“Calamitosus est animus futuri anxius” – traduzindo, “Infeliz é o espírito ansioso pelo futuro”. A máxima é de Sêneca (4 a.C-65 d.C), monumento da filosofia latina. Seu foco era a importância de saber viver o presente; no entanto, é inegável que a ansiedade se vincula ao futuro, ao porvir. No Brasil, como se sabe, o futuro costuma durar muito tempo – daí o estado de ansiosa infelicidade diante das urgências que assolam o país em tantos e diversos aspectos da vida social.
Embora seja uma das nações mais urbanizadas do mundo, o Brasil maltrata a parcela maior dos habitantes das urbes, formada exatamente pelos menos favorecidos. Assim, nem é preciso sublinhar o quanto de ansiedade existe em relação ao futuro a ser moldado pelos prefeitos e vereadores que se elegeram ou foram reconduzidos aos respectivos postos nas eleições de novembro. Empossados em janeiro, esses gestores locais se encontram diante de uma agenda emergencial, que a pandemia só escancarou: a viabilização de cidades de fato inclusivas social e ambientalmente, atentas aos territórios de maior vulnerabilidade, onde se aglomeram milhões de pessoas sem moradia digna, saneamento básico, equipamentos de lazer ou áreas verdes, para ficar em uma lista mínima de carências.
O enfrentamento desses problemas – de modo propositivo, consistente, incremental e contínuo, baseado em políticas públicas integradas e territorializadas, com as respectivas ações estratégicas, sistêmicas e locais – é o incontornável desafio que se apresenta às novas gestões. Ele exige modelos de governança nos quais a valorização da democracia, da ética, da ciência e da transparência, e a disposição em servir à sociedade realizando o bem comum – a razão primeira da arte da política – embasem as propostas e, em especial, as ações, planejadas com rigor.
Naturalmente, não há que se imaginar soluções padronizadas para diferentes regiões – é preciso levar em conta, antes de tudo, as especificidades locais. Apesar disso, a experiência acumulada, nacional e internacionalmente, permite apontar algumas medidas que merecem consideração por parte dos gestores recém-empossados.
Muitos problemas das cidades exigem soluções em escala mais ampla que o território do município. As regiões metropolitanas, onde se encontra a maior parte da população brasileira, apresentam um tecido urbano conurbado, podendo ser caracterizadas como uma única cidade que se estende por vários municípios. A Constituição do país permite nesses casos que as funções públicas de interesse comum, como saneamento básico, mobilidade e controle da expansão urbana, sejam integradas por uma estrutura de governança interfederativa, da qual participem o estado e os municípios. Tal estrutura já existe, todavia é preciso que seja valorizada – com a devida cobrança nessa direção.
Tanto as obras públicas como a regulação urbanística afetam diretamente o valor dos imóveis. Nos países desenvolvidos, essa valorização é apropriada, em grande medida, pelo próprio poder público, ou por empresas responsáveis pela execução das obras. No Brasil, os instrumentos urbanísticos estão disponíveis na legislação, mas ainda não são empregados pela maior parte dos municípios. Há lugares em que sequer o IPTU é cobrado! Existe muita desinformação sobre esse tema, que muitos entendem como um mero aumento da carga tributária. Nada mais enganoso. Trata-se, essencialmente, de corrigir injustiças, fazendo com que os beneficiários do urbanismo contribuam para o seu financiamento.
Nunca é demais lembrar que os conglomerados humanos que culminaram no que conhecemos como “cidade” ganharam corpo devido aos benefícios decorrentes da proximidade entre pessoas e atividades. Desde o deslocamento dos indivíduos e de cargas até o fornecimento de água, energia e telecomunicações, quanto maior a densidade de ocupação do espaço, menor o custo de provisão dos serviços e de manutenção da infraestrutura. Entretanto, na maior parte das cidades brasileiras está em curso um processo de crescimento horizontal excessivo, que produz bairros de baixíssima densidade, ao mesmo tempo em que as áreas centrais e históricas se degradam e são abandonadas. A reversão desse processo é imperativa, se não quisermos viver apenas entre condomínios fechados e shopping centers, conectados por avenidas muradas, deixando a maior parte da população vulnerável socialmente condenada a morar nas periferias distantes, sem infraestrutura urbana adequada.
Conter o espraiamento significa promover a cidade compacta e multifuncional, na qual as pessoas se deslocam predominantemente a pé e têm prazer em caminhar. Para tanto, é preciso remover uma série de obstáculos, existentes em muitos planos diretores, que impedem a criação de bairros densos e diversos – coeficientes de aproveitamento baixos, afastamentos obrigatórios, usos segregados e exigências de garagens, para ficar em alguns deles. Além disso, é preciso penalizar tributariamente os lotes ociosos, incentivar o parcelamento das glebas contíguas à cidade e recusar a aprovação de loteamentos e condomínios longínquos.
Se as áreas formais têm problemas a serem equacionados, as informais apresentam desafios ainda maiores. A urbanização irregular ocorre muitas vezes em locais impróprios – como áreas de risco, sujeitas a alagamentos, ou de proteção ambiental, que estavam vazias justamente porque não deveriam ser ocupadas. Não há soluções pré-estabelecidas que possam ser aplicadas a todos esses assentamentos. Em algumas situações, a regularização e urbanização é o caminho a seguir; noutras, a melhor saída é a realocação dos moradores para conjuntos habitacionais, seguida da destinação da área para usos que impeçam sua reocupação.
O quadro atual exige que se promova a qualificação urbana de nossas cidades, com planos diretores robustos e transformadores, como o de São Paulo, e a implantação de Planos de Ação Climática contundentes, a exemplo dos que foram adotados em Recife, Salvador e Fortaleza. Nos territórios de maior vulnerabilidade, devem ser aportados planos de ação local à luz das lições de Medellín e de seu urbanismo social. O modelo, exitoso por lá de modo amplo e contínuo desde 2003, ganhou mais recentemente sua tradução brasileira em Recife, através dos programas Compaz e Mais Vida nos Morros, ambos de 2016, e em São Paulo, a partir de novas modelagens de governança compartilhada com a Prefeitura e a sociedade civil propostas pelo Pacto pelas Cidades Justas, lançado em 2020.
Paralelamente aos planos de urbanização dos territórios de vulnerabilidade social, é preciso evitar a continuidade do processo de ocupação irregular do solo, que está na origem de tantos problemas das cidades. Há tecnologias poderosas de monitoramento, como sensoriamento remoto e drones, que podem ser empregadas a custos acessíveis. A proteção das redes de energia elétrica e abastecimento de água contra ligações clandestinas também é uma medida importante, pois é o acesso a esses serviços que leva ao adensamento dessas áreas.
A transformação digital constitui hoje uma realidade sentida por todos e pode revolucionar o dia a dia nas urbes. As chamadas “cidades inteligentes” produzem informações em tempo real e as disponibilizam para a população, permitindo um monitoramento transparente da vida urbana e a tomada de decisões com base em indicadores de desempenho. Os municípios poderiam usar esses instrumentos para dar um salto tecnológico e digitalizar sua gestão, de forma a eliminar burocracias e aumentar a eficiência na prestação de serviços públicos.
Há, como se vê, muito a fazer – ninguém disse que seria fácil. Contudo, sem uma bússola de princípios que leve em conta o diagnóstico das necessidades, aferições precisas e uma gestão voltada para o coletivo não será possível enfrentar os maiores desafios das cidades com o propósito de transformá-las. A atenção das políticas públicas locais deve estar, portanto, na eleição de prioridades urgentes e realizáveis – e em seu respectivo acompanhamento. Só dessa maneira, cidades, a “maior invenção” da nossa espécie, “motores da inovação desde a época em que Platão e Sócrates discutiam em um mercado ateniense” , para usar as palavras de Edward Glaeser, autor do clássico O Triunfo da Cidade (Bei, 2016, 2ª ed), poderão se tornar ambientes verdadeiramente humanos.