, inclusive, resoluções conjuntas das agências reguladoras federais prevendo o compartilhamento de infraestruturas de energia para serviços de telecomunicações. Portanto, é necessário coordenar o enterramento dos fios elétricos com empresas de tevê a cabo, internet e telefonia fixa, para que esses serviços não sejam interrompidos. Essas companhias – e os respectivos usuários – não deveriam também assumir parte desse ônus financeiro?
Ocorre que o subsolo já contém redes de infraestrutura de outros serviços públicos e privados, como distribuição de água, esgotamento sanitário, drenagem de águas pluviais, gás canalizado e metrô. Além disso, as edificações têm fundações, porões e eventualmente pavimentos subterrâneos. E fenômenos naturais, como lençóis freáticos, aquíferos, reservas minerais e raízes de árvores, têm que ser mapeados e levados em consideração.
A conclusão óbvia é que a solução do problema não deve ser setorial, e sim, transversal. A exemplo do que ocorre na superfície, onde as praças, ruas e edificações são reguladas por planos diretores e leis de uso e de ocupação do solo, também o subsolo deve ser mapeado, planejado e gerenciado de maneira integrada. Do contrário, corre-se o risco de acidentes e interferência de uma rede sobre a outra. Foi o que ocorreu no episódio do rompimento de uma rede de esgotamento da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) durante escavações para ampliação do Metrô, também em São Paulo, da explosão de galerias da Light causadas por vazamentos de gás natural no Rio de Janeiro, ou do afundamento do solo em decorrência do desabamento de minas de sal-gema desativadas, em Maceió.
O ordenamento do subsolo é um desafio que está sendo enfrentado em diversos países e organismos internacionais, especialmente no contexto da busca por cidades e infraestruturas inteligentes, que exigem a expansão e a modernização de redes de telecomunicações com e sem fio, como fibra óptica, 5G e Wi-Fi.
No Reino Unido, foi criado o National Underground Asset Register (Registro Nacional de Ativos no Subsolo), que consiste em uma plataforma cartográfica unificada com todas as infraestruturas subterrâneas do país. Na Austrália, a organização privada Before You Dig (Antes de Escavar) atua como balcão único de consulta aos detentores de redes subterrâneas, para orientar novos projetos, com vistas à prevenção de acidentes. O Fórum Econômico Mundial apoia a política de Dig Once (Escavação Única), visando à coordenação entre todos os provedores de infraestrutura na fase de construção de novos empreendimentos.
Um passo além da cartografia e da coordenação entre os agentes que atuam no subsolo é a criação de infraestruturas de uso compartilhado, gerenciadas por um agente distinto dos provedores de serviços. Esse agente pode ser um órgão público ou um concessionário. Deve construir e gerenciar galerias compartilhadas, nas quais cada rede é implantada em uma posição preestabelecida e segura. As galerias contam com monitoramento contínuo por sensores e câmeras e propiciam um acesso facilitado para os técnicos responsáveis pela operação e manutenção de cada rede.
O compartilhamento deve abranger também o mobiliário urbano, como postes ou totens, que podem servir de suporte para câmeras de segurança, sensores de temperatura, ruído e poluição, lâmpadas de iluminação pública, antenas de Wi-Fi e terminais de informação e comunicação com o público, por exemplo.
Em Cingapura, o Common Services Tunnels Act (Lei sobre Túneis de Serviços Comuns) estabelece uma estrutura legal para a criação de galerias compartilhadas. A International Standards Organization – ISO (Organização Internacional de Normas Técnicas) está em vias de publicar a norma técnica ISO 37175, sobre túneis de utilidade, que padronizará os elementos básicos, a operação, a manutenção e o aperfeiçoamento contínuo desse tipo de infraestrutura. Uma vez editada a norma internacional, a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) poderá internalizá-la.
As vantagens dos túneis de utilidade incluem a redução de poços de manutenção, realocação única e menos escavação e reparo, em comparação com dutos e cabos separados para cada serviço. Quando bem mapeados, permitem acesso rápido a todas as utilidades sem a necessidade de cavar trincheiras de acesso ou recorrer a mapas confusos e muitas vezes imprecisos.
Para além das galerias compartilhadas, o subsolo oferece possibilidades mais amplas para o urbanismo, incluindo vias de transporte rodoviário e ferroviário, armazenamento de carga ou mesmo usos tipicamente urbanos, como comércio e residência em locais com temperaturas extremas ou temerosos de ataques militares. Destacam-se no urbanismo subterrâneo cidades como Montreal, Helsinki e a citada Cingapura, com extensas estruturas. Existe, inclusive, uma Associação Internacional de Túneis e Espaço Subterrâneo, que promove o urbanismo subterrâneo, com atividades como mineração, arquitetura, transporte, armazenamento de mercadorias, instalações industriais e militares, além de energia, saneamento e telecomunicações.
No Brasil, a harmonização entre redes de infraestrutura e paisagem urbana é discutida há anos, tendo sido incluída na Carta Brasileira para Cidades Inteligentes, de 2019, a recomendação 2.6.1. de se “instituir como serviço público independente a gestão do subsolo, do solo, do mobiliário urbano e do espaço aéreo, com vistas à sua ocupação compartilhada pelas empresas e órgãos responsáveis pelos serviços públicos e privados que demandam sua utilização”.
Um modelo como esse poderia ser financiado por aluguéis pagos pelas concessionárias ao agente gerenciador e por contribuição de melhoria cobrada dos proprietários beneficiados pelo enterramento, que terão seus imóveis valorizados. A Associação Brasileira de Secretarias de Finanças das Capitais discute a criação por emenda constitucional de um modelo semelhante, em que uma contribuição de melhoria especial seria cobrada de concessionárias e proprietários de imóveis beneficiados, para financiar a instalação de infraestrutura local destinada à organização e enterramento de equipamentos relacionados à prestação de serviços que se utilizem de áreas em logradouros ou bens públicos.
A melhor maneira de instituir um sistema dessa natureza seria sua previsão em lei federal, que reconheça autoridade dos municípios e regiões metropolitanas sobre seu subsolo, autorize-os a instalar, diretamente ou por concessão, galerias e postes de uso compartilhado, e obrigue todos os prestadores de serviços a transpor suas redes para essas galerias. O gerenciador das estruturas compartilhadas poderia assumir a responsabilidade pela implantação e conservação das calçadas, do sistema viário e das ciclovias, de forma a minimizar os transtornos causados aos cidadãos pela abertura e fechamento de buracos.
O enfrentamento de eventos climáticos extremos exige providências drásticas. O subsolo é um espaço precioso para a solução do problema, que precisa ser aproveitado com planejamento e gestão integrada. O desafio é grande, porém o resultado compensa: cidades mais resilientes, arborizadas, acessíveis e agradáveis.