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    ILUSTRAÇÃO: Paula Cardoso

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Vítimas de implantes de silicone malsucedidos cobram fabricante na Justiça

Número de processos contra a Silimed, quinta maior produtora de próteses mamárias do mundo, aumenta a cada ano

Allan de Abreu, Bernardo Esteves e Camila Zarur | 26 nov 2018_15h00
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* Esta reportagem faz parte do Implant Files, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. O Implant Files reúne 252 profissionais de 59 veículos de 36 países, que investigaram dezenas de fabricantes e distribuidoras de dispositivos médicos em todo o mundo. No Brasil, participam da apuração a revista piauí e a Agência Pública. Esta reportagem foi produzida por Allan de Abreu, Bernardo Esteves, Camila Zarur, José Roberto de Toledo, Vitor Hugo Brandalise, Kellen Moraes, Flávia Tavares, Marcella Ramos, Kátia Regina Silva.

 

Carolina Pereira Jordão tinha 17 anos quando colocou próteses de silicone, com 215 mililitros em cada seio. Implantou dispositivos fabricados pela Silimed – sediada no Rio de Janeiro, a empresa é a principal fabricante do produto na América Latina e a quinta maior do mundo atualmente. Cinco anos após a cirurgia, feita em 2008, Jordão – uma confeiteira que mora em Angra dos Reis, litoral sul fluminense – começou a sentir dores nas mamas. Depois de uma visita ao médico, descobriu que a prótese do lado direito havia se rompido e precisaria ser trocada. “Foi do nada, eu não tinha feito movimentos bruscos nem sofrido qualquer acidente”, ela disse numa entrevista à piauí. Jordão acionou então a Silimed para que a fabricante arcasse com os custos da operação, pois acreditava que o rompimento fora causado por um defeito no produto.

Nos últimos dezoito anos, a Silimed foi alvo de 118 ações judiciais por danos morais e materiais impetradas por mulheres em todo o país. Em comum, todas tiveram problemas, em maior ou menor grau, com próteses mamárias fabricadas pela empresa. O volume de processos contra a Silimed tem crescido nos últimos quatro anos: foram oito ações em 2014, contra vinte no ano passado.

Carolina Jordão acabou sendo indenizada pela Silimed, mas não antes de um longo embate nos tribunais. A fabricante aceitou, a princípio, custear uma prótese idêntica à que havia se rompido – o cirurgião escolhido pela paciente, no entanto, disse que, como ela havia ganhado peso e tido um filho desde o implante, seria necessário colocar próteses maiores. A empresa, então, recuou e se negou a pagar por uma nova prótese. A confeiteira fez mais uma cirurgia, paga do seu próprio bolso, em fevereiro de 2014 e no ano seguinte processou a empresa.

Após dois anos, tanto o juiz em Angra dos Reis quanto o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenaram a Silimed a lhe pagar 14 mil reais de reembolso pela cirurgia e mais 5 mil reais por danos morais. O pagamento, no entanto, só seria feito em agosto de 2018 – o atraso resultou em multa de 10% do valor da condenação e motivou dois bloqueios judiciais em contas da empresa. Com a correção monetária, a indenização chegou a 37,9 mil reais, e o caso foi encerrado.

 

Por cinco meses, a piauí esquadrinhou a atuação da Silimed no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, em parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos – ICIJ, na sigla em inglês. No mercado de dispositivos médicos, o Brasil se destaca pelo alto número de cirurgias plásticas com finalidade estética, sobretudo mamárias. Só no ano passado, foram feitas no país mais de 215 mil cirurgias estéticas para implante de próteses de silicone, uma média de 590 procedimentos por dia. O Brasil só perde para os Estados Unidos, que tiveram 281 mil cirurgias desse tipo em 2017, conforme dados divulgados em novembro pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética.

Dos 118 processos cíveis contra a Silimed, quase a metade, 53, foi proposta por pacientes do estado do Rio de Janeiro, seguido por São Paulo (dezesseis ações) e Rio Grande do Sul (catorze). Do total de processos, 54 tiveram sentenças em primeira instância judicial – em 26 casos a Silimed foi condenada a pagar indenizações que somam 561 mil reais, em valores não corrigidos.

A empresa atribui o aumento no número de ações por danos morais e materiais ao crescimento das vendas de próteses no Brasil e afirma que, em 2018, o número de ações penais corresponde a apenas 0,019% do total de implantes vendidos no Brasil até setembro deste ano – em 2017, o percentual foi de 0,036%. É difícil, no entanto, colocar esse dado em perspectiva, uma vez que ignora eventuais ações judiciais decorrentes de complicações que venham a surgir meses ou anos depois da cirurgia.

 

Nem todos os processos vão até o fim, como mostra o caso de Ellen Cristina dos Passos, empresária paulistana que em 2012 implantou próteses da Silimed de 320 mililitros. A cirurgia – um presente do marido no seu aniversário de 36 anos –, no entanto, deixou sequelas. O incômodo veio já no pós-operatório, mas Passos atribuiu-o ao procedimento médico recém-feito. “Toda a região dos seios estava sensível e dolorida, como se eu estivesse prestes a ficar menstruada”, ela contou à piauí. “Achava que era um incômodo normal, já que tinha um corpo estranho dentro de mim.” A dor piorou com o tempo, até se tornar insuportável. Três anos depois, ela não conseguia levantar os braços e sentia dores até quando penteava os cabelos. “Chegou ao ponto de eu não conseguir abraçar as pessoas. Até para vestir alguma roupa doía.”

O auge da dor foi em agosto de 2017, quando Passos chegou a ir a dez médicos. Ao cabo da sua maratona por consultórios de São Paulo, ela descobriu que tinha contratura capsular – a complicação mais frequente decorrente dos implantes de silicone – e que a prótese do seio esquerdo havia se deslocado para debaixo da axila. A contratura surge quando há um enrijecimento anormal da cápsula – a membrana fibrosa que o próprio organismo cria em torno da prótese para isolá-la dos tecidos do corpo –, que pode provocar dor, desconforto e assimetria das mamas.

No caso de Passos, a contratura capsular foi classificada como de grau 3, numa escala que vai de 1 a 4. A paciente procurou, então, o cirurgião plástico que tinha feito o implante. “Ele não tinha me alertado que eu poderia ter algum problema”, alegou. “Quando voltei, ele disse que não tinha responsabilidade sobre o que aconteceu comigo e que, se eu quisesse tirar as próteses, teria que pagar pelo procedimento.”

Procurado pela reportagem, o cirurgião plástico Eduardo Lange, responsável pelo implante de Passos, afirmou que, pelo tempo que a contratura levou para se manifestar, não deve ter sido motivada por imperícia médica ou por alguma contaminação durante a cirurgia. Uma reação provocada pelo próprio corpo de Passos estaria por trás do problema.

O médico disse que informou a paciente dos possíveis riscos da cirurgia, diferentemente do que ela alegara. “Entrego um termo de consentimento para todas as pacientes logo na primeira consulta”, disse Lange numa entrevista telefônica. “Elas levam para casa para ler com calma e trazem as dúvidas na consulta de retorno. Todos os riscos estão lá.”

As possíveis sequelas – que, além da contratura capsular, incluem infecção, trombose venosa profunda, complicações pulmonares e cardíacas – também estão listadas no site do cirurgião. “Mas as chances de algo acontecer são pequenas”, disse Lange. “E, se ficarmos falando só dos problemas, quem é que vai querer colocar silicone?”

Insatisfeita com o desdobramento do seu caso, Passos entrou com uma ação na Justiça por danos morais e materiais contra a Silimed. “Não achei justo sofrer com as dores, passar por esse trauma e ainda arcar com os custos de uma nova cirurgia”, explicou. Em paralelo, ela decidiu procurar outro médico e retirou os implantes em janeiro deste ano – gastou 13 mil reais com o procedimento e com a internação no hospital. A perspectiva de mais despesas com advogados acabou levando a paciente a abrir mão da ação judicial. “Não daria em nada, seria só um custo a mais”, afirmou.

Dez meses depois de retirar as próteses, a empresária continuava com os seios doloridos e, com dificuldades para movimentar os braços, não conseguia levantar peso. A cirurgia para retirada do implante afetou um nervo localizado perto da axila de Passos, causando fortes pontadas na região. Além disso, os exames atuais da paciente mostram a presença de granulomas na região dos seios – ou seja, nódulos de tecido inflamados que demonstram um processo de infecção. Hoje, Passos faz tratamento com anti-inflamatórios e antidepressivos, para aliviar as dores que sente, além de sessões de fisioterapia.

 

Operações para o aumento de mama são feitas desde 1895, quando o alemão Vincenz Czerny fez um implante com tecido adiposo da própria paciente numa operação considerada um marco na história da medicina. Nas primeiras cirurgias do tipo, era comum o uso de materiais sintéticos variados, como injeções de parafina ou silicone líquido, levando frequentemente a complicações graves como infecções, obstrução de artérias ou a migração do material implantado para outras partes do corpo. Um avanço importante veio no começo dos anos 60, quando os americanos Thomas Cronin e Frank Gerow desenvolveram próteses de silicone em gel envoltas numa membrana, inovação que aprimorou a segurança do procedimento e inaugurou a era dos implantes mamários modernos.

À medida que as cirurgias plásticas se popularizaram, cresceu também o número de relatos de complicações advindas das primeiras gerações de próteses de silicone. Nos Estados Unidos, país marcado pela intensa judicialização das questões médicas, cada vez mais casos de pacientes insatisfeitas com os desdobramentos dos implantes foram parar nos tribunais. Em 1991, a Justiça americana determinou que Mariann Hopkins, uma californiana cuja prótese de silicone tinha se rompido, fosse indenizada em 7,34 milhões de dólares – cerca de 50 milhões de reais em valores atualizados – pela Dow Corning, líder do mercado à época.

Diante da suspeita de que as próteses de silicone pudessem estar por trás de doenças autoimunes nas pacientes, a FDA, agência americana que regula a produção de alimentos, medicamentos e dispositivos médicos, determinou em 1992 a suspensão das próteses mamárias de silicone até que fossem consideradas seguras. O clima continuou belicoso entre pacientes e fabricantes, e a Dow Corning – alvo de mais de 20 mil processos – pediu falência em 1995 depois de uma indenização bilionária paga junto com outras cinco fabricantes numa ação coletiva movida por centenas de milhares de mulheres. Mas a suspeita levantada pela FDA acabou se mostrando infundada. As próteses de silicone voltaram a ser liberadas sem restrições em 2006, e os Estados Unidos hoje são líderes mundiais desse mercado.

Um caso de grande repercussão foi o da fabricante francesa Poly Implant Prothèse, a PIP. Em 2010, autoridades francesas descobriram que as próteses fabricadas pela empresa usavam silicone industrial – material mais barato e inadequado para uso médico – e tinham mais chance de romper e vazar para outras partes do corpo. O caso virou um escândalo global e exacerbou os ânimos entre fabricantes e vítimas de complicações dos implantes. As próteses da PIP eram exportadas para dezenas de países, inclusive o Brasil, onde mais de 25 mil pacientes foram afetadas (foram centenas de milhares em todo o mundo). A PIP foi à falência em função das indenizações milionárias que teve que pagar, e seu dono – um ex-açougueiro – foi condenado a quatro anos de prisão.

 

A cirurgia para implante de próteses mamárias de silicone – como qualquer procedimento médico, por mais simples que seja – está sujeita a riscos. Dentre as complicações específicas dessa operação, as mais comuns são a contratura capsular e eventuais infecções, conforme disse numa entrevista à piauí Diogo Franco, cirurgião plástico e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Não são complicações que se veem a toda hora, mas o risco existe.”

Um estudo publicado este ano – o mais abrangente do tipo, que acompanhou quase 100 mil pacientes que receberam próteses de mama nos Estados Unidos – concluiu que contraturas capsulares de grau 3 ou 4 aconteceram em 7,2% das cirurgias estéticas de aumento de mama, e em 12,7% das cirurgias de reconstrução de mama. A complicação mais grave encontrada no estudo foi um único caso de linfoma anaplásico de grande célula, um tipo raro de câncer do sistema linfático que pode surgir na cápsula que se forma em torno da prótese.

Esse linfoma aparece citado na longa lista de potenciais complicações compilada no guia com as instruções de uso que acompanha as próteses de silicone vendidas pela Silimed. A relação dos eventuais problemas se estende por quatro páginas do livreto impresso em tipos miúdos com conteúdo em português, espanhol e inglês. O volume é acompanhado de um termo de esclarecimento em duas vias na qual a paciente declara estar ciente dos riscos.

Ainda que assinem o termo de consentimento, nem sempre as pacientes parecem estar a par das complicações a que estão expostas, como mostra o relato que abre esta reportagem. “Às vezes a pessoa não quis perguntar ou o colega não quis esclarecer”, afirmou Diogo Franco. “Frequentemente existe um problema na relação médico-paciente que deixa tudo mais difícil.”

As pacientes podem minimizar o risco de complicações se seguirem as restrições impostas pelo médico nos meses seguintes à cirurgia e fizerem exames periódicos da mama ao longo da vida. De acordo com o mastologista paranaense Cícero Urban, professor da Universidade Positivo, toda portadora de prótese de silicone deve fazer uma ecografia uma vez por ano e, a cada dois ou três anos, uma ressonância magnética. “Esse exame permite detectar a eventual ruptura da prótese numa fase precoce”, continuou, lembrando que as mulheres com mais de 40 anos devem também fazer mamografias regularmente.

As próteses de silicone das principais marcas disponíveis no mercado não têm prazo de validade determinado. No manual que acompanha suas próteses, a Silimed afirma que a vida útil esperada é de dez anos. “Antigamente se recomendava que as próteses fossem trocadas a cada dez ou quinze anos, mas a tecnologia mudou muito desde então”, afirmou Franco. “A princípio, os modelos produzidos atualmente não precisam ser trocados.” Isso não significa, porém, que as próteses tenham duração ilimitada. “Não há prótese no corpo que dure para sempre”, lembrou Urban, “daí a importância dos exames periódicos.”

 

O número de brasileiras com algum tipo de sequela decorrente de próteses mamárias é maior do que indicam os números dos tribunais de Justiça do país. Em janeiro de 2017, parte delas criou um grupo de debate no Facebook, inspirado em iniciativa semelhante nos Estados Unidos. O objetivo é alertar sobre os riscos associados ao silicone e criar uma rede de apoio entre as mulheres. Atualmente, o grupo brasileiro conta com cerca de 4,6 mil participantes, e abrange pacientes com próteses de várias marcas, incluindo a Silimed.

A empresária paulistana Bianca Malandrino, uma das administradoras do grupo, implantou em 2008 suas próteses, de fabricação chinesa. Como muitas mulheres que fazem o procedimento, ela queria melhorar sua autoestima (há também as pacientes que colocam as próteses não com finalidade estética, mas para reconstruir as mamas depois de um câncer, por exemplo). “No início da adolescência, eu via que os seios das outras meninas cresciam, mas os meus não”, ela contou à piauí. “Era algo que me incomodava demais, então desde os 12 anos eu já pensava em colocar os implantes.” Pagou 7 mil reais pelo procedimento, ou 12,3 mil reais em valores atualizados. Hoje, um par de próteses mamárias de silicone custa entre 2,5 mil e 3,8 mil reais, fora os custos com a operação e a internação, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.

Cinco anos depois da operação, porém, Malandrino passou a ter dores musculares, queda de cabelo, ansiedade, falta de libido e perda de memória. Na mesma época, também foi diagnosticada com bursite no ombro, uma inflamação da bolsa de líquido que fica entre um osso e partes móveis do corpo, como tendões e músculos. “De tudo, o maior problema era não ter um diagnóstico exato”, contou. “Ninguém me dava uma explicação e eu me perguntava cada vez mais o que estava acontecendo com meu corpo.”

No grupo do Facebook, Malandrino conheceu histórias semelhantes à sua e achou uma possível explicação para seu quadro clínico. Ela descobriu ali pacientes que alegam ter o que chamam de “doença do implante mamário” (BII na sigla em inglês), um distúrbio que combina diversos sintomas, de perda de cabelo e dores musculares a doenças autoimunes. Embora a BII não seja reconhecida pela comunidade médica, os relatos nas redes sociais convenceram Malandrino a retirar as próteses em janeiro deste ano. “É muito assustador saber que há algo dentro de você que te faz mal”, afirmou. A paciente compartilhou na rede social imagens de cada etapa da retirada. “Lá, cada uma incentiva e encoraja a outra. Ter amigas que te apoiam e que passaram por isso é um conforto sem tamanho.”

A empresária Bianca Malandrino, uma das administradoras do grupo no Facebook para alertar sobre os riscos dos implantes mamários de silicone. FOTO: Arquivo pessoal

 

Embora o distúrbio do implante de mama apareça com frequência nos relatos das pacientes, não há na literatura médica evidências de que as próteses de silicone possam causar doenças autoimunes ou sistêmicas e “não há explicação patofisiológica ou um teste de diagnóstico” para a doença, conforme concluíram três cirurgiões plásticos da Universidade de Wisconsin que se debruçaram sobre a BII, em um estudo do ano passado.

Em entrevista à piauí, o mastologista Cícero Urban afirmou que os relatos atribuídos ao distúrbio do implante de mama talvez se expliquem por processos infecciosos ou outros fatores, e que provavelmente não se devem a uma nova doença. “É preciso analisar caso a caso”, ponderou. “Em medicina, são necessários estudos complexos para estabelecer a relação de causa e efeito entre os sintomas e uma determinada condição. Não é possível afirmar a existência de uma determinada situação sem essa comprovação.”

 

Seria uma cirurgia simples, um presente para o marido em celebração aos 25 anos de casamento. Em junho de 2003, Ana Beatriz Pagano procurou um cirurgião plástico em Campinas, no interior paulista, decidida a aumentar o tamanho dos seios. A cirurgia foi feita ainda naquele mês, com próteses da Silimed. Em julho, porém, começou a vazar um líquido vermelho das cicatrizes. Por duas vezes, o médico drenou a secreção, mas, no fim de agosto, diante de claros sinais de infecção, retirou as próteses e enviou o produto para análise no Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo. O laboratório concluiu que Pagano fora infectada com a bactéria Mycobacterium fortuitum, que provoca irritação e feridas na pele. Para se livrar da infecção, teve de tomar antibióticos potentes por nove meses.

Ela não era a única na cidade infectada pela bactéria, parente próxima do microrganismo que causa a tuberculose. Entre fevereiro de 2003 e abril de 2004, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo investigou 41 casos suspeitos de infecção pela mesma bactéria em Campinas, dos quais catorze foram confirmados e outros catorze apresentaram quadro clínico compatível com a infecção pela bactéria, embora não houvesse comprovação laboratorial. Em comum, todas as vítimas eram mulheres e haviam implantado próteses mamárias, a maioria fabricada pela Silimed.

Em abril de 2004, a Vigilância Sanitária paulista suspendeu o uso e a comercialização de três lotes de próteses e dos medidores fabricados pela empresa, e lacrou a sede da Ortonal, distribuidora da Silimed na região. Os medidores funcionam como moldes que o cirurgião usa para determinar o tamanho da prótese a ser implantada. Na operação, eles são colocados no corpo da paciente para saber qual implante deixará os seios mais harmônicos. Por serem reutilizáveis, precisam ser esterilizados para evitar a contaminação entre pacientes.

Com base na denúncia de Pagano, a Polícia Civil de Campinas instaurou inquérito para apurar o caso. Descobriu-se então que os medidores da Silimed não tinham registro na Anvisa, a agência federal responsável por regulamentar medicamentos e dispositivos médicos em circulação no Brasil. Esse fato, aliado a falhas no preenchimento dos prontuários das pacientes, prejudicou a investigação da Vigilância Sanitária, que não conseguiu atribuir o surto aos medidores. “A associação do uso de medidores com a ocorrência dos casos não pôde ser estatisticamente confirmada devido à insuficiência dos registros quanto ao uso deste item em grande parte dos prontuários avaliados, à falta de registro dos métodos de processamento aplicados, bem como à impossibilidade de rastreabilidade do produto”, afirmou num relatório Magno Castelo Branco Fortaleza, técnico da Vigilância Epidemiológica de Campinas.

Outro detalhe chama a atenção no inquérito. Em depoimento à polícia, o cirurgião Ismar Vieira, que operou Ana Beatriz Pagano, disse que os medidores eram “emprestados” pela Ortonal e que cabia à empresa a esterilização do produto após a devolução pelo médico. Os donos da Ortonal, por sua vez, rebateram a afirmação – segundo eles, os moldes não eram recolhidos e a esterilização era incumbência dos médicos.

A contradição não foi explorada pelo delegado Luís Paulo de Oliveira Silva, titular do 3º Distrito Policial de Campinas, responsável pela investigação. Mesmo assim, em 2011 o Ministério Público denunciou os donos da Silimed na época (Antoine Robert, Margaret e Hanus Klinger) e os da Ortonal por venderem produto médico – no caso, os medidores – sem registro na Anvisa, crime previsto no artigo 273 do Código Penal, com penas de um a dois anos de prisão. No entanto, o então juiz da 3ª Vara Criminal de Campinas, Nelson Augusto Bernardes de Souza, rejeitou a denúncia, com o argumento de que a acusação da Promotoria era “genérica” por não descrever as condutas de cada um dos denunciados. O Ministério Público recorreu e o Tribunal de Justiça de São Paulo mudou a decisão do juiz de primeira instância e determinou a abertura da ação penal. A defesa da Silimed impetrou sucessivos recursos tanto ao tribunal paulista quanto ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, todos negados. Em outubro, a 3ª Vara Criminal em Campinas ainda aguardava o retorno do processo para iniciar a ação penal.

A fabricante de próteses informou em nota que “segue à disposição da Justiça em acompanhamento aos procedimentos legais, que, acreditamos, irão demonstrar que a contaminação não teve qualquer relação com os produtos comercializados pela Silimed”. A defesa dos proprietários da Ortonal não se manifestou.

Ana Beatriz Pagano também ingressou com ação cível por danos morais e materiais contra a Silimed, mas teve seus pedidos negados tanto pela 7ª Vara Cível de Campinas quanto pelo Tribunal de Justiça paulista. Após tantas complicações à saúde, ela não voltou a tentar implantar próteses mamárias.

Em novembro, a Silimed respondia no Brasil a 53 ações judiciais ainda não julgadas. Em todas, a empresa é acusada de provocar danos morais e materiais em mulheres que optaram por próteses mamárias da marca.

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