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Vitalina Varela – à beira do desespero

Documentário de Pedro Costa aborda luta de uma mulher para falar com o espírito do marido

Eduardo Escorel | 27 abr 2022_08h04
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Vitalina Varela – Foto: Divulgação

O frame acima diz tudo ou quase tudo. A mulher de camisola preta, pano também preto enrolado na cabeça, encara quem a observa, quer seja a câmera ou o espectador, e parece pronta para dar o bote – ela é Vitalina Varela, atriz e personagem-título do filme de Pedro Costa. Quem já assistiu ao filme não pode ter esquecido esse plano. Quem ainda for ver deve se preparar para o impacto da cena – um plano fixo crucial que começa aos 30’50” dos 124’ totais.

Comentei Vitalina Varela aqui, após ter sido exibido três vezes no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019, uma dessas sessões tendo contado com a presença de Costa. Volto ao filme agora, quando entrou em cartaz em 14 de abril em cinco cidades, estando previsto seu lançamento em outras praças a partir de amanhã (28/4) e no início de maio.

Filmado quase sempre à noite em becos e cômodos pequenos de casas do bairro da Cova da Moura, com locações também em 6 de maio, Quinta da Lage e Casal da Boba, todos em Amadora, na área metropolitana de Lisboa, Vitalina Varela é fotografado em claro-escuro intenso, exceto por raras cenas diurnas externas. Imersos na escuridão, os personagens são “envoltos em sombras”, como diz o Padre (Ventura) em outra cena, também decisiva, próxima ao final.

Sequências apenas com som ambiente, ruídos e vozes distantes ininteligíveis se alternam com extensos monólogos de Vitalina e momentos esparsos dialogados – são “vozes que sussurram, que falam em segredo (é crioulo cabo-verdiano), e sussurram porque é assim que se fala aos espíritos, quanto mais baixo mais os espíritos podem ouvir e eventualmente responder…”, conforme esclarece Edmundo José Neves Cordeiro, da Universidade Lusófona (“De ‘Cavalo Dinheiro’ a ‘Vitalina Varela’: a imagem-sonora”, Texto Digital, Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 309-316, ago./dez. 2020, disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/textodigital/article/download/77510/45074/285752).

No prólogo de Vitalina Varela, que dura cerca de 13’, ouve-se tão somente uma palavra solta dita de passagem (“Vamos!”), além da breve caracterização depreciativa do falecido que será identificado em seguida (“Ele era um sacana. Ele levou tudo para a cova.”) e, aos 12’25”, a chefe da equipe de limpeza do aeroporto, dirigindo-se à passageira de pés descalços molhados que acaba de descer a escada de desembarque do avião: “Vitalina, meus sentimentos. Chegou atrasada. O teu marido está enterrado há três dias. Aqui em Portugal não há nada para ti. A casa dele não é a tua casa. Volta para a tua terra.” Determinada, porém, Vitalina segue em frente, desaparece na escuridão, e o grupo de cinco mulheres da equipe de limpeza forma, imóvel, o primeiro entre outros tableaux vivant que serão vistos depois.

Voltando à imagem que diz tudo ou quase tudo, comentada no início, é evidente haver grande diferença entre um frame isolado e o plano completo de 1’25” do qual é um fragmento. A cena de Vitalina prestes a dar o bote, além de memorável, é marcante em primeiro lugar por revelar que ela tentará ao longo de Vitalina Varela fazer contato com seu falecido marido, Joaquim de Brito Varela, conforme Cordeiro destaca no artigo citado. Mas é crucial sobretudo porque a coluna vertebral do filme é formada pelos desdobramentos dessa tentativa de conversa: “Estás surpreendido não estás? Não esperavas a minha visita. Não me queres perto de ti, mesmo na hora da tua agonia. Casamos no registro civil a 14 de dezembro de 1982 e na igreja a 5 de março de 1983. E da clareza daquele amor não resta nada. Não confio em ti, nem na vida nem na morte. O corpo… Está no cemitério, no caixão… Não o pude ver. Está morto, debaixo da terra.”

Vitalina Varela e Pedro Costa – Foto: Divulgação

Ao anunciar a premiação do 72º Festival de Locarno, em que Vitalina Varela recebeu o troféu Leopardo de Ouro, atribuído ao Melhor Filme, e Vitalina Varela ganhou o Leopardo de Melhor Atriz, a cineasta e escritora Catherine Breillat, presidente do júri, declarou com ênfase que “o feito de Costa vai além de meros prêmios” e insistiu que ele tem um “lugar no panteão do cinema”. Assim glorificado, Vitalina Varela percorreu mais de 50 festivais nos meses seguintes, entre outros o de Toronto, em setembro; os de Nova York, Londres, Rotterdam, La Roche-su-Yon e Chicago, em outubro; e, no final de janeiro de 2020, o Festival de Sundance. Nessa trajetória colheu louvações superlativas como as da revista Film Comment e a de Christopher Small na Sight & Sound: “É seu mais bonito e assombroso filme até agora. Vitalina é extraordinária”; “uma bela visão melancólica e penetrante… Pedro Costa é um dos dois ou três maiores cineastas vivos do nosso planeta.”

Após ter sido lançado em Portugal no final de outubro de 2019, o filme estreou em sala de cinema, em 21 de fevereiro de 2020, em Nova York, onde foi saudado por Richard Brody, na revista The New Yorker, como “uma obra paradoxal ousada. Apesar de seu estilo vanguardista, é um filme de arqueologia virtual que recupera o colossal poder simbólico do cinema clássico americano – enquanto, não obstante, carrega o fardo das novas convenções incontestáveis, as do modernismo cinemático”.

Tudo estava bem encaminhado, portanto, para Vitalina Varela chegar à tela grande em outros países, inclusive o Brasil, mesmo se em circuito restrito voltado para cinéfilos, quando, em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de Covid-19. Colhido pela catástrofe resultante da disseminação da doença em âmbito mundial, Vitalina Varela foi obrigado a se recolher e aguardar condições propícias para ser lançado em salas de cinema de outros países. Passados dois anos, estreou na França, em janeiro. 

É difícil imaginar, porém, que Vitalina Varela possa alcançar público amplo no circuito comercial, voltado cada vez mais para o entretenimento de massa, predomínio acentuado desde a reabertura das salas. Há uma incompatibilidade que vem se tornando cada vez mais radical entre filmes de cineastas como Pedro Costa, integrantes do panteão da cinefilia, e o cinema concebido como divertimento. Pelo menos desde Casa de Lava (1994) nenhum dos longas-metragens de Pedro Costa parece ter sido feito pensando em entreter espectadores que compram ingresso para se divertir – são, pelo contrário, filmes por vezes penosos de assistir, é necessário admitir, o que, se não reduz em nada seu valor, tampouco os livra de serem elitistas.

Embora sejam parciais, os dados disponíveis demonstram o grau em que são inconciliáveis, de um lado, a configuração atual do mercado exibidor e, de outro, alguns filmes muito apreciados em festivais, como é o caso de Vitalina Varela. Produzido com orçamento de 600 mil euros, equivalentes a cerca de 645 mil dólares, o filme rendeu até o momento apenas em torno de 56 mil dólares, 64% em Portugal e o restante no Reino Unido, Estado Unidos e Canadá. Fica atestada aí, mais uma vez, a inviabilidade financeira do cinema que não segue parâmetros consagrados de produção industrial.

Retomando Vitalina Varela em si, as palavras de Pedro Costa a respeito do filme, em entrevista ao crítico italiano Michael Guarneri, são insubstituíveis:

Na minha opinião, meu encontro com Vitalina merecia que eu fizesse um filme, é simples assim. Achei também que este encontro poderia me dar a oportunidade de abordar outro aspecto da história da diáspora cabo-verdiana – a história das mulheres. […] Aos poucos, o filme foi tomando forma e evoluindo ao longo das visitas que fiz a Vitalina, nossas conversas cotidianas: ela me contou sobre si mesma, seu marido Joaquim que havia migrado, seus dois filhos, sua vida de camponesa em Cabo Verde, da sua vida de imigrante em Lisboa… Escutei a história das suas memórias e sugeri alguns rumos que poderíamos tomar no filme. Vitalina aceitou algumas ideias e rejeitou outras espontaneamente. Continuei a fazer o meu trabalho: sugeri, acrescentei, agrupei, condensei tudo. Foi assim que começamos a reconstruir o itinerário dessa mulher. […]

Vitalina e eu nos tornamos amigos e ela aceitou fazer um papel coadjuvante no filme Cavalo Dinheiro (2014), onde Ventura fez o papel principal. Quanto mais eu conhecia Vitalina, mais certeza eu tinha de que meu próximo filme seria feito com ela e seria sobre ela. Achei que ela poderia ser a estrela de um filme sobre sua própria vida, um filme que focasse em suas próprias memórias e suas próprias experiências, uma espécie de contrapartida a Cavalo Dinheiro, com Vitalina no papel principal e possivelmente Ventura em um papel coadjuvante. Aliás, foi durante a fase de filmagem de Cavalo Dinheiro que comecei, com Vitalina, a montar este projeto de sonho. […] 

[…] Para mim, esses filmes são sobre pessoas que estão à beira do desespero…(http://culture-et-cinema.com/2022/01/02/3956/)

Costa diz tudo ou quase tudo que há para dizer. Como o frame inicial do qual partimos.

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