A tentativa de definir as linhas básicas de um novo tratado contra o aquecimento global quase naufragou na cúpula de Lima; negociações de última hora evitaram o fracasso total da reunião FOTO: ISAAC CORDAL_BERLIN, 2011_FOLLOW THE LEADERS SERIES
Cirurgia à peruana
A costura de um acordo do clima com obrigações para todos
Bernardo Esteves | Edição 100, Janeiro 2015
Passava da meia-noite de sábado quando os monitores espalhados pela Conferência do Clima da ONU, em Lima, anunciaram que os negociadores se reuniriam à uma da manhã, e que a plenária seria realizada na sequência. A portas fechadas, representantes de quase 200 países estavam definindo o resultado mais aguardado do encontro, ao qual todos se referem como COP, sigla em inglês para Conferência das Partes. Na primeira quinzena de dezembro, eles haviam tentado chegar a um acordo sobre as bases de um tratado para o combate ao aquecimento global.
No início da segunda semana do evento, o presidente da COP, Manuel Pulgar-Vidal, ministro do Meio Ambiente do país anfitrião, convidou os negociadores a celebrar o “espírito de Lima”. Anunciou o plano de terminar a semana erguendo um brinde de pisco com vinho às 18 horas do dia 12, sexta-feira, referindo-se às bebidas nacionais do Peru e da França, para selar a transição até a COP de 2015, em Paris. Na ocasião, espera-se, será assinado o novo acordo climático global – a “Aliança de Paris”, conforme alguns vêm chamando informalmente, que a partir de 2020 deve suceder o Protocolo de Kyoto.
Pairava o sentimento de que não se podia errar. O naufrágio da conferência de Copenhague, em 2009, quando os países não conseguiram apontar o caminho para um novo tratado, ainda estava vivo na memória de todos. “Esta é a última chance que temos”, disse o ministro Raphael Azeredo, diretor do Departamento de Meio Ambiente do Itamaraty e um dos negociadores brasileiros no Peru, numa entrevista em seu gabinete, algumas semanas antes da COP. “Um fracasso em Lima significa um fracasso em Paris.”
Compartilhado por colegas de outros países, o sentimento de urgência não bastou para que os negociadores chegassem a um consenso no prazo determinado. No início da noite de sexta, o embaixador José Antônio Marcondes de Carvalho, líder da equipe de negociadores do Brasil, estava insatisfeito com o texto que ora se apresentava – parecia-lhe pouco ambicioso, um retrocesso em relação aos compromissos já assumidos. “O documento padece de uma série de debilidades”, afirmou, recorrendo a um eufemismo.
As partes reunidas nas COPs são os 195 países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, além da União Europeia. A convenção foi instituída em 1992, durante a Cúpula da Terra realizada no Rio de Janeiro. Sua criação sinalizava a preocupação crescente com o aquecimento global provocado pela emissão de gases produzidos por atividades como a queima de combustíveis fósseis, a produção industrial, a agricultura, a pecuária ou o desmatamento.
Cientistas constataram que a concentração desses gases – ditos do efeito estufa – na atmosfera estava alcançando patamares inauditos, o que aumentaria a temperatura média do planeta, com consequências potencialmente funestas: maior frequência de secas, tempestades, furacões, inundações e outros eventos catastróficos, recrudescimento da fome, alastramento de doenças e ocorrência de conflitos.
Um dos objetivos da convenção era estabelecer um tratado internacional que resolvesse o problema – nos moldes do Protocolo de Montreal, exitoso ao conter o buraco da camada de ozônio na atmosfera. Assinado na COP de 1997, Kyoto só entrou em vigor em 2005, e impunha o compromisso de redução das emissões apenas para países desenvolvidos. O tratado se baseou num elemento central da Convenção do Clima: o reconhecimento de que diferentes países contribuíram de forma desigual para a elevação da temperatura do planeta. Os desenvolvidos, industrializados desde o século XIX, tinham mais responsabilidade histórica do que aqueles que ainda estavam se desenvolvendo. No texto da convenção, a discrepância se cristalizou na premissa de que os países têm “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”.
Mesmo entre as nações desenvolvidas, o Protocolo de Kyoto teve adesão limitada. Nos Estados Unidos, o acordo foi rejeitado pelo Senado por unanimidade. O Canadá ratificou-o, mas recuou após constatar que não cumpriria suas metas. Japão e Rússia avisaram que não cumprirão os compromissos assumidos para o período entre 2012 e 2020. O acordo abarcou apenas 15% das emissões globais, e só conseguiu desacelerar o aumento da emissão dos gases poluentes.
A dificuldade de se fechar um acordo internacional contra o aquecimento do planeta já foi comparada ao desafio de dividir uma conta de bar ao cabo de uma noitada. Uns comem e bebem desde o início da festa, alguns recém-chegados se fartam; uns tomam uísque, outros só bebem chope ou água. Quando cada um paga o que manda a consciência, nem sempre a conta fecha. Pois é isso que se tentará fazer no acordo de Paris: o tratado será baseado em compromissos voluntários, anunciados individualmente.
Cada país vai submeter sua proposta de contribuição ao longo do primeiro semestre; depois, um comitê designado pela Convenção do Clima avaliará se as ações anunciadas serão capazes de manter o aumento da temperatura média abaixo do limite de 2ºC em relação ao período anterior à Revolução Industrial – um patamar que talvez permita arcar com as consequências do aquecimento global (o mercúrio já subiu 0,85ºC desde 1880). Para isso, os cientistas estimam que seja necessária uma redução de 40 a 70% nas emissões globais até 2050, em comparação com 1990.
O embaixador José Antônio Marcondes de Carvalho é um gaúcho de cabelo e barba grisalhos, as sobrancelhas pretas. Em Lima, recebeu em várias ocasiões os repórteres brasileiros que cobriam a COP, convocados por um grupo de WhatsApp. Na noite de sexta, enquanto os negociadores alinhavavam o texto da decisão final, parecia mais tenso do que nas conversas anteriores: em duas ocasiões falou com voz mais firme, levemente acima do tom cordato com que costuma se dirigir aos interlocutores. Estava contrariado porque o documento não deixava explícita a diferenciação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. “Trata-se de uma cláusula pétrea da convenção que sequer está mencionada no texto”, afirmou.
Os países ricos não querem mais pagar a conta sozinhos. Alegam que já não faz sentido excluir países que fizeram avanços no combate à pobreza e que hoje, com economias robustas, estão entre os principais emissores de gases-estufa. Numa entrevista coletiva em Lima, Elina Bardram – líder da equipe europeia de negociadores – afirmou que o princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” tem que “ser aplicado de forma mais contemporânea e nuançada, porque o mundo não é estático”. E concluiu: “Não vivemos mais no mundo de 1992.”
O argumento foi reforçado de forma enfática por John Kerry, secretário de Estado norte-americano, durante uma visita relâmpago a Lima. “Não temos mais tempo para discutir de quem é a responsabilidade”, afirmou. Kerry admitiu que os Estados Unidos e outras nações haviam contribuído significativamente para o aquecimento global, mas num momento em que ainda não tinham conhecimento das consequências. Lembrou que os países em desenvolvimento respondem hoje por mais de metade das emissões globais de gases-estufa. “Um acordo ambicioso em Paris não é uma opção, é uma necessidade urgente.”
Europeus e norte-americanos chegaram a Lima de bem com a opinião pública. No fim de outubro, a União Europeia declarou que reduziria suas emissões em 40% até 2030 – tomando por base os níveis de 1990. Semanas depois, Estados Unidos e China fizeram um anúncio conjunto mais surpreendente, embora menos ousado. Barack Obama declarou que o país reduziria suas emissões entre 26 e 28% até 2025, em comparação com os níveis de 2005. Já o presidente Xi Jinping estabeleceu 2030 como ano limite para o crescimento das emissões chinesas, além de se comprometer a investir vigorosamente em energias renováveis – uma ação motivada em parte pela insatisfação dos chineses com a poluição nas grandes cidades. O anúncio conjunto animou os ambientalistas. Pela primeira vez, os dois maiores emissores – juntos, respondem por 42% de todo o carbono lançado na atmosfera – acenavam com ações incisivas de combate à mudança do clima.
Após o anúncio, especulou-se se a Índia – o terceiro maior emissor global – assumiria algum compromisso voluntário. Os ventos que sopram de Nova Delhi, porém, indicam o contrário: o país vem investindo pesado na exploração de carvão, o mais demonizado dos combustíveis fósseis, abundante no país, e vai priorizar a erradicação da pobreza – os indianos emitem quase dez vezes menos carbono que o norte-americano médio, e há 300 milhões de cidadãos (uma vez e meia a população brasileira) sem acesso a eletricidade.
Na diplomacia do clima, o Brasil negocia em bloco com China, Índia e África do Sul, com quem forma o grupo conhecido pela sigla Basic. A ministra Izabella Teixeira, do Meio Ambiente, se reuniu várias vezes com seus colegas do Basic e foi fotografada ao lado deles para sinalizar a união do grupo.
O Brasil também tinha trunfos para mostrar em Lima: em seu discurso, a ministra celebrou os dados recém-anunciados de redução anual do desmatamento na Amazônia, um índice que caiu 82% em dez anos. “O Brasil deixou de emitir 650 milhões de toneladas anuais de dióxido de carbono”, afirmou. A ministra não disse, porém, que as emissões brasileiras cresceram quase 8% em 2013, beirando 1,6 bilhão de toneladas de CO2. “Se o Brasil não reduzir suas emissões para abaixo de um bilhão de toneladas até 2030, não dará para limitarmos o aquecimento à meta de 2ºC”, disse o ambientalista Carlos Rittl, citando cálculos não publicados do Observatório do Clima, do qual é o secretário executivo.
Em dezembro, o tufão Hagupit passou pelas Filipinas, deixando um rastro de dezenas de mortos e centenas de milhares de desalojados – é o terceiro ano seguido que isso acontece durante a COP. “Enquanto estamos aqui discutindo, as emissões de carbono continuam aumentando”, notou a representante da África do Sul. Márcio Astrini, ambientalista do Greenpeace, sublinhou o descompasso entre a lentidão das negociações e o quadro ambiental urgente. “Não há a menor compatibilidade entre o que se discute aqui e a realidade”, notou. “Os países vieram a Lima interessados em proteger suas economias.”
No regime multilateral, as decisões devem ser tomadas por consenso, e quando isso envolve o compromisso entre duas centenas de posições a tarefa pode ser árdua. Não é incomum que as COPs se decidam nos últimos dias, em discussões que se arrastam madrugada adentro. Em Lima não foi diferente. Às duas e meia da madrugada do sábado, circulou um novo texto com a decisão final, que seria submetido à aprovação dos países. Tratava-se de um documento de quatro páginas, acompanhado do rascunho do acordo de Paris. Alguns quiseram aprová-lo na sequência, mas a sessão foi suspensa e a plenária foi marcada para as dez.
Quando os trabalhos foram retomados, horas depois, ficou claro que seria impossível aprovar o texto tal como estava. Os países em desenvolvimento se queixaram de que o documento não reconhecia o princípio da diferenciação entre as nações e priorizava apenas medidas de redução da emissão de gases do efeito estufa – queriam mais destaque aos mecanismos de adaptação, para que pudessem se preparar para fazer frente ao aquecimento global, além de ajuda financeira e tecnológica dos mais ricos.
Alguns fizeram intervenções teatrais. “Esse texto pode causar miséria e infelicidade”, vaticinou o Egito; “Não entreguemos a conta aos pobres”, conclamou a Índia; “O que vou dizer a meus filhos quando voltar para casa?”, indagou o representante do Paquistão. A colocação mais dramática veio da Malásia. O negociador Gurdial Singh Nijar lembrou que já vivemos num mundo diferenciado – bastava observar quem aplaudia as diferentes declarações na plenária. “Muitos de vocês nos colonizaram e partimos de condições bem distintas. O que mais querem que façamos?”
Os países desenvolvidos, por sua vez, também se declararam insatisfeitos. União Europeia, Rússia, Austrália, Nova Zelândia e Japão fizeram declarações similares, em que reconheciam imperfeições no documento, mas sustentavam que deveria ser levado adiante. Quando pediu a palavra, Todd Stern, negociador-chefe norte-americano, afirmou que o próprio futuro da Convenção do Clima dependia da aprovação do texto. “Não descartemos o que conseguimos até aqui. Faço um apelo para que considerem o que está em jogo.”
O representante de Tuvalu, um país insular no Pacífico que corre o risco de desaparecer num futuro próximo se o nível médio dos oceanos continuar a subir nos níveis atuais, disse que o texto precisava de uma cirurgia. “Alguns elementos vitais precisam ser incorporados.” O ministro do Meio Ambiente de Cingapura – que havia sido mobilizado por Manuel Pulgar-Vidal para trabalhar pelo consenso – lembrou que, antes de se proceder a uma cirurgia, era preciso considerar a necessidade da intervenção e suas eventuais complicações. “Não podemos usar uma faca muito grande”, alertou. “Caso contrário, uma circuncisão pode acabar em amputação.”
Mas não havia outra solução possível: a decisão final iria para a faca. O cirurgião-chefe apontado foi o presidente da conferência. Nas horas seguintes, ele se reuniria com representantes dos diferentes grupos de países, para conduzir os ajustes possíveis. Cabia-lhe tentar conciliar em uma tarde os pontos de discórdia que os negociadores não haviam conseguido resolver em duas semanas.
Sob o bisturi de Pulgar-Vidal, o texto recebeu emendas que atenderam as principais reivindicações dos países em desenvolvimento. O princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” foi nominalmente citado, e o mecanismo de compensação por perdas e danos sofridos pelos países mais vulneráveis também foi acolhido. A decisão final foi aprovada cerca de 32 horas após o horário anunciado pelo peruano para o malfadado brinde de encerramento.
Ambientalistas consideraram o texto final uma solução de compromisso fraca. Muitas das decisões aguardadas em Lima continuam em aberto para as rodadas intermediárias de negociação que devem anteceder a COP de Paris – a primeira acontece já em fevereiro, em Genebra. Um primeiro rascunho do acordo foi aprovado, mas trata-se de um texto bastante vago de 37 páginas, em que cada parágrafo apresenta várias formulações – chegam a dez num dos casos. Os negociadores terão que bater o martelo por uma delas. O acordo pode nos conduzir a mundos bem diferentes, a depender da redação final.
Embora o princípio de diferenciação entre os países tenha sido preservado, não ficou claro de que modo ele deve guiar o documento de Paris. Tampouco haverá mecanismos de revisão rigorosa dos objetivos a serem anunciados. O mundo vai depender da ambição individual de cada nação para manter o aumento da temperatura abaixo do limite de 2ºC.
Mas a decisão final de Lima tem o lado positivo de manter os países nos trilhos rumo à primeira iniciativa de fato global de combate à mudança do clima. “Viemos a Lima assegurar o caminho para Paris, e estou confiante nisso”, disse a ministra Izabella Teixeira após a plenária de sábado.
Quando faltavam três dias para o fim da COP, os principais pontos em negociação ainda estavam indefinidos. Perguntei ao embaixador Marcondes de Carvalho se o pouco tempo que restava bastaria para desatar os nós. O embaixador citou uma frase que atribuiu a Neném Prancha, ex-técnico do Botafogo imortalizado como o filósofo do futebol: “Só acaba quando termina.” A julgar pelas pendências, o caminho até um acordo global está longe de terminar.
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