Vinícius e Bandeira
A influência de Bandeira de certo modo preparou terreno para o “surgimento” do Vinicius letrista. Na passagem dos anos 1930-40 a obra do Mané já guardava os elementos que tornariam possível um trânsito mais fluido e natural entre palavra escrita e palavra cantada. Ao aproximar Vinicius da poesia do mundo cotidiano, Bandeira o aproximou também do universo da música popular – da trivialidade das canções. E Vinicius pode, talvez, ser visto como aquele que finalmente realizou o que em Bandeira existia apenas como sugestão: a passagem da poesia do livro para a poesia cantada.
O poeta Manuel Bandeira pouco frequentou a canção popular, mas parece ter criado canais de conexão com ela através da forte influência que teve sobre um de seus maiores letristas: o amigo Vinicius de Moraes. Bandeira e Vinicius mantiveram por décadas uma relação de amizade despojada e sincera, sem qualquer cerimônia. Parecia amizade de moleque. E moleque sacana. No período em que Vinicius viveu no exterior como diplomata, a correspondência entre os dois era deliciosamente despudorada. Numa carta de 1949, o bardo fala com admiração de Marlene Dietrich, já uma senhora que posava com muita naturalidade em anúncios e jornais: “Eu, depois que a vi com o neto ao colo, fiquei mais apaixonado que nunca. Imagina você a gente comer uma avó. Isso nunca me aconteceu, pelo menos que eu soubesse”.
Apesar da grande diferença de idade entre os dois (27 anos), parecia um papo de amigos de faculdade. E, em termos de modernidade, certamente o estilo de Bandeira (um homem nascido no século XIX!) dava de 10 no Vinicius dos anos 1940. Nessa época, Vinicius ainda era o “inquilino do sublime”. Bandeira, a quem ele chamava carinhosamente de “Mané”, pouco a pouco começava a trazê-lo para o delicioso convívio do trivial. As cartas trocadas entre os dois dão testemunho dessa transição. Numa delas, datada de 1938, quando Vinicius estudava literatura inglesa em Oxford, Bandeira contava, em meio a conselhos sobre os clássicos ingleses que Vinicius deveria ler, as estripulias de um Pedro Nava embriagado (“chamou a Maria de ‘goiaba de saias’ e ‘grande dama cafajeste’”) e aproveitava para transcrever os versos da última marchinha da moda, a clássica . A carta começava na alta literatura inglesa de Milton, Blake e Shelley, passava pelo porre de Nava e terminava no último sucesso do carnaval carioca. Parecia um resumo do percurso que seria posteriormente trilhado pelo próprio Vinicius, com influencia decisiva de Mané. Este, em 1939, escreveu para Vinicius dizendo que, “no fundo, eu queria era poder ser bem poeta-menor”. Bandeira já era, antes de Vinicius o ser, um “poetinha”.
O contágio se deu lentamente, e com a naturalidade da poesia de Bandeira. No fim dos anos 1940, Vinicius já escrevia cartas ao amigo dizendo que “positivamente, não consigo nem olhar mais para Forma e exegese” – seu segundo livro e talvez o ápice de sua “poesia do sublime”. Aos poucos a influência do “Manezinho” ia prevalecendo sobre aquelas que Vinicius teve durante a faculdade de Direito, sobretudo a de seu antigo mentor, Octavio de Faria. Bandeira seria o contraponto desse mundo. Representava uma influência vital; era um homem mais ligado à vida, ao cotidiano, que fazia, nas palavras de Vinicius, “uma poesia mais simples, se bem que formalmente admirável”. Em várias ocasiões, ele falaria de como a amizade e convívio com Bandeira o ajudou na construção da ponte que o levou do sublime ao cotidiano – “quando consegui me colocar em escala diante do infinito: ‘esse bicho da terra, tão pequeno’, como disse tio Luís de Camões”. O encontro com a poesia de Bandeira veio num momento em que Vinicius sentia um “cansaço do absoluto”.
A virada dos anos 1930 para os anos 1940 assistiu a um momento fundamental de releitura do modernismo brasileiro, em vários níveis. A sensação era de que o discurso temático que marcou a primeira fase do modernismo, o discurso do “mulato inzoneiro”, estava saturado. Surge então um novo caminho, mais ligada à urbanização do Brasil nessas décadas, marcado por certa evasão para o cotidiano, mas também por uma forte densidade formal. Uma reflexão mais sofisticada sobre o Brasil, que ia além da mera eleição de símbolos nacionais – a mulata, o coqueiro, etc… Algo mais sutil, uma espécie de “nacionalismo rarefeito”, apoiado numa ampla rede de lirismo, despreocupado de teorias e manifestos, e que não chegava a explicitar seu rompimento com a tradição. Um “segundo modernismo”, mais tímido que o primeiro, e do qual eram expressão máxima as obras de Alfredo Volpi (pintura), Dorival Caymmi (canção), e Manuel Bandeira (poesia). Vinicius, que começou grandioso, torna-se depois um continuador tardio dessa tradição, amparando-se em Caymmi e Manezinho, tornando-se, finalmente, um “poetinha”. Com a bossa nova essa tradição ganha, finalmente, seu “momento crítico”, abrindo as portas da moderna música popular brasileira.
A influência de Bandeira de certo modo preparou terreno para o “surgimento” do Vinicius letrista. Na passagem dos anos 1930-40 a obra do Mané já guardava os elementos que tornariam possível um trânsito mais fluido e natural entre palavra escrita e palavra cantada. Ao aproximar Vinicius da poesia do mundo cotidiano, Bandeira o aproximou também do universo da música popular – da trivialidade das canções. E Vinicius pode, talvez, ser visto como aquele que finalmente realizou o que em Bandeira existia apenas como sugestão: a passagem da poesia do livro para a poesia cantada.
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