A esposa
Winter sleep – elogio à melancolia
“Minha mulher, Natalya Gavrilovna […] não tomava o menor conhecimento de como eu jantava, dormia, ou com quem me encontrava. Nossa relação um com o outro era simples e sem tensão, mas fria, vazia, e indiferente como são relações entre pessoas que estiveram separadas por tanto tempo que, mesmo vivendo debaixo do mesmo teto, não demonstram nenhuma proximidade. Não havia agora nenhum traço do amor passional e atormentado – às vezes doce, outras amargo como absinto – que eu tinha sentido por ela.”
“Minha mulher, Natalya Gavrilovna […] não tomava o menor conhecimento de como eu jantava, dormia, ou com quem me encontrava. Nossa relação um com o outro era simples e sem tensão, mas fria, vazia, e indiferente como são relações entre pessoas que estiveram separadas por tanto tempo que, mesmo vivendo debaixo do mesmo teto, não demonstram nenhuma proximidade. Não havia agora nenhum traço do amor passional e atormentado – às vezes doce, outras amargo como absinto – que eu tinha sentido por ela.”
Essa passagem do conto , de Tchekhov, na qual o personagem central descreve a relação com sua mulher, é a situação dramática que inspirou o roteiro de Winter sleep, escrito pelo também diretor Nuri Bilge Ceylan e sua mulher, Ebru Ceylan. Situação dramática entendida, aqui, como Etienne Souriau definiu em 1950 – “a forma particular de tensão inter-humana e microcósmica do momento cênico”.
Outro conto de Tchekhov, Pessoas excelentes, serviu para compor o perfil de Aydin, principal personagem de Winter sleep, e de Necla, sua irmã recentemente divorciada. Nesse conto, Vladimir Semyonitch Liadovsky é um “literato por inteiro” que escreve artigos semanais sobre assuntos literários para um obscuro jornal de província – “[…] seus escritos e sua maneira de escrever, qualquer que fosse o assunto, eram parte orgânica dele, como a batida do seu coração, e todo seu programa literário devem ter feito parte do seu cérebro enquanto foi um bebê no útero da sua mãe.” Vera, irmã dele, parecia exausta e tinha aspecto doentio – “À noite, ela tinha o hábito de bocejar nervosamente e fazer perguntas curtas e abruptas, nem sempre relevantes, sobre os artigos do irmão:
‘Volodya’, ela perguntou, ‘o que quer dizer não-resistência ao mal?’
‘Não-resistência ao mal!’, repetiu o irmão, abrindo os olhos.
‘Sim. O que você entende por isso?’
‘Veja, querida, imagine que ladrões ou bandoleiros a ataquem e você, em vez de…’
‘Não, me dê uma definição lógica.’
‘Uma definição lógica? Hum! Bem.’ Vladimir Semyonitch ponderou. ‘Não-resistência ao mal quer dizer uma atitude de não-interferência em tudo que na esfera da mortalidade é chamado de mal’”
Winter sleep, em turco, quer dizer hibernação que, por sua vez, além de “ato de abrigar-se durante o inverno”, ensina o Houaiss, também significa “estado de torpor, de adormecimento; inação, modorra”. É um título que indica como poucos o tema do filme.
Ceylan adquiriu a confiança necessária para tomar os dois contos de Tchekhov como fonte de inspiração a partir do sucesso de Era uma vez na Anatolia, seu filme anterior, também inspirado em Tchekhov, pelo qual recebeu, em 2011, o Grande Prêmio do Júri em Cannes, ex aequo com O garoto de bicicleta, dos irmãos Dardenne. Confiança suficiente para Winter sleep ter 3 horas e 16 minutos de duração, aposta arriscada mas afinal vitoriosa. No ano passado, o filme ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes, e vendeu mais de 300.000 ingressos na França que correspondem à receita de mais de 2 milhões de dólares. Resultado excepcional, é verdade, só comparável ao na própria Turquia onde rendeu cerca de 1 milhão e meio de dólares. Produzido por 3 milhões de euros, está longe, portanto, de ser um sucesso comercial.
Mas, se a duração de Winter sleep por si só já é um desafio para o espectador condicionado pela duração padronizada da maioria dos filmes, inferior a duas horas, barreira ainda maior é a exigência de atenção para a narrativa sóbria, através de planos de conjunto fixos, pouquíssima música, em tom menor, distante dos requisitos habituais do entretenimento cinematográfico. Essas características devem explicar a demora para Winter sleep estrear, o que só ocorre um ano depois de ter recebido a Palma de Ouro e, mesmo assim, ao menos no Rio, inicialmente em apenas um cinema com duas sessões diárias às 14h e às 20h15. Passadas duas semanas, permanece em exibição, agora em 4 salas e 5 sessões diárias. Que um filme como Winter sleep fique tanto tempo na prateleira, não tenha circuito melhor e seja exibido para público minguado é um retrato lastimável da baixa qualidade do nosso comércio cinematográfico e do nível cultural inferior que impera entre nós.
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Em entrevista ao The Guardian, Ceylan declarou: “Eu não gosto de comédias; não gosto de rir” e rebentou a rir. “Algumas pessoas vão a esses…entretenimentos. Eu gosto mais de coisas melancólicas. Gosto de rir entre amigos, é claro.”
Como é bom ler isso.
“Referindo-se a Winter sleep, Ceylan disse ao The New York Times que é “sobre a vida. Meus filmes são principalmente sobre seres humanos tentando entender relações humanas. A história, ou o que está acontecendo, não é tão importante. […] A ambiguidade é parte da vida – essa é a questão pela qual vale a pena fazer filmes.” Ceylan “desdenha as convenções de Hollywood que envolvem lições bem embaladas”, escreve o entrevistador do The New York Times. “Eles querem um treinador de vida”, diz Ceylan. “Eu só estou tentando mostrar a vida como ela é.”.
“A melancolia parece fazer da vida um lugar que tem mais sentido”, segundo Ceylan.
Assistir a Winter sleep é uma experiência gratificante.
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