O título do documentário de Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr – Quem Tem Medo? –, comentado aqui em abril, continua atual, mesmo tratando de casos de censura feita a artistas e performers a partir de 2017, proibições fortalecidas, no ano seguinte, com a eleição do candidato de extrema direita à Presidência da República.
Após a exibição em abril na mostra O Estado das Coisas do 27º Festival É Tudo Verdade, é oportuna a estreia amanhã (4/8) de Quem Tem Medo? no circuito comercial de salas. Servirá, inclusive, para nos lembrar das agressões feitas à cultura nos últimos anos e das ameaças que persistem, mesmo havendo, neste momento, a expectativa de uma mudança drástica de rumo do governo federal a partir de 2023. Mas, ainda assim, temos medo.
Em 1940, terceiro ano da ditadura do Estado Novo, o poeta nos advertiu:
Provisoriamente não cantaremos o amor,/
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos./
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,/
não cantaremos o ódio porque esse não existe,/
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,/
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,/
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,/
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,/
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,/
depois morreremos de medo/
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drummond de Andrade, “Congresso Internacional do Medo”, em Sentimento do Mundo.
Três anos depois, ainda em plena ditadura do Estado Novo, Antonio Candido, com 25 anos na época, escreveu haver
para todos nós um problema sério… Este problema é o do medo. Do medo que nos toma a todos de estarmos sendo inferiores à nossa tarefa; ou de não conseguirmos fazer algo definitivamente útil para o nosso tempo, como, de um modo ou de outro, fizeram os rapazes de Vinte (…) Eu não posso bem dizer que tenha [um critério para afastar esse medo], mas confesso que esse combate a todas as formas de Reação, que eu apenas sugeri, nos ajudaria muito a ficar livres dele. E a podermos dormir em paz.
“Plataforma da Nova Geração”, O Estado de S. Paulo (republicado em 1945 no livro homônimo).
Drummond retomou o tema no último ano da ditadura do Estado Novo, em longo poema dedicado a Candido e resumido aqui:
Em verdade temos medo./ Nascemos escuro./ As existências são poucas:/ Carteiro, ditador, soldado./ Nosso destino, incompleto./
E fomos educados para o medo./ Cheiramos flores de medo./
Vestimos panos de medo./ De medo, vermelhos rios/ vadeamos./…
Assim nos criam burgueses,/ Nosso caminho: traçado./ Por que morrer em conjunto?/ E se todos nós vivêssemos?/…
Faremos casas de medo,/ duros tijolos de medo,/ medrosos caules, repuxos,/ ruas só de medo e calma./
E com asas de prudência,/ com resplendores covardes,/ atingiremos o cimo/ de nossa cauta subida./
O medo, com sua física,/ tanto produz: carcereiros,/edifícios, escritores,/
este poema; outras vidas./
Tenhamos o maior pavor,/ Os mais velhos compreendem./ O medo cristalizou-os./ Estátuas sábias, adeus./
Adeus: vamos para a frente,/ recuando de olhos acesos./ Nossos filhos tão felizes…/ Fiéis herdeiros do medo,/
eles povoam a cidade./ Depois da cidade, o mundo./ Depois do mundo, as estrelas,/ dançando o baile do medo.
“O medo”, em A Rosa do Povo, 1945
Apesar do favoritismo de Luiz Inácio Lula da Silva vir se mantendo nas pesquisas de opinião e das mais de 500 mil adesões à “Carta pela Democracia”, bons motivos para ter alguma esperança, só não entende a causa do medo que paira no ar quem é responsável, conivente ou adepto dos desmandos do morador provisório do Palácio da Alvorada, das ações violentas estimuladas por ele, de seus desatinos verbais e das reiteradas ameaças à democracia que continua a fazer. É preciso ser crédulo para imaginar que uma vez Lula sendo eleito em outubro não haverá tentativas de contestar o resultado e de impedir à força sua posse na Presidência da República.
Temos, pois, razões de sobra para temer o que pode ocorrer nos próximos meses.
A “Carta pela Democracia” é clara quanto às razões para ter medo: “…Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições. Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.”
E ainda: “…clamamos às brasileiras e aos brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições. No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições. Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: estado democrático de direito sempre!”
Manifestações de ansiedade e medo afloram por toda parte. A propósito do lançamento de Aos Nossos Filhos (2019), de Maria de Medeiros, Marieta Severo declarou: “Todos os dias penso nisso, e vou contando”, referindo-se à eleição presidencial e ao fim do atual governo. “Nunca pensei que fosse passar por isso outra vez na minha vida.” E uma leitora comenta: “A angústia e ansiedade dessa grande atriz e mulher é nossa também. Tenho medo, muito medo desse senhor Bolsonaro, ele é capaz de tudo pra não sair do poder. Não tá fácil. Observem que a filharada dele tá muito calada, o que vem por aí é uma incógnita.” (Ana Cora Lima, Folha de S.Paulo, 28.jul.2022)
O documentário Quem Tem Medo? é um exemplo, entre outros, de que, apesar de circunstâncias adversas, alguns cineastas brasileiros, homens e mulheres, vêm tentando não ser “inferiores à nossa tarefa”, fazendo “algo definitivamente útil para o nosso tempo”, conforme Antonio Candido escreveu. Outros esforços recentes nesse sentido são Amigo Secreto, de Maria Augusta Ramos, Gyuri, de Mariana Lacerda, e a série de cinco episódios República dos Juízes, dirigida por Eugenio Puppo, que estreia 24 de agosto no canal Cinebrasil TV com acesso por streaming na Claro tv+. Além desses, haverá alguns outros. Afinal, essa vertente de filmes não é a única à altura da “nossa tarefa” – os caminhos da criação se multiplicam desde que possam ser percorridos com liberdade, talento e os meios financeiros necessários.
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Destaque (III)
“Contudo, ao menos pelos últimos trinta anos, as ameaças à democracia evoluíram. Hoje, a democracia morre gradualmente com mais frequência à medida em que, uma a uma, as restrições institucionais, legais e políticas feitas a líderes autoritários vão sendo eliminadas. Isso aconteceu – ou está acontecendo – na Rússia, Venezuela, Hungria, Filipinas, Polônia, Nicarágua, Índia, Turquia e Estados Unidos.” Protect Democracy, The Authoritarian Playbook, June 2022. Jennifer Dresden et al. Disponível em protectdemocracy.org/project/playbook-media-primer.
No caso do Brasil, não estar entre os países citados pode ser atribuído, em parte, à sua irrelevância no contexto internacional. Além disso, ao fato de, ao menos por enquanto, haver entre nós reações inibidoras do proclamado autoritarismo da extrema direita e da preparação em curso de um golpe.