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Valores permanentes, circunstâncias efêmeras

Cinema, apesar de tudo, mas em que condições?

Eduardo Escorel | 20 maio 2020_06h08
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Sexta-feira, 15 de maio. O dia começou com a notícia de que chegamos no Brasil a 13.993 mortos, havendo 202.918 pessoas contagiadas, enquanto em todo o mundo havia 303 mil vítimas da Covid-19. Frente a esses números, o ex-capitão sem compostura, inquilino provisório do Palácio da Alvorada, continuava exercendo a Presidência da República como se ele fosse um monarca absoluto. Nesse sentido, os relatos sobre a famigerada reunião ministerial de 22 de abril, somados à transcrição parcial de intervenções feitas nesse dia pelo chefe do Poder Executivo, são eloquentes, como constatamos pela principal manchete da primeira página do Globo de sexta-feira: “Bolsonaro reclamou da PF e do serviço de inteligência: ‘Vou interferir.’” E, ademais, diante da frase reproduzida logo abaixo: “‘Não vou esperar foder minha família toda de sacanagem, ou amigo meu’, disse” – confesso minha surpresa ao ver o termo chulo reproduzido no jornal com destaque sem os asteriscos habituais. 

Certo alento chegou de manhã por e-mail, vindo do Rijksmuseum, em Amsterdã – a maior e mais detalhada fotografia de A Ronda Noturna, tela a óleo de Rembrandt, pintada entre 1639 e 1642, estava disponível online, permitindo aproximações de pinceladas e partículas de pigmentos. Em meio à tragédia diária e ao acúmulo de atos irresponsáveis do ex-capitão, o acesso franqueado ao famoso quadro realça o contraste entre valores permanentes e circunstâncias efêmeras, como as forjadas a partir de janeiro de 2019 pelo atual desgoverno do país.

Por volta de meio-dia, soubemos que Nelson Teich, ministro da Saúde, havia pedido demissão antes de completar um mês no cargo. Atestado adicional de incompetência do governo federal e, ainda mais grave, da perspectiva de que ele tentará impor medidas criminosas contrárias à manutenção do isolamento social e favoráveis a um remédio cuja eficácia para tratar a Covid-19 não foi comprovada e pode ter graves efeitos colaterais.

Os sinais de que o governo federal está em ruínas são inequívocos. Não é possível prever, porém, se implodirá ou, pelo contrário, se prevalecerá a vocação autoritária do destemperado ex-capitão, instituindo-se um regime ditatorial com apoio das Forças Armadas.

A complacência geral com o irresponsável presidente se tornou intolerável, e é preciso cobrar da Câmara de Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal que façam a sua obrigação, preservando a democracia, por um lado, e, de outro, criando condições para um novo governo ser instaurado.

Em meio à calamidade humanitária e à crise política, questões relacionadas ao cinema ficam relegadas a segundo plano, como é natural. Nem por isso devem ser ignoradas. Enquanto a Agência Nacional do Cinema – Ancine parece navegar em águas tranquilas de um país sem pandemia e com uma pujante indústria cinematográfica, algumas iniciativas meritórias procuram manter o setor profissional ativo, enquanto o público espectador com acesso à vasta oferta de títulos a domicílio, através das plataformas de streaming, satisfaz sem dificuldade sua necessidade de entretenimento.

No âmbito da Ancine, será o caso de colocar em Consulta Pública agora as propostas de revisão da Instrução Normativa nº 125/15 formuladas pela Diretoria Colegiada? A matéria é de importância vital para a atividade, e os termos da reformulação proposta parecem positivos. A dúvida é quanto à viabilidade, em meio à pandemia, de profissionais do setor participarem do processo e darem contribuição efetiva aos novos procedimentos que irão regular a realização de projetos audiovisuais produzidos com recursos públicos.

Em seu artigo de sexta-feira no Valor Econômico, Amir Labaki trata de documentaristas – Dawn Porter, Andrei Konchalovsky e a brasileira Petra Costa, entre outros, além de Bebeto Abrantes e Cavi Borges, diretores de Me Cuidem-se!, comentado aqui na semana passada – que redesenham “suas estratégias de filmagem para o cinema não parar durante a pandemia do coronavírus”. Entre as contribuições para essa leva de filmes, Labaki admite não ter se contido ao ser convidado pelo Instituto Tomie Ohtake a dar um depoimento para a série #juntosdistantes e realizou um diário filmado: “Ilhado em meu apartamento, fiquei seco de palavras. Imagens e sons povoam-nos o cotidiano. O mero registro deles pareceu-me falar mais. D42 foi disponibilizado no site do instituto no último domingo, dia 10, homenageando uma série de documentaristas que admiro. Cada um traduz como pode este trauma inédito”, Labaki escreve.

Outro estímulo à produção foi a recente iniciativa de Lara Sampaio e Mateus Rocha, organizadores do Quarentena Online Film Festival (Festival de Filmes Indoor), do qual participam 47 curtas-metragens, sendo 74,4% realizados por mulheres, produzidos de casa, sem sair da quarentena, em prazo curto. Inscritos até 30 de abril, com durações variadas de 50” a 24’19”. Mesmo sem ter assistido a todos, a amostra que vi permitiu ter a revelação de manifestações de talento, destacando-se os títulos mais curtos e bem-humorados. Além disso, o número de participantes mobilizados em tão pouco tempo comprova a existência de muita vontade e grande capacidade represadas de fazer filmes, contrapondo-se às previsões apocalípticas de que o cinema está ameaçado de extinção. A escolha do Melhor Filme do Festival pelo Júri Popular será através de votação online que pode ser feita até hoje, 20 de maio. Caberia à Secretaria Especial da Cultura e à Ancine estimularem iniciativas como as mencionadas e outras que constituem, neste momento, prova viva de que o cinema persiste.

O Quarentena Online Film Festival teve o cuidado de especificar a obrigação de os filmes serem feitos “em casa, sem sair da quarentena”, indo ao encontro do debate internacional em curso sobre as condições de segurança necessárias para fazer documentários neste tempo de pandemia. Documento de dezenove páginas publicado em 11 de maio “oferece um protocolo para ajudar o processo de avaliação” a ser feito por cineastas que pretendem filmar.

Assinado pela Doc Society, organização sem fins lucrativos baseada em Londres e Nova York; Field of Vision, unidade produtora e criadora de documentários de curta-metragem; Sundance Institute, organização sem fins lucrativos dedicada a promover o trabalho de narradores e encenadores de histórias independentes no cinema e teatro; e coassinado por várias associações profissionais, o texto propõe que se responda, em primeiro lugar, à grande questão: “Devo filmar?” Ou seja, “há interesse público suficiente que justifique a realização de filmagens atualmente? E, uma vez avaliados os perigos (e as medidas de segurança a serem tomadas), considerar se os riscos para a equipe de filmagem e outras pessoas potencialmente afetadas pelo projeto (personagens, quebra-galhos, comunidades vulneráveis, família e colegas de trabalho) são proporcionais ao interesse público?”

Ainda segundo o documento, “o desafio adicional da Covid-19 é que (1) neste momento, quase todos os locais da Terra, fora nossa casa, tornaram-se lugar de alto risco; (2) O círculo daqueles com quem nos preocupamos e por quem temos responsabilidade de agir com segurança é muito mais amplo … O resultado é que o patamar de exigência para justificar filmagens de interesse público é atualmente muito alto.”

Há aí, e em todo o restante do documento, ampla matéria para reflexão que pode nortear esforços que vêm sendo feitos para manter a realização de filmes ativa entre nós. A recomendação final do documento é se certificar de que “todos os participantes estejam satisfeitos e dispostos a prosseguir – confira diariamente”.

No sábado, 16 de maio, à noite, soubemos que o número de mortos no Brasil chegara a mais de 15 mil, tendo aumentado 50% em uma semana. E, no domingo, as vítimas fatais já passavam de 16,1 mil.

Em debate realizado na semana passada (14/5), promovido pela Oxfam Brasil, organização da sociedade civil criada em 2014, Drauzio Varella afirmou que, por não termos dado prioridade para “o combate à desigualdade”, o Brasil se tornará “em breve o epicentro da pandemia mundial, ultrapassando o número de casos dos Estados Unidos [onde, até 17 de maio, havia mais de 1,5 milhão de contagiados e cerca de 89 mil mortos] e “seremos o local onde a epidemia se dissemina com maior rapidez”.

Não se pode dizer que a crise política e a calamidade humanitária guardam entre si relação de causa e efeito, mas não há como deixar de responsabilizar o presidente da República pela dimensão que a tragédia já atingiu e ainda irá alcançar.

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La France Contre Les Robots (2020), de Jean-Marie Straub; Trois Tristes Tigres (1968), de Raoul Ruiz; e Le Champignon des Carpathes (1988), de Jean-Claude Biette, destacam-se entre as novidades da semana disponíveis na plataforma de streaming gratuito da Cinemateca Francesa. 

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Este texto foi atualizado às 17h11 do dia 27 de maio, com a grafia correta do nome de Dawn Porter.

Coluna atualizada em 25 de junho de 2020. Foram eliminadas as indicações dos links de acesso ao filme Me Cuidem-se!, a pedido de seus diretores, uma vez que as cinco partes editadas deixaram de estar disponíveis no Vimeo.

 

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