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    À frente da marcha pelo clima, realizada em Glasgow no último sábado (6), indígenas Carajás seguram a bandeira do Brasil Fotos: Bernardo Esteves

cartas de glasgow

Vozes indígenas contra Bolsonaro

Funcionário do governo intimida Txai Suruí e Brasil recebe antiprêmio por ataques ao discurso da ativista na conferência do clima com maior delegação de povos originários

Bernardo Esteves | 08 nov 2021_13h32
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O Brasil recebeu uma distinção pouco alvissareira no final da primeira semana da COP26, a conferência do clima que acontece até o dia 12 em Glasgow, na Escócia. O país foi agraciado neste sábado com o Fóssil do Dia, um antiprêmio distribuído aos países que mais obstruem a luta contra a crise climática, concedido pela Climate Action Network, uma rede de mais de 1 500 ONGs ambientais internacionais. O prêmio foi dado pelo “tratamento terrível e inaceitável” dispensado pelo país a seus povos indígenas, em particular por causa dos ataques do governo a Txai Suruí, a jovem ativista de 24 anos que discursou na cerimônia de abertura do evento.

“Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis”, disse em seu discurso Suruí, a única brasileira a falar aos chefes de Estado reunidos na cerimônia. “Vamos acabar com a poluição das palavras vazias, e vamos lutar por um futuro e um presente habitáveis.”

Dois dias depois, a jovem indígena foi atacada pelo presidente Jair Bolsonaro – que não veio  à conferência – numa conversa com apoiadores diante do Palácio da Alvorada. “Levaram uma índia para [Glasgow] – para substituir o Raoni – para atacar o Brasil”, disse o presidente, sem nomear Txai Suruí. “Alguém viu algum alemão atacando a energia fóssil da Alemanha? Alguém já viu atacando a França porque lá a legislação ambiental não é nada perto da nossa? Ninguém critica o próprio país. Alguém viu o americano criticando as queimadas lá no estado da Califórnia. É só aqui.”

Os ataques do governo não se resumiram à fala do presidente. No próprio dia da abertura do evento, enquanto dava entrevistas para meios de comunicação do Brasil e do exterior, Suruí foi acompanhada de perto por um homem que portava um crachá da delegação brasileira em Glasgow. A jovem foi abordada por ele após falar a uma tevê belga. “Quando terminei a entrevista ele veio meio que me intimidar dizendo que não era para falar mal do Brasil e que o Brasil estava aqui para ajudar”, ela disse à piauí.

O gerente de projetos da Secretaria de Clima e Relações Internacionais do Ministério do Meio Ambiente, Luiz Vicente Aguilar, observando Suruí falar para a mídia internacional


O homem em questão era Luiz Vicente Vicentin Aguilar, gerente de projetos da Secretaria de Clima e Relações Internacionais do Ministério do Meio Ambiente, cargo comissionado para o qual foi nomeado em setembro de 2020. Graduado em engenharia metalúrgica, Aguilar tem 61 anos e foi candidato a vereador de São Paulo pelo Partido Novo em 2016, tendo recebido 1 365 votos. O funcionário do governo não retornou o pedido de entrevista feito pela
piauí

Suruí disse que passou a receber ataques pelas redes sociais depois da crítica de Jair Bolsonaro. “Antes mesmo do pronunciamento dele eu já estava recebendo várias mensagens racistas, mas depois disso aumentou”, afirmou. “Eu já esperava a retaliação, a gente sabe como são os seguidores do Bolsonaro”, continuou a indígena, que evita ler os comentários e adota estratégias de segurança digital para se blindar dos ataques. Suruí teme pelo que pode enfrentar quando voltar ao Brasil. “Fico preocupada não só por mim, mas por quem está ao meu lado.”

Após discurso na COP26, Suruí recebeu ataques do presidente Bolsonaro e de seus apoiadores

 

Os ataques do presidente acontecem durante a conferência do clima com presença recorde de indígenas brasileiros. Mais de quarenta lideranças, na maioria mulheres, vieram a Glasgow defender a sua participação nas negociações climáticas e reivindicar direitos como a demarcação de seus territórios. “É urgente a nossa participação nesses espaços de decisão, uma vez que nossos direitos conquistados estão sendo retirados pelo governo brasileiro”, disse Sonia Guajajara, uma veterana das conferências do clima que participa das COPs desde 2014.

Guajajara é uma das lideranças indígenas brasileiras que podem ser vistas circulando nos corredores da conferência, mas também estampando outdoors espalhados pelas ruas de Glasgow, ao lado de Célia Xakriabá e Glicéria Tupinambá, numa campanha financiada por ONGs britânicas. Ela estava também na linha de frente dos indígenas brasileiros e latino-americanos que marcharam por quatro horas pelas ruas de Glasgow no sábado (6/11), reivindicando justiça climática e respeito aos direitos dos povos originários. “O colonialismo causou a mudança do clima, os povos indígenas são a solução”, dizia uma faixa carregada por eles.

A marcha teve em mais de um momento o coro de “Fora Bolsonaro”, puxado pelos brasileiros e engrossado por participantes de várias nacionalidades. O fim do evento foi marcado por um canto em homenagem ao Rio Watu, como os indígenas chamam o Doce, afetado por uma tragédia ambiental que completou seis anos na semana passada. Em novembro de 2015, rejeitos de mineração foram lançados no rio após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), operada pela Samarco, que por sua vez é controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton.

Em Glasgow, as lideranças indígenas brasileiras têm participado de agendas com nomes como John Kerry, o representante do governo norte-americano para o clima, o príncipe Charles, herdeiro do trono britânico, ou o ator e ambientalista Leonardo DiCaprio. Nesses encontros, lembram a importância dos povos originários na luta contra a crise climática ao proteger as florestas em seus territórios. No Brasil, menos de 2% do desmatamento verificado na Amazônia entre 1985 e 2019 aconteceu em terras indígenas, conforme mostram números do Mapbiomas.

Os povos originários querem ter voz nas negociações que estão decidindo o futuro do planeta. “Os anúncios feitos na COP26 não consideraram a participação dos povos indígenas”, afirmou Guajajara. “Não haverá solução para a crise climática se não houver a demarcação dos nossos territórios.”

Guajajara disse ainda que as lideranças estão se articulando para a ocupação de espaços na política institucional, e que pretendem lançar candidaturas de mulheres indígenas ao Congresso nas eleições de 2022. Na legislatura atual, Joenia Wapichana, da Rede de Roraima, é a única representante dos povos originários – ela é também a primeira mulher indígena na história a se eleger para o parlamento.

Wapichana está na COP26 desde a semana passada, após ser incluída de última hora na relação de deputados que representariam o Congresso brasileiro em Glasgow (só foi incluída na lista pelo presidente da Câmara Arthur Lira após discursar na tribuna defendendo a importância da presença indígena na conferência). Outra veterana das COPs, a deputada disse que a presença dos povos originários nesse espaço está ganhando importância, mas ainda não é suficiente. “Aumentou a participação e o reconhecimento, mas está faltando o financiamento para que os povos indígenas possam continuar protegendo seus territórios e fazendo o enfrentamento das mudanças climáticas.”

Recém-chegada a Glasgow, Wapichana soube pela reportagem da piauí que Txai Suruí havia sido atacada pelo presidente na véspera. A deputada disse que o episódio era lamentável e que a jovem ativista só tinha apresentado fatos em sua fala. “A imagem ruim de nosso país é o próprio presidente, que não trouxe qualquer proposta para a COP”, afirmou. “Ele poderia ter tido uma reação diferente, dizendo que vamos fazer a proteção das terras indígenas, tirar os garimpeiros das áreas indígenas e investir em órgãos de fiscalização. É uma vergonha o Brasil ter um presidente como Bolsonaro.”

* A hospedagem do repórter em Glasgow foi financiada pelo Instituto Clima e Sociedade.

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