O aparecimento das manifestações de rua contra o governo Bolsonaro reforçou a crença da bolsonarização das polícias militares. Não são poucos os que acreditam que a PM escolheu um lado, o da extrema direita contra os defensores da democracia e antifascistas. Na nossa visão, essa hipótese está fundamentalmente errada e levanta suposições enganosas sobre o que está ocorrendo nas instituições policiais e militares do país nesse momento. Em última instância, trata-se de um alerta sobre um problema que na prática não existe. Não há pesquisas recentes sobre o que pensam os 480 mil policiais militares na ativa e 270 mil inativos, e, portanto, não temos boas estimativas sobre o grau de adesão ao bolsonarismo entre policiais.
Em artigo publicado na piauí, Renato Sérgio de Lima e Glauco Carvalho, ainda que separem os policiais individualmente das corporações militares em si, afirmam que há um ambiente “quase hegemônico de politização e adesão ideológica dos policiais militares às bandeiras defendidas por Jair Bolsonaro”, porque adotam o presidente como “ídolo, mártir, um modelo a ser seguido (cegamente)”. Quem trabalha com o tema e se relaciona cotidianamente com policiais percebe que houve e há forte entusiasmo no meio policial com as ideias e a figura do presidente. Mas há grande diferença entre veicular mensagens conspiratórias e tomar as ruas de arma em punho para defender um presidente ensandecido numa aventura autoritária contra os outros poderes e contra as leis do país. No final do dia, o golpe só acontece se o tal “dispositivo militar” bolsonarista mostrar alguma capacidade real de ação.
O histórico das greves e atos de desobediência nos últimos vinte anos ajuda a entender o que está acontecendo. De 1997 a 2017 ocorreram 715 greves policiais no Brasil, sendo que apenas 52 (7,27%) envolveram as polícias militares, segundo análise a partir de dados coletados pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). A PM paulista foi a única das 56 polícias estaduais e federais que não teve nenhum movimento grevista nesse período. Todas essas 715 greves envolveram pautas salariais, e não questões políticas ou conspirações ideológicas contra o poder constituído. Os que compartilham a ideia de que existe uma “possibilidade real de que [as PMs] venham a conduzir os próximos passos da crise política”, como querem Lima e Carvalho, cometem um erro básico de avaliação sobre o engajamento dos policiais fardados às suas instituições, caracterizadas pela hierarquia e disciplina, apesar das difíceis condições de trabalho e dos baixos salários.
A PM constitui um agrupamento com sólidos valores e uma efetiva cultura organizacional, o que gera forte pressão de conformidade. Essa pressão não decorre apenas de disciplina mais rigorosa, mas de virtudes institucionais atraentes para seus membros, como identidade social diferenciada, poder perante à sociedade, emprego estável, companheirismo, oportunidade de carreira e sistema de apoio, como hospitais de qualidade para o PM e sua família.
Pesquisa realizada em 2014 pelo Insper com 430 policiais militares atuantes no patrulhamento em São Paulo constatou que existe elevado nível de identificação dos policiais com a instituição. O grau de identificação do policial com sua organização torna mais efetivo seu desempenho e é um relevante fator de proteção contra os efeitos nocivos do estresse no trabalho, além de estar associado com a motivação para lidar com dificuldades desafiadoras e à prontidão para fazer sacrifícios por sua organização. Torna-os também, com frequência, reativos a críticas. Os vínculos corporativos que moldam a identidade do policial militar funcionam, assim, como uma vacina contra a insubordinação.
Muitos policiais militares podem compartilhar ou ter simpatia pelas ideias e crenças de Bolsonaro, mas é improvável que essa afeição no plano dos valores se converta em mobilização, de fato, a favor desse líder disfuncional. Instituições produzem incentivos que regulam o comportamento de seus quadros, e a ação coletiva resultante é consideravelmente mais complexa do que a mera afeição manifestada no plano dos valores. Ao adotar um comportamento incompatível com as regras de suas instituições, os policiais teriam que renunciar a benefícios concretos que são infinitamente mais vantajosos que essa malfeita convocação para a segunda e ainda mais improvável batalha do Itararé.
Mas se policiais militares já afrontaram seus comandantes quando fizeram greves, não poderiam desafiar as autoridades locais em apoio ao presidente? Os dados mostram que menos de 10% das greves policiais em vinte anos envolveram as polícias militares – policiais civis e federais foram muito mais insubordinados nesse período. Isso reflete, na nossa visão, a existência de freios institucionais e um grau mais elevado de identificação dos policiais militares com suas instituições. Entre o capitão e os governadores, o soldado da PM estará muito mais preocupado com as ordens do capitão de sua companhia do que com o distante e intempestivo capitão presidente.
Há, no entanto, uma ameaça muito mais concreta rondando a sociedade brasileira do que a eventual adesão dos policiais militares aos destemperos presidenciais. O problema não envolve as PMs irem para as ruas em apoio a causas antidemocráticas, mas não irem por alguma insatisfação grave e imediata com suas condições de trabalho. Há possibilidade, num futuro próximo, de governos estaduais afetados pela crise fiscal da pandemia reduzirem salários dos policiais. Isso obviamente pode afetar o trabalho de policiamento e prevenção em quase todos os estados. Daí passaremos a outro estágio de crise: da crise política, econômica e de saúde, iremos à crise da violência criminal.
A adoção de operação padrão pela PM no Rio Grande do Sul em 2015, quando os salários foram parcelados devido a crise fiscal do estado, tornaram Porto Alegre uma das capitais mais violentas do país. Pernambuco, em 2014, deu aumento salarial para a Polícia Militar em percentuais mais elevados para os oficiais do que aos praças (soldados, cabos, sargentos) que, desmotivados, reduziram seu ímpeto nas ruas, e os homicídios cresceram 75% em dois anos. Por trás de todas as principais crises envolvendo as polícias militares do país, há, em primeiro lugar, uma liderança política civil que age de forma displicente diante dos movimentos reivindicatórios. Valeram mais o cálculo ladino e o apreço à irresponsabilidade fiscal dos políticos do que a força dos movimentos organizados dos policiais. É claro que movimentos por salários podem ser politizados, como ocorreu no começo do ano no Ceará, mas os desdobramentos desse tipo de movimento estão longe de configurar uma tendência capaz de arrastar as principais polícias militares do país.
As mudanças nos sistemas de comunicação certamente transformaram os métodos de mobilização política em escala global, mas uma estrutura de comunicação descentralizada e descoordenada não será suficiente para colocar em marcha a força golpista que a imaginação dos especialistas propaga. Alguém precisa convocar assembleias e organizar ações violentas contra a população civil e os comandantes atuais. As lideranças desse presumido movimento das PMs precisam mostrar a cara e comprovar que dispõem de alguma estrutura de mobilização e coordenação. Nada disso pode ser observado na crise atual. O radicalismo dos policiais nos grupos de WhatsApp e Twitter não é sinônimo de que haverá uma ação de amplitude nacional.
Resta ainda considerar um argumento na polêmica sobre a mobilização golpista das Polícias Militares: o papel das Forças Armadas. Para que o movimento tenha sucesso em escala nacional, é preciso fazer uso, pela primeira vez, do dispositivo da Constituição de 1988 que define as polícias militares e bombeiros militares como forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro.
Efetivamente, as Forças Armadas aceitaram, ao longo dos últimos trinta anos, assumir um protagonismo maior na segurança pública, mas não o fizeram evocando o artigo 144, § 6º, ou o decreto-lei nº 667, de 1969, que regulamenta a subordinação das Polícias Militares ao Exército Brasileiro. Ao contrário, o país desenvolveu uma legislação específica que permitiu às Forças Armadas desempenhar novas missões na segurança pública, nomeadamente por meio da lei complementar nº 97, de 1999, que dispõe sobre as operações de Garantia da Lei e da Ordem. Essa tem sido a base para a atuação das Forças Armadas nos estados no atual período democrático. Atuação que não gerou nenhum conflito com o arranjo federativo que a Constituição protege. Para quem ainda não se convenceu, vale lembrar que mesmo com o poder de uma intervenção federal, o Exército não nomeou um general para comandar a PM do Rio de Janeiro em 2018 – apesar do seu quadro caótico de corrupção e descontrole.
Nesse clima nocivo de polarização é difícil apelar ao bom senso, mas vale tentar. Refletir sobre a história recente de nossas instituições e conflitos políticos pode nos ajudar a depurar as hipóteses sobre a crise atual. As Forças Armadas do Brasil não demonstraram nenhuma vocação golpista desde que se engajaram na redemocratização do país há quase quarenta anos. Só uma notável displicência intelectual pode levar alguém a imaginar que esse compromisso estratégico com a nação, que formou gerações de militares, será rompido em nome de um improvável presidente da República e de movimentos “paramilitares” que fazem danças coreografadas e cosplay de Ku Klux Klan.