Num dia de setembro de 1986, um grupo de representantes dos partidos chilenos de esquerda se encontrou na antiga estação ferroviária de Mapocho, no coração de Santiago, para debater a oposição ao regime de Augusto Pinochet. No meio de homens e mulheres de ternos e cabelos engomados, surgiu no palanque uma figura andrógina, usando salto alto, com a foice e o martelo pintados em metade do rosto. Ela se apresentou como Pedro, chegou perto do microfone e proclamou um manifesto: “Fico puto com a injustiça, e desconfio dessa dança democrática. Mas não venha me falar de proletariado, porque ser bicha e pobre é pior.” Até o fim daquela década, o manifesto intitulado “Falo pela minha diferença” faria de sua autora, Pedro Lemebel, uma figura conhecida – e, em certo grau, rejeitada – nos meios literário e artístico do Chile. Ela escreveu centenas de crônicas a partir de então, algumas das quais foram reunidas na antologia Poco hombre, da Zahar – seu primeiro livro traduzido para o português.
Nascida em 1952 num dos bairros mais pobres de Santiago, Lemebel estudou forjaria de metais e fabricação de móveis antes de atuar brevemente como professora de artes. Por revelar sua homossexualidade, foi demitida dos dois colégios onde trabalhava. Pela mesma razão, não foi aceita pela esquerda chilena. Criada numa casa sem livros, começou a escrever em oficinas organizadas pela Sociedade de Escritores Chilenos, as quais frequentava, diria mais tarde, porque havia biscoitos e café. “Lá também tinha vinho e homens bonitos.” Mais do que ambição literária, ela foi motivada “pelo desejo dessas outras coisas, pelas fomes de todos os tipos”.
Embora eu tenha familiaridade com obras e autores queer brasileiros e estrangeiros, Lemebel nunca passou nem perto do meu radar, até a publicação de Poco hombre no Brasil, em maio deste ano. Delirei diante de textos que posicionam a autora no lado oposto de establishments de todos os tipos: ela repeliu a ditadura de Pinochet, mas também a resistência marxista que condenava a homossexualidade; apontou o equívoco do consenso neoliberal por trás do milagre econômico do Chile, e culpou ativistas LGBT por estarem transformando o sofrimento e as vidas de pessoas queer em mercadorias. Numa crônica, lamenta que um grupo de amigas “bichas-loucas” tenha desaparecido misteriosamente depois do golpe. Em outro trecho do livro que beira a historiografia, ensina que, enquanto moleques ricos dançavam Michael Jackson e assistiam a filmes gringos, havia um outro Chile juvenil onde “ser ripongo era bacana, usar lã peruana era ser dissidente e decente”.
Lemebel morreu em 2015. Geralmente se definia como “travesti”, ou uma “bicha louca”. A causa de sua morte foi um câncer na laringe, o que a impediu de falar em seus últimos dias de vida. Gosto de pensar que a circulação de Poco hombre pode ajudar a realizar um desejo que a escritora exprimiu naquele manifesto lido em setembro de 1986: “Há tantos moleques que vão nascer com uma asinha quebrada. E eu quero que eles voem, companheiro.”
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