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    José Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina e tradutor do tropicalismo para os palcos, morreu aos 86 anos em São Paulo Foto: Karime Xavier/Folhapress

obituário

Zé Celso, o diretor que forjou o teatro mais brasileiro

Como o criador do Oficina revolucionou os palcos nacionais, além de formar gerações de atores e diretores

Maria Carolina Maia | 06 jul 2023_18h39
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Na madrugada de segunda para terça-feira, o dramaturgo e diretor teatral Fernando de Carvalho se despediu do parceiro José Celso Martinez Corrêa e encerrou mais uma jornada de trabalho. Desde fevereiro, eles se encontravam quase todos os dias pela internet para avançar em um trabalho considerado pelo fundador e diretor do Teatro Oficina o mais difícil da sua vida: a adaptação de A Queda do Céu, o livro de tom profético do xamã yanomami Davi Kopenawa, escrito em parceria com o etnólogo francês Bruce Albert e lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Os encontros aconteciam de segunda a sábado, entre as 20 horas e a meia-noite. Foi ali que Zé disse adeus a Carvalho, se queixando de frio. E estava mesmo frio em São Paulo: o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) previa para aquela madrugada a menor temperatura do ano, com mínima de 8°C em média na cidade, e sensação térmica de 6°C. Por isso, antes de se deitar na cama, Zé Celso ligou o aquecedor.

Entre sete e oito da manhã da terça-feira, seu quarto estava em chamas, ao que tudo indica provocadas por algum problema com o aparelho elétrico. O marido, Marcelo Drummond, que mora no apartamento ao lado do diretor, chegou correndo acompanhado de outros dois atores que vinham dividindo o imóvel conjugado: Ricardo Bittencourt, amigo de longa data que organizou o matrimônio do casal, realizado há exato um mês no Teatro Oficina, e Victor Rosa, que teve mãos e pés queimados ao retirar Zé do quarto incendiado. Levado para o Hospital das Clínicas e submetido a todo o tratamento necessário, o diretor não resistiu e morreu na manhã desta quinta-feira, aos 86 anos, 65 de Oficina e quase 38 de relação com Drummond.

“Me despedi, desejei boa-noite, o Zé falou que estava muito frio em São Paulo. Mas ele estava empolgadíssimo. O Zé era um fanático pelo trabalho e havíamos acabado a segunda fase da dramaturgia de A Queda, iríamos para a terceira e última, a estrutural”, conta Fernando de Carvalho, ao lembrar a última conversa com o criador do Oficina. O livro de mais de setecentas páginas vinha sendo adaptado desde o início do ano. A primeira fase foi feita a dez mãos. Fernando e Zé adaptaram capítulo a capítulo do livro em parceria com Felipe Botelho, Pedro Felizes e Roderick Himeros. Na segunda fase, Fernando e Zé burilaram a poesia e a música da peça. A fase estrutural desembocaria nos ensaios, previstos para o segundo semestre.

Zé Celso tinha pressa de montar A Queda do Céu. Ele e Fernando já haviam feito duas parcerias. Uma transcriação – como Zé gostava de dizer – do Fausto de Christopher Marlowe, montada no ano passado no Sesc. E outra de Heliogábalo, em torno do texto original de Antonin Arnaud, publicado pela editora N-1, mas ainda não encenado. Com a vitória de Lula nas últimas eleições presidenciais, o diretor entendeu que era hora de priorizar A Queda. “O governo Lula tem muito mais a ver com a luta indígena, com a nossa amiga Sonia Guajajara”, disse Zé Celso na semana passada, em uma leitura da sua adaptação diante de indígenas, no Sesc Pinheiros.

 O diretor estava visivelmente feliz com o resultado. “Ao refinar a dramaturgia, estamos trazendo à tona, cada vez mais, a poesia e a música do texto, que já é naturalmente poético e musical” disse no encontro no Sesc. “Tem uma cena que é sobre a árvore dos cantos, que é uma metáfora linda. A árvore produz cantos, e as pessoas vão colhê-los.” 

Poesia e musicalidade são dois aspectos evidentes na obra de Zé Celso, que se iniciou no teatro ao lado da irmã Anna Maria, 90, ainda jovem em Araraquara, e aos poucos foi buscando um caminho mais político, que encontrou ao lado de colegas como Renato Borghi, o primeiro namorado, e de outros artistas com quem formou o Oficina em 1958 na Faculdade de Direito da USP. Oswald de Andrade – de quem Zé Celso encenou uma anárquica versão de O Rei da Vela em plena ditadura (1967) – e sua antropofagia deram o toque final à proposta teatral do diretor – e ele diria artístico-cosmopolítico-orgiástica. Discípulo oswaldiano, Zé Celso casou Brasil e Grécia, Exu e Dionísio, a tropicália e o coro da tragédia.

Zé também estava claramente ansioso. Trabalhava sem parar e nas últimas semanas cuidou de dois assuntos caros para si e para o Oficina. A sua sucessão, sacramentada em junho em duas sessões de uma assembleia em que Marcelo Drummond assumiu a vice-presidência da companhia, ficando pronto para substituí-lo. E o destino do Parque do Rio Bixiga, que a companhia quer abrir à cidade desde que a arquiteta Lina Bo Bardi, principal responsável pela forma final do teatro, traçou a ideia em uma folha de papel. Nesta semana,  o deputado estadual Eduardo Suplicy, autor do projeto do parque quando era vereador, pediu celeridade à Câmara Municipal de São Paulo. A muda de ipê que Fernanda Montenegro e Fernanda Torres deram de presente de casamento era um chamado para retomar essa luta, disse Zé.

“Minha relação com o Zé é de muito amor. Não estou entendendo nada ainda, eu tinha certeza de que ele se salvaria”, disse Fernando, na manhã desta quinta, pouco depois de receber a notícia da partida de Zé Celso. Nos últimos tempos, Zé Celso evitava chorar a morte, destacando sempre a eternidade – ou “ethernidade”, como escrevia. Em seguida, nessa mesma toada, Fernando enviou à reportagem, por WhatsApp, uma poesia em homenagem ao parceiro: “Sempre Ligado no Tempo/Paixão y Presença/Ethernidade.”

Camila Mota, primeira mulher a assinar uma direção no Teatro Oficina, onde apresenta até 23 de julho Mutação de Apoteose, uma verdadeira ode a Zé Celso, deixou a vice-presidência da companhia para dar lugar a Marcelo, e é hoje diretora-executiva do grupo. Camila diz que foi forjada pelo diretor, com quem passou mais da metade da vida , e com quem aprendeu a “cantar a tragédia”.

“O Zé é fissurado por coro, e eu nasci no coro do Teatro Oficina. Tenho paixão por coro, uma vontade de estar junto de muita gente, de saber que o teatro tem uma força inigualável para descobrir pontos, encontrar soluções e gerar vida. Acho que essa é a maior formação que pude ter com o Zé. Saber que o nosso trabalho é um trabalho que gera vida, que gera pulsão de vida. Entender que a vida tem de ser buscada e gerada a todo momento. Mesmo numa tragédia como essa que vivemos agora. A tragédia sempre foi muito cantada pelo Zé e vamos cantar essa tragédia juntos.”

Falar de Zé Celso e do Oficina é falar sobre uma cosmovisão de mundo, de Brasil e de teatro, como ao próprio aprazeria dizer. Não à toa, Bete Coelho, uma das atrizes mais reconhecidas da lavra do Bixiga, diz que o diretor “transformou” a sua vida. “Quando falamos em formação teatral, e em se tratando do Zé, essa divisória da vida e teatro é bem tênue ou quase inexistente. Ele transformou a minha vida, se olharmos sob o ponto de vista estrutural da invenção teatral sem paredes, juntos ao público, anarquista, e meticulosamente acontecendo em todos os cantos do teatro. Ele me ensinou a presentificar minha atuação em meio às pessoas da plateia”, diz a atriz. “Cacilda! me fez perder o rumo de casa. Também foi bem simbólico, porque aquilo significava o renascimento do teatro. Zé e insubstituível! Único! Gênio. Ninguém que trabalhou com ele descansou na indiferença.”

Leona Cavalli, outra atriz de Cacilda! a fazer fama fora do teatro, diz ter aprendido com Zé Celso a sacralidade do teatro e o amor pela arte e pela vida. “Foi ele quem me mostrou a força do Teatro Sagrado, que trago comigo para sempre. Como eu, muitos começaram e aprenderam com ele. Sua paixão pelo teatro era avassaladora, e irradiava para todos, no palco ou onde quer que estivesse. O Zé foi e continuará sendo uma revolução constante de amor e liberdade. Talvez por isso, seja uma das pessoas mais importantes da história do teatro no mundo”, afirma Leona. “Pessoalmente meu amor e gratidão são eternos. Como ele me disse, na última vez em que o vi, um mês atrás, no seu incrível casamento com Marcelo Drummond, na hora em que nos despedimos: ‘Até sempre.’ Até sempre e para sempre, Zé!”

O diretor de cinema Fernando Coimbra, do ótimo suspense O Lobo atrás da Porta, foi outro profissional forjado por Zé Celso – e a ideia da forja não se repete aqui à toa: ela é parte da proposta do Oficina, como indica a bigorna da fachada do teatro, na já lendária Rua Jaceguai. Fernando Coimbra fazia faculdade de cinema na USP quando, em visita a Ribeirão Preto, sua cidade natal, acompanhou um ensaio aberto de As Bacantes e caiu de amores no ato pela companhia do Bixiga. Ao saber que o grupo precisava de alguém para registrar o espetáculo em vídeo, correu para o teatro.

“Eu trabalhei doze anos no Teatro Oficina. Entrei com 19, fui ator, diretor de vídeo, assistente de direção do Zé em A Terra, de Os Sertões, dramaturgo em O Homem, também de Os Sertões, escrevendo com o Zé no teatro e no apartamento que pegou fogo. Eu digo que fiz faculdade de cinema na USP, mas a minha formação mesmo foi no Oficina. Formação artística, humanística, de visão de mundo, de sociedade, de política, de tudo. O Zé foi um mestre, abriu muito a minha cabeça. Um cara muito radical, mas também muito aberto, bebia de tudo, um antropófago, que me ensinou a me abrir para o mundo e me alimentar de tudo sem preconceito. Onde havia inovação, ele estava.”

 

Um pouco afastado do Oficina por seus projetos de cinema, Fernando voltou a se aproximar em 2019, ao assistir à bela montagem de Roda Viva, e neste ano foi instado por Zé Celso a filmar seu casamento, no qual também colaborou no roteiro. “Topei no ato, porque quero retribuir por tudo o que recebi.” O material filmado, do casamento e da última assembleia com Zé Celso, vai se tornar um filme, ainda em maturação.

“Zé é mais do que meu mestre, Zé e Marcelo sempre foram irmãos, a minha família. É difícil agora pensar nele apenas como o diretor que me forjou. Perdi a minha base familiar, meu lar, meu irmão. Ele é o cara que fez a minha cabeça na vida adulta, como ator e como ser humano”, diz Ricardo Bittencourt, cerimonialista do casamento de Zé Celso e Marcelo, e dos amigos mais íntimos do dramaturgo.

Seu duplo, como o próprio Zé Celso o definiu, o ator Marcelo Drummond mal podia falar na manhã desta quinta. Ainda assim, encontrou voz para uma última declaração ao marido, e para reafirmar um compromisso de toda a vida. “Hoje, só posso dizer que o nosso amor fez todo esse mundo do Teatro Oficina, e que o Teatro Oficina vai continuar.”

De toda a produção do diretor, o Teatro Oficina é, sem dúvida, a sua maior obra. É lá que, numa fonte, está gravada a palavra “ethernidade”. É possível que Zé Celso, que há anos tinha todos os seus movimentos registrados em vídeo, tenha cuidado de passar o teatro aos cuidados do marido, seu parceiro mais constante no Oficina há quase quarenta anos, para seguir re-existindo, como preferia grafar. Hoje está claro. Enquanto houver Oficina, vai haver Zé Celso.

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