Chimpanzés sequestrados
Direitos iguais para os bichos
Roberto Kaz | Edição 109, Outubro 2015
Em dezembro de 2013, o advogado Steven Wise adentrou um tribunal de Justiça do estado de Nova York com um pedido de habeas corpus debaixo do braço. Do arrazoado de 106 páginas constava o sexo de seu cliente – “masculino” –, a idade – “26 anos, segundo informações” – e as condições do cárcere – “uma jaula de cimento, pequena e escura, em isolamento solitário”. O cliente, ele esclarecia, era “um chimpanzé, conhecido como Tommy”.
“O balconista ficou surpreso”, contou o advogado recentemente. “Nunca tinha visto algo do tipo.”
Aos 64 anos, Wise é a maior autoridade americana em direito dos animais. Preside o Nonhuman Rights Project, organização não governamental fundada em 2007 para mudar a forma como chimpanzés, gorilas, orangotangos, elefantes, orcas e golfinhos são tratados pela lei do país. “Esses animais são vistos como coisas, e coisas não dispõem de direitos básicos”, explicou. Em termos jurídicos, ele reivindica que certos bichos sejam promovidos ao status de “pessoa legal”, categoria que por enquanto abarca uma única espécie – a nossa.
A opção de Wise por proteger primatas, paquidermes e cetáceos baseou-se na farta literatura científica que atesta a complexidade emocional desses animais. Chimpanzés têm cultura própria (o repertório vocal de uma tribo da Tanzânia é distinto de outra da Costa do Marfim); elefantes inventam ferramentas (usam galhos para se coçar ou para espantar mosquitos); golfinhos são altruístas (vocalizam em desespero quando veem um indivíduo da espécie sendo capturado). Todos se reconhecem no espelho – o que, em termos técnicos, significa autoconsciência.
Por ora, o Nonhuman Rights Project impetrou três pedidos de habeas corpus na Justiça americana. Além de Tommy (que é animal de estimação de um casal), a organização briga pela liberdade do chimpanzé Kiko (confinado, como Tommy, numa casa particular) e da dupla Hercules e Leo (pertencentes a um centro de pesquisa médica). São os últimos quatro chimpanzés enjaulados no estado de Nova York.
A esperança é de que sejam enviados a um santuário animal, onde possam viver em liberdade.
Steven Wise é um homem corpulento, com o rosto marcado. Divide uma casa na Flórida com a mulher, com quem tem três filhos e um enteado. Trabalha num escritório atulhado de papéis, processos e livros sobre direito e escravidão. Vestia uma camiseta branca, com a foto de um chimpanzé e a frase “Te vejo no tribunal”.
Wise era advogado em Boston nos anos 80 quando leu o livro Libertação Animal, do filósofo australiano Peter Singer. Na obra, que daria início a vários movimentos em defesa dos bichos, Singer argumentava que ignorar o sofrimento de uma espécie era tão injustificável quanto discriminar uma pessoa pela cor ou pelo sexo. “Foi um divisor de águas”, lembrou. “Resolvi ser advogado para lutar por justiça social. E ali havia uma grande demanda por justiça social, sem que advogado algum se interessasse. Percebi que poderia fazer diferença.”
Em 1985, virou presidente da organização Attorneys for Animal Rights. Seis anos depois, tentou processar um aquário de Massachusetts que cedera um golfinho para testes da Marinha. Wise ainda representaria em litígios judiciais cachorros, gatos e até animais de que não gosta, como serpentes. Perceberia um avanço em estatutos que regem a forma como os bichos são tratados, mas perceberia também que nenhum estatuto modificaria a condição primordial desses bichos: a de que ainda são vistos como mera propriedade. Pelo código atual, os donos de Tommy, Kiko, Hercules e Leo têm todo direito de manter os chimpanzés encarcerados.
Por isso fundou o Nonhuman Rights Project. E por isso passou sete anos analisando as leis de cada estado americano para identificar qual deles proporcionava um cenário jurídico mais favorável. Em 2012 reduziu a lista a seis estados – e contratou uma equipe para arrolar todo elefante, chimpanzé e golfinho neles aprisionados. Com a lista em mãos, decidiu por Nova York. “A corte de Nova York tem um histórico de respeito pela autonomia. E nós podemos provar que chimpanzés têm autonomia”, explicou. “Além disso, Nova York permite que uma mesma ação seja julgada várias vezes.” Foi assim que Wise chegou a Tommy, Kiko, Hercules e Leo.
Wise já deu aula em Harvard e na Universidade de Vermont. Diz trabalhar sete dias por semana, “quarenta horas com os chimpanzés e dez horas cuidando de casos particulares”. O Nonhuman Rights Project, que é financiado por doações, consome 350 mil dólares anuais. “Mas gostaria que o orçamento fosse dez vezes maior, para ter advogados disparando pedidos de habeas corpus no país inteiro.” Em novembro, deve dar entrada num processo em nome de um elefante.
Ele vê a libertação de Tommy como questão de tempo: “Nosso pedido é baseado nos conceitos de liberdade e igualdade que os próprios juízes defendem. Aplicar esses conceitos apenas a humanos é irracional e arbitrário.” Por ora, no entanto, todos os processos foram indeferidos em primeira e segunda instâncias – ainda que o juiz Joseph Sise, que avaliou o caso de Tommy, tenha lamentado “não poder assinar a ordem”. Wise disse que “o resultado era esperado”, e que “a mudança não virá facilmente”. Para além da argumentação científica, endossada por nove especialistas, ele evocou um precedente jurídico: em 1772, a Justiça americana expediu uma ordem de habeas corpus em nome de um escravo, quando escravos ainda eram considerados bens. Disse que vai continuar “atacando, atacando, atacando até que os juízes tomem uma decisão racional”.
“Não estamos interessados em proteção, ou na forma como esses chimpanzés estão sendo tratados”, explicou, aventando uma situação hipotética. “Se você fosse sequestrado e pudesse comparecer a um tribunal para ter seu caso julgado, a sentença não decorreria da maneira como você está sendo tratado. O que estaria em jogo é o fato de você ter sido sequestrado.” Após uma pausa, continuou: “Estamos lutando para que esses animais não sejam sequestrados.”