Ler a biografia de um autor estreante cuja história de vida não é pública poderia ser pouco convidativo. No entanto, o efeito em O que é meu é justamente o contrário. Filho de um caminhoneiro e uma dona de casa, o professor universitário José Henrique Bortoluci teve a sua infância e adolescência no interior paulista preenchidas pela ausência física – e depois com os causos das viagens – do pai caminhoneiro. Foram muitos dias, semanas e meses sem a presença paterna nas mais variadas datas marcantes, fosse uma reunião de escola ou um aniversário, numa era distante em que não havia e-mail nem WhatsApp. As ausências tinham um impacto tremendo enquanto o filho crescia imerso em livros – ele venceu olimpíadas escolares, ingressou na faculdade e fez doutorado pela Universidade de Michigan.
Na vida adulta, Bortoluci quis investigar a sua própria história e preencher os vazios causados pelo ofício do pai. À medida que gravava as entrevistas com seu pai, feitas na mesma casa onde nasceu e cresceu em Jaú, o autor percebeu que mergulhar na vida de um caminhoneiro com cinco décadas de trabalho era também conhecer a história de um Brasil que se desenvolveu percorrendo as estradas de rodagem. Da boleia, seu Didi testemunhou o impacto da ditadura militar com sua promessa de progresso econômico, a construção da Transamazônica, a destruição de biomas naturais – momentos históricos vivenciados imerso em sua própria solidão. O livro O que é meu fala também de uma categoria que, nos últimos tempos, aderiu em peso ao bolsonarismo. No meio da série de entrevistas feitas com o pai, veio a descoberta do câncer de Didi. Exames, tratamento e avanço da doença pavimentaram uma estrada de carinho que aproximou pai e filho.
Bortoluci escreve muito bem e aborda de forma natural e bem amarrada um dos temas mais pulsantes do momento, a trânsfuga de classe, quando alguém vindo de um ambiente pobre ascende pela educação. Mas o autor não olha apenas para dentro de si – a história do acadêmico e do caminhoneiro é também uma história do país. “Palavras são estradas. É com elas que conectamos os pontos entre o presente e um passado que não podemos mais acessar”, escreveu ele. As suas palavras, assim como o caminhão de seu pai, rodaram bastante.
O que é meu já foi vendido para mais de dez editoras no exterior e, no Brasil, um mês depois do lançamento em abril deste ano, já foi para a sua primeira reimpressão. Eu mesmo perdi a conta de quantos exemplares comprei para presentear meus amigos. O sucesso fez o autor tomar a decisão de ser escritor em tempo integral, deixando de lecionar na Fundação Getúlio Vargas. Em novembro, tendo testemunhado o sucesso de seu filho, Didi morreu de câncer, fazendo com isso sua última viagem.
Leia um trecho do livro, publicado na edição da piauí de fevereiro de 2023: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/as-estradas-de-jose/
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