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    Ilustração: Carvall

questões de gastos públicos

Velocidade mínima

Com um ano de atraso, governo libera dinheiro que deveria melhorar acesso à internet nas escolas públicas durante a pandemia

Marta Salomon | 16 fev 2022_10h56
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Em tuíte postado na tarde da terça-feira, 8 de fevereiro, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) atribuiu o recente aumento do analfabetismo de crianças entre 6 e 7 anos ao isolamento social criticado pelo pai desde o início da pandemia da Covid. A postagem não mencionou que, por quase um ano, o governo de Jair Bolsonaro trabalhou contra a transferência de verbas públicas para ampliar o acesso à internet por parte de alunos e professores da rede pública, medida que poderia ter contido piora nos indicadores de educação durante a pandemia.

Em junho de 2020, a propagação do vírus já assustava, com mais de 1 milhão de casos registrados e mais de 50 mil mortes. Foi quando começou a tramitar no Congresso Nacional um projeto de lei que garantia o acesso à internet para o ensino a distância nos estados e municípios enquanto as escolas tivessem de permanecer fechadas. Aprovado por deputados e senadores em fevereiro de 2021, o projeto foi vetado integralmente pelo presidente Jair Bolsonaro. Ele alegou que a proposta contrariava o interesse público.

O veto foi derrubado pelo Congresso três meses depois, em junho. Foi a vez de o governo recorrer ao Supremo Tribunal Federal contra a lei que destinava 3,5 bilhões de reais para ampliar a conexão à internet e para a compra de terminais portáteis destinados a alunos pobres da rede pública de ensino e professores da educação básica.

A Advocacia-Geral da União alegou que a iniciativa do programa teria de ter partido do próprio governo e que era elevado o risco de mau uso das verbas federais. Em 17 de dezembro, o ministro do STF Dias Toffoli recusou os argumentos da AGU e deu três meses de prazo para o governo transferir as verbas. Em 28 de janeiro, com um ano de atraso, portanto, o presidente finalmente baixou um decreto com as regras para acesso ao dinheiro. A partir da data da transferência, os estados e o Distrito Federal terão seis meses para usar os recursos ou devolvê-los ao Tesouro Nacional, determinou o ministro.

O real impacto da pandemia no desempenho dos alunos só deverá ser conhecido depois das eleições presidenciais, quando o Ministério da Educação divulgar os resultados da avaliação dos alunos na pesquisa do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2021. Por ora, os dados divulgados pela ONG Todos pela Educação, sobre o aumento do percentual de crianças analfabetas entre 6 e 7 anos, são baseados na percepção das famílias, apurada em pesquisa do IBGE. 

“As próprias famílias mais pobres reconhecem que seus filhos não estão alfabetizados; a distância entre os 25% mais ricos e os 25% pobres já existia, mas ela aumentou muito durante a pandemia”, resume Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela Educação. De acordo com o cruzamento de dados do IBGE, mais da metade das crianças mais pobres entre 6 e 7 anos não saberiam ler nem escrever.

Priscila sustenta que os problemas na aprendizagem decorrem do atraso da vacinação e de falhas no enfrentamento da pandemia, que obrigaram as escolas a ficar fechadas por mais tempo. Estudo da OCDE identificou o Brasil como o país que manteve as escolas fechadas pelo maior número de dias (178) no primeiro ano da pandemia, sem contar com fins de semana e feriados. “Ficamos na crista pandêmica por muitos meses, e o governo não apoiou o ensino remoto: é um rosário de erros, um atrás do outro, que resultou na situação mais adversa possível para a educação brasileira”, resumiu.

Apesar de não encontrar justificativa para o atraso na liberação do dinheiro, um dos autores do projeto de lei, deputado Idilvan Alencar (PDT-CE), defende que os recursos para ampliar o acesso à internet ainda são importantes, mesmo com a reabertura das escolas. “A tecnologia deverá ter um papel relevante para recuperar a aprendizagem”, avalia. “O governo não tomar iniciativa já era grave, mas no caso da conexão, não apenas se omitiu como trabalhou contra”, criticou.

 

A falta de computadores e celulares e de acesso à internet nos domicílios foi o principal desafio para o ensino durante a pandemia, segundo gestores de escolas públicas e particulares ouvidos em pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Entre setembro de 2020 e junho de 2021, a pesquisa ouviu 3.678 gestores de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio: 86% deles relataram problemas de conexão, sobretudo na região Norte, onde esse percentual chegou a 90%.

Para manter as atividades de ensino, uma parcela maior de professores recorreu à distribuição de material impresso e à criação de grupos com pais e responsáveis em redes sociais, como o WhatsApp. Apenas 65% dos gestores relataram aulas realizadas por videoconferência, e 60% afirmaram ter recorrido ao envio de tarefas por e-mail. Só 58% das escolas usaram plataformas digitais de aprendizagem. Um novo estudo está em campo e deve ser divulgado no segundo semestre, informou Daniela Costa, coordenadora da pesquisa. Ela ressalta que a pandemia tornou mais evidentes a desigualdade de oportunidades entre os estudantes: “Não ter acesso à internet significou em muitos casos não ter acesso à educação.”

 Foi por uma lista de WhatsApp que a professora Bruna Ignácio, de Jaguariúna, no interior de São Paulo, recebeu a mensagem de uma mãe relatando as dificuldades de uma aluna para fazer as atividades propostas, porque estava sem celular. Na escola Anna Calvo de Godoy, onde ensina Língua Portuguesa para uma turma do primeiro ano do ensino médio, Bruna pediu aos alunos que escrevessem uma crônica sobre o isolamento social e a vida na pandemia. Poucos entregaram. “As pessoas estão ficando com o psicológico afetado”, escreveu a aluna Sofia Rodrigues.

 “A gente não podia contabilizar faltas, fizemos busca ativa para ter um mínimo de participação possível e precisamos baixar as exigências; reprovar um aluno só em último caso”, contou a professora. “Os impactos na aprendizagem vão reverberar por uma década ou mais”, estima Bruna.

O Ministério da Educação informou à piauí que os 3,5 bilhões de reais serão repassados aos estados e ao Distrito Federal até o dia 16 de março. O MEC não detalhou o critério de rateio dos recursos, mas a plataforma +Brasil informa que a maior parcela, de 512 milhões de reais (equivalente a 15% do total), caberá ao estado de São Paulo, que também tem o maior número de matrículas na rede pública do ensino básico. Roraima receberá a menor fatia, correspondente a 0,5% do total. A plataforma também informa que terão prioridade na compra de terminais portáteis e no acesso à internet os alunos do ensino médio e do ensino fundamental e os professores dessas etapas do ensino básico, nessa ordem.

A emissão de títulos da dívida pública bancará a ampliação do acesso à internet nas escolas, por determinação de uma medida provisória editada pelo governo. O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Camillo Bassi avalia que o aumento do endividamento público não seria necessário. A lei que determina o repasse de verbas da União para beneficiar alunos e professores indica que deveriam ser usados recursos do Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações). No orçamento deste ano, o fundo tem disponíveis para gastos mais de 700 milhões de reais, sem contar um saldo estimado pelo pesquisador em mais de 4 bilhões de reais. “O governo não precisaria se endividar nesse montante”, sustenta Bassi. Em 2018, o então presidente Michel Temer tentou usar dinheiro do fundo para financiar subsídio ao óleo diesel e conter uma greve de caminhoneiros.

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