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    Moradores sentam no "beiral da linha" para conversar. O mato alto sinaliza o abandono da ferrovia. Foto: Maria Júlia Vieira

questões urbanas

Vidas na linha do despejo

A rotina de famílias ameaçadas de perder suas casas com o projeto de uma ferrovia no Recife; déficit habitacional no Brasil é de 5,9 milhões de domicílios

Maria Júlia Vieira | 05 jan 2023_07h00
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“Eu moro aqui há mais de trinta anos. Como eu não tinha condições, minha mãe me deu o dinheiro para comprar o terreno. Depois, com o meu trabalho, fui comprando o material e deixando guardado para poder construir a casa. Fui organizando, fazendo reboco, botando janelas, deixando do jeito que sonhei. Aqui é meu lugar no mundo.” Para Tereza Francisca de Jesus, 69, a Comunidade da Linha, na Zona Sul do Recife, é muito mais que o local onde ela descansa no final do dia: é seu trabalho, sua família e sua história. Quase metade da vida da aposentada foi construída no que é conhecido como “beiral da linha”. Foi lá que criou os filhos, viu as netas nascerem, comemorou aniversários e a aprovação delas no vestibular. Foi lá também que aprendeu o significado de lutar por uma causa.

Dona Terezinha, como é conhecida, é uma das líderes da Comunidade da Linha na luta contra a desapropriação de terrenos do lugar para construção de um trecho da Ferrovia Transnordestina. A 12 km do Centro da cidade, a Comunidade surgiu há cerca de trinta anos em áreas paralelas à linha férrea administrada pelo Dnit e que conecta o eixo Sul do metrô do Recife à linha Centro. Abriga duas Zonas Especiais de Interesse Social, ou seja, áreas demarcadas para assentamentos habitacionais de população de baixa renda. As casas foram surgindo nos arredores do Aeroporto dos Guararapes. Os moradores acompanharam a expansão da pista de pouso e alteração na rota dos aviões. O barulho das aeronaves virou rotina para quem mora por ali. O som do trem, contudo, nunca se ouve. A linha férrea que dá nome à comunidade está fora de funcionamento há pelo menos vinte anos. Mas em 2023, dos 1.758 habitantes, calculados pelo projeto Sanear em 2014, pelo menos noventa famílias correm o risco de serem despejadas agora que a ferrovia vai chegar.

Dona Terezinha e sua casa, construída há mais de vinte anos, ao lado da linha férrea. Foto: Maria Júlia Vieira

 

O drama da Comunidade da Linha é o mesmo de milhões de brasileiros. Dados da Fundação João Pinheiro apontam um déficit habitacional de 5,9 milhões de domicílios, além dos 24,8 milhões em situação de inadequação habitacional. Levantamento da Campanha Despejo Zero aponta que mais de 192 mil famílias estão ameaçadas de remoções forçadas em todo o Brasil. A Campanha é uma articulação de pelo menos 175 entidades sociais que, desde julho de 2020, atuam contra a falta de moradia adequada – problema que se agravou na pandemia. Pernambuco tem, atualmente, cerca de 20 mil famílias com suas moradias ameaçadas, é o número mais alto do Nordeste e o terceiro maior do Brasil. O estado só fica atrás de São Paulo, com 57.105 famílias, e do Amazonas, com 29.659. Segundo relatório da Fundação João Pinheiro, 41,5% das famílias que estão em situação de déficit habitacional no Brasil recebem até 1 salário mínimo. 

O Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, no segundo governo Lula, entregou 4,3 milhões de casas populares até julho de 2019. Nos primeiros cinco anos do programa, 80% das casas foram destinadas a famílias que recebiam até 1.800 reais mensais. Em 2020, o Minha Casa Minha Vida sofreu um corte de cerca de 1,9 bilhão de reais pelo governo Bolsonaro e, no ano seguinte, foi encerrado e substituído pelo Casa Verde e Amarela. O público alvo do projeto bolsonarista eram famílias com renda média de até 7 mil reais. O retorno do programa social foi uma das promessas de campanha do presidente Lula. No livro Minha Casa…E a cidade?, os pesquisadores Caio Santo Amore, Lúcia Zanin Shimbo e Maria Beatriz Cruz Rufino avaliam o Minha Casa Minha Vida em seis estados e concluem que o programa trouxe avanços, como o acesso a infraestrutura básica (água, luz, saneamento) para grande parte das famílias. Mas muitos terrenos ficavam longe das ofertas de emprego e do acesso a serviços básicos. Além do fato de que as moradias padronizadas de dois quartos não atendiam a famílias maiores.

 

O terreno da Comunidade da Linha, oficialmente, pertence à União. De acordo com relatos dos moradores, em 1990, durante uma das reformas do aeroporto, a linha férrea administrada pelo Dnit, que passava ao lado da comunidade, à época conhecida como Sítio Santa Francisca, passou a cortar a área ao meio. Em 1994, quando um posseiro loteou e vendeu terrenos na região, o número de famílias aumentou exponencialmente. O conflito começou em 2011, quando a Transnordestina S.A. solicitou judicialmente a reintegração de posse dos terrenos dos quais é concessionária. A ferrovia em construção começa em Eliseu Martins, Piauí, e vai até o Porto de Pecém, no Ceará, e à região de Suape, em Pernambuco. Os territórios em disputa estão por todo o estado, inclusive no Sertão. Diversas famílias, como a de dona Terezinha, vivem o horror de perder o único bem que conquistaram ao longo da vida.

Para Ermínia Maricato, ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo e pesquisadora da área há mais de cinquenta anos, o caso da Linha é exemplar num cenário que se repete no país: o histórico de exclusão social no direito à propriedade e a confusão das demarcações nos limites territoriais. Sem acesso à moradia, famílias pobres vão se aglomerando em assentamentos em áreas de risco e no entorno de áreas onde há atividade econômica, como aeroportos, ferrovias e shoppings. Com isso, a população que deveria ser beneficiada por projetos e investimentos nessas áreas vira alvo de processos judiciais. “Para o sistema de justiça, a população está irregular, mas ela não tem como estar regular. Aproximadamente 90% das pessoas em situação de déficit ganham menos de 5 salários mínimos. Quem está irregular é vítima, e, dependendo da situação, vira réu na justiça”, continua Maricato. Entre 2003 e 2005, ela formulou a proposta de criação do Ministério das Cidades, do qual foi ministra-adjunta, e integrou, no ano passado, o governo de transição para as áreas de habitação, saneamento e infraestrutura urbana.

Até 1850 não existia propriedade privada da terra no brasil, explica Maricato. Foi nesse ano que a Lei de Terras foi instituída e legitimou como propriedades privadas as sesmarias cedidas no período colonial. Essa mesma lei tomou para a Coroa todas as terras ocupadas por povos originários, considerando-as terras públicas. No Brasil, a Constituição de 1988 foi a primeira a falar da moradia como direito essencial e foi ela quem estabeleceu a figura legal do usucapião urbano (antes só existia na área rural). O usucapião beneficia alguém que não é proprietário legal de um imóvel, mas está em posse dele há muito tempo, e não possui nenhum outro imóvel. Para que o usucapião seja concedido pela Justiça, é preciso cumprir alguns requisitos como tamanho do imóvel, tempo da posse, não oposição dos proprietários do terreno por pelo menos cinco anos e a destinação do imóvel para a moradia. Em se tratando de terrenos da União, o usucapião só pode conceder direito à posse e não à propriedade. “Há uma grande distância entre a lei e a efetividade da lei no Brasil”, disse Maricato à piauí. 

A Defensoria Pública e o CPDH (Centro Popular de Direitos Humanos), que atuam a favor das famílias da comunidade da Linha, afirmam que a faixa territorial está sob domínio da Transnordestina/SA desde 1997, porém só veio a ser reclamada em 2011. Muitas das famílias estão na ocupação desde antes da concessão do terreno à empresa que cuida do projeto da ferrovia. A obra deveria ter sido entregue em 2016, mas, dos 1.753 km planejados, apenas 600 foram construídos, até ser paralisada em 2017 pelo TCU, que apontou descompasso entre os cronogramas e os valores financeiros liberados. Em 2019, o projeto foi retomado. 

O conflito judicial na Linha, que envolve noventa famílias, foi dividido em pelo menos seis processos que tramitam em varas e fases diferentes. A primeira reintegração de posse está em fase de execução desde maio do ano passado e se refere a vinte casas da região. Para a doutora em desenvolvimento urbano e professora da Universidade Federal de Pernambuco Iana Ludermir, “a divisão dos processos é uma ‘tática de guerra’ que enfraquece os movimentos de reivindicação pelo direito à moradia”. Quando os juízes responsáveis vão julgar a situação não enxergam o quadro completo, mas sim uma pequena parte do problema. Além disso, é gerada uma grande insegurança jurídica, pois decisões conflitantes são dadas para situações similares. Ora prevalece a dignidade da pessoa humana e o direito à moradia, ora prevalece o direito à propriedade pública. 

Durante a pandemia, todos os despejos coletivos foram suspensos, e uma ADPF garantiu o mesmo direito até 31 de outubro de 2022, data a partir da qual foram fixadas diretrizes sobre ações do tipo. Determinação do ministro do STF Luís Roberto Barroso estabelece que nenhum despejo aconteça de imediato, além de indicar a criação de comissões responsáveis pelos conflitos fundiários para que haja um diálogo entre movimentos e famílias. Nos processos em que for decidida a remoção, as famílias precisam ser avisadas previamente e o poder público deve garantir o direito à moradia digna a todos. Em 10 de novembro de 2022, houve uma reunião na Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos no Recife entre as lideranças da Comunidade da Linha e os advogados da Transnordestina – que disseram que a empresa não tinha interesse na região, mas sim o Dnit, responsável pelo metrô no grande Recife. Procurada pela piauí, a Transnordestina não se manifestou sobre o caso. O Dnit respondeu, em nota, que a responsabilidade contratual é da Transnordestina. Confira a nota completa aqui. Segundo Nathália Almeida, advogada que representa a Comunidade por meio do CPDH, a Prefeitura do Recife e o Dnit se colocaram disponíveis para negociar possíveis soluções com a União, já que a questão habitacional é, constitucionalmente, competência comum da União, dos estados e dos municípios. Contudo, até agora, nenhuma solução prática foi trazida. Procurada pela piauí, a Prefeitura do Recife respondeu que a responsabilidade do caso é do governo federal. A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco também foi procurada, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem. O espaço segue à disposição.

 

De acordo com um relatório elaborado pelo CPDH, em parceria com várias organizações da sociedade civil, pelo menos 60% das casas da Comunidade da Linha são chefiadas por mulheres. Mais da metade das responsáveis pelas famílias são negras. Somados, pretos e pardos são mais de 80% da população ameaçada na região. Muitas das casas na área são também fonte de renda para os moradores, seja por aluguel ou por abrigarem pequenos negócios. Segundo esse relatório, pelo menos ⅔ dos moradores exercem suas atividades de trabalho dentro da moradia, e 75% da população total recebe até 1.100 reais por mês. Para eles, perder a casa seria também perder o local de trabalho e a principal fonte de renda.

“Ninguém olha para um condomínio de alta renda com cinquenta casas e pensa que por ali poderia passar uma nova rodovia, mas é comum nos depararmos com projetos que preveem a demolição de centenas de casas da população pobre. Os despejos coletivos rompem com relações de vizinhança e com o sentido de casa e de comunidade das populações afetadas, podendo gerar situações de perturbação emocional duradouras, além do aprofundamento da precariedade habitacional”, analisa a professora Ludemir, da UFPE.

Patrícia Nogueira, 44, é mais uma das moradoras ameaçadas pelo conflito fundiário na região. Mãe solo, e, assim como dona Terezinha, mulher negra. No último ano, Nogueira começou a liderar o Centro Comunitário da Linha. Hoje, concilia suas obrigações de enfermeira com as atividades na comunidade: festa do dia das crianças, brechós, projetos integrados com a UFPE para retirada de lixo e reciclagem. Nogueira mora há mais de vinte anos na região e atualmente está construindo um novo Centro Comunitário no andar de cima da sua casa. “A minha vida inteira foi construída aqui. Projetei todos os meus sonhos. Aqui é o lugar mais lindo do mundo!”, disse à piauí.

Patrícia Nogueira está construindo, no primeiro andar de sua casa e com recursos próprios, um novo Centro Comunitário para a Linha. Foto: Maria Júlia Vieira

 

A enfermeira conhece dona Terezinha “desde sempre”. Compartilha o amor pelo lugar e o medo de perder tudo o que tem. “O processo começou quando a Transnordestina resolveu tomar o que é nosso. É terra da União, mas era improdutiva. Aqui ninguém invadiu, a maioria comprou os terrenos. Quando chegamos, estava tudo abandonado. Não tinha nada aqui. Hoje você tem famílias construídas, sonhos consolidados. Tem professores, enfermeiros, advogados, grandes e pequenos empresários”, relata Nogueira.

A professora da UFPE Lúcia Leitão estuda a dimensão subjetiva do espaço há pelo menos vinte anos e ressalta os aspectos variados envolvidos no despejo. “Sem a casa é como se a pessoa fosse exilada do seu lugar na terra, ela não tem lugar para ser. Não só do ponto de vista de cidadania, porque para conseguir um emprego é necessário ter um endereço. Mas, do ponto de vista simbólico, pessoal, é como se você tivesse permanentemente suspenso no ar. Você não tem o lugar simbólico de acolhimento, de proteção afetiva. Para além de todas as razões objetivas da casa que você precisa para comer, tomar banho, dormir, trocar de roupa… Então está sendo negado um direito fundamental da condição humana. Todo mundo precisa de um lugar para viver, precisa do seu lugar no mundo.” 

Apesar do engajamento da comunidade e dos vínculos criados ao longo dos anos, a situação habitacional na Comunidade da Linha é precária. Falta saneamento básico, coleta de lixo, assistência de saúde. Mas ainda assim os moradores querem ficar lá. Márcio Wamberto, 20, trabalha na Prefeitura do Recife e mora na comunidade há cerca de um ano e meio. A situação da Linha não é a primeira vez que a questão da moradia perpassa a sua vida. Quando pequeno, Wamberto morava em uma palafita em uma comunidade na Zona Sul do Recife, conhecida como “Comunidade do Bode”. Na época, ofereceram uma alternativa habitacional aos moradores da região: um condomínio do Minha Casa, Minha Vida localizado em um bairro da Zona Oeste do Recife, 9 km distante da moradia inicial. Mas ficou inviável para as famílias, formadas em sua maioria por pescadores que tinham que pegar no mínimo dois ônibus para chegar ao local de trabalho. “Eu pescava marisco, sururu, tudo no mangue na frente da minha casa. Minha avó era barraqueira na Praia do Pina, foi para o Cordeiro com a gente, mas continuou trabalhando lá, se deslocando diariamente, sem transporte. Mesmo que fosse uma palafita, era a nossa casa.” Ele então se mudou para a Linha.

A professora Lúcia Leitão acompanhou diversos casos de realocação de comunidades vulneráveis e pôde perceber que quando há um planejamento que considera os vínculos subjetivos dos moradores, a política habitacional tem muito mais sucesso. Um dos casos a que Leitão assistiu foi justamente a transferência de famílias pescadoras do Bode para o Cordeiro. Ela destaca o processo de sofrimento mental dos moradores. “As pessoas tendem ao alcoolismo, à depressão… Desenvolvem problemas emocionais. Se alguém é pescador e é retirado do local, não tem mais do que viver.” Para ela, existem situações em que a realocação é necessária, como margens de rios ou áreas ocupadas abaixo de redes de alta tensão. Nesses casos, o local vai ser sempre um risco, mas é preciso sensibilidade para lidar com a questão. 

Por enquanto, os problemas na Comunidade da Linha seguem sem solução à vista. As únicas alternativas oferecidas pela Transnordestina são indenizações que, para os moradores, têm valores irrisórios. Dona Terezinha tem cerca de 250 m² construídos que alternam entre a sua moradia, um espaço vizinho que usa para aluguel e uma pequena mercearia nos fundos de sua casa. Como pagamento pela desapropriação do imóvel, apenas 6 mil reais. “Falar em derrubar uma casa de um ser humano, que vai indenizar e vai dar 6 mil reais. Seis mil reais não pagam o que fiz aqui, quanto mais minha história.” Para Wamberto, que já foi despejado da comunidade de pescadores e agora enfrenta a segunda ameaça, qualquer proposta de mudança precisa vir acompanhada de alguma oferta de direitos. “Eles não podem nos tirar para passar um trem fantasma. Um trem que nem existe.”

Enquanto aguardam a solução para o conflito fundiário, moradores tem a esperança como uma luz no fim do túnel, ou melhor, da linha. Foto: Maria Júlia Vieira

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