As receitas tradicionais estão em crise no mundo todo, mas um certo padrão de modernização está sendo implementado à brasileira, aqui e em outros países da América latina e da África FOTO: SEM TÍTULO, FINS DA DÉCADA DE 70_AMÍLCAR DE CASTRO_LICENCIADO POR INARTS.COM
Depois da “formação”
Cultura e política da nova modernização
Marcos Nobre | Edição 74, Novembro 2012
Tinha um caminho no meio da pedra. Ou pelo menos assim se pensou e agiu durante muito tempo, dos anos 30 à década de 80. As dúvidas ficaram no mais das vezes por conta da poesia.
A engenharia que traçou esse caminho pode ser resumida mais ou menos assim: desde 1822, o país tinha conquistado sua independência formal, mas não tinha se constituído efetivamente em nação – em unidade de território, população e soberania que se expressa em uma cultura própria e autêntica. O déficit teria se agravado ainda mais com a continuada exclusão de quem legitimamente reivindicava cidadania plena, quer dizer, depois da abolição da escravatura, das sucessivas ondas imigratórias em massa (especialmente relevantes no período entre 1890 e 1930), da visibilidade inédita dos povos indígenas (cujos “direitos” apareceram na Constituição de 1934), e de uma população e de um proletariado urbanos de importância. Nesse diagnóstico, a Primeira República – não obstante as greves gerais, as ações da vanguarda modernista e os levantes tenentistas – não tinha sido mais do que um acordo de elites, sem nenhum interesse efetivo na realização desse projeto nacional.
Entre muitas razões, também porque a produção da nacionalidade dependia fundamentalmente de um desenvolvimento o quanto possível autônomo, da criação de um mercado interno de relevo, capaz de mitigar e eventualmente superar a condição de completa subordinação que caracteriza um país cuja economia está fundada unicamente na exportação de bens primários. Coisa que era justamente o ganha-pão da política do café com leite da Primeira República. Política esta, para completar o quadro de crise generalizada, que tinha sido minada em suas bases pela depressão iniciada em 1929 e nem precisou aguardar os bloqueios de circulação de mercadorias impostos pela Segunda Guerra Mundial para receber seu golpe de misericórdia.
Ao longo dos anos 30, foi se firmando (por variadas razões) um modelo de desenvolvimento e de construção da nacionalidade que, durante décadas, foi sinônimo de “moderno” e de “modernidade”; um projeto de modernização do país que se convencionou chamar de “nacional-desenvolvimentismo”. Nesse projeto, “modernização” significava, de um lado, o combate às diferentes formas de “arcaísmo” e, de outro, a criação das condições para a emergência da nação em sentido autêntico. Foi longa a hegemonia da oposição entre “arcaico” e “moderno”, e ela moldou como nenhuma outra a autocompreensão do país.
Publicados depois de pelo menos vinte anos de vigência do nacional–desenvolvimentismo e em ambiente de incipiente mas existente democracia, Formação da Literatura Brasileira (1957), de Antonio Candido, e Formação Econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, já apresentavam um grau de complexidade muito superior ao fornecido pelo par antitético original “arcaico” e “moderno”. Tratava-se, ali, de recolocar os problemas em termos de um vínculo interno entre “nacional-desenvolvimentismo” e “democracia”, entre modernização e justiça social. Sua característica marcante foi reconstruir a história do país como estações de um processo de formação em curso, já parcialmente realizado, cujo sentido permitiria, por sua vez, delinear tendências de desenvolvimento e mesmo de continuidade. É assim que, nesses dois livros, a ênfase recai não sobre o diagnóstico dos “arcaísmos”, mas sobre a lenta, porém progressiva, cristalização de instituições sociais que representavam realizações, mesmo que parciais e incompletas, do “moderno brasileiro” (numa palavra: o “sistema literário”, para Candido; o “mercado interno”, para Furtado).
Uma tal positividade e progressividade não poderia mais ser sustentada nesses termos depois do golpe militar de 1964, muito menos em pleno “milagre econômico” da década de 70. A partir daí, passou a ser necessário entender como era possível que a acelerada modernização de então fosse realizada por forças políticas autoritárias. É certo que, segundo o paradigma da “formação”, a “modernização” dos militares não era uma autêntica modernização. Mas, não obstante, era preciso entender em sua estrutura o sentido de uma modernização capaz de suprimir o vínculo com a democracia. Em outros termos: era necessário abandonar a perspectiva por demais “positiva” dos pensadores de referência do paradigma da “formação” e produzir um novo diagnóstico, ainda mais complexo e, sobretudo, permeado por uma “negatividade” que ficou em segundo plano nos modelos originais de Candido e Furtado.
Foi justamente nesse seu momento de “autocrítica”, nesse seu momento “reflexivo”, em que se volta sobre si mesmo, que o paradigma da “formação” firmou sua hegemonia intelectual no campo do nacional-desenvolvimentismo democrático. Teve nisso grande destaque o grupo reunido em torno do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado em 1969 e sediado em São Paulo. O destaque se deve, em grande medida, ao fato de o Cebrap ter sido provavelmente o único consórcio intelectual que a ditadura militar não conseguiu desmantelar, razão pela qual acorreram para lá jovens pensadores de todas as partes do país. Incluindo aquele que produziu o texto emblemático desse “momento reflexivo” do paradigma da “formação”: Francisco de Oliveira e seu Crítica à Razão Dualista (ensaio de 1972, publicado em livro em 1981).
Fernando Henrique Cardoso já tinha mostrado cinco anos antes (Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de 1967, escrito em parceria com Enzo Faletto) que a opção por um desenvolvimento “dependente associado” se apresentava como um entrave estrutural, impondo severas limitações às pretensões do projeto de desenvolvimento autônomo e soberano do nacional-desenvolvimentismo (a não ser na hipótese de uma revolução socialista). Francisco de Oliveira foi além: mostrou que esse é apenas um caso de uma gramática do desenvolvimento em que “arcaico” e “moderno” não estão em oposição, mas amalgamados: longe de se oporem, imbricam-se de maneira necessária, o que, não por último, mostra o caráter ideológico da sua própria lógica dualista.
Coube, ao que se chama burocraticamente de crítica literária, a Roberto Schwarz, em seu breve ensaio “As ideias fora do lugar” (de 1973, recolhido no livro Ao Vencedor as Batatas, de 1977), dar indicações de como o movimento ideológico identificado por Francisco de Oliveira poderia ser pensado em um quadro sistemático ainda mais amplo. Tratava-se ainda apenas de indicações, já que o texto tinha marcado caráter de esboço. Mas era certeiro ao indicar que não apenas “moderno” e “arcaico” se encontram amalgamados, que não apenas o dualismo desse par conceitual é ideológico: indicava que o “moderno”, ele mesmo, serve de legitimação ideológica para o “atraso”, ao qual se imbrica necessariamente. Ou seja, o “moderno”, tal como se apresenta no abstrato e etéreo modelo europeu importado, não é efetiva alavanca de progresso, não serve à modernização autêntica que o paradigma da formação tem em vista. Entretanto, essas modernas “ideias fora do lugar” cumprem papel fundamental na lógica de dominação periférica, isto é, estão, de fato, em seu devido lugar. O “moderno” sanciona uma forma de dominação na qual sua promessa de realização é uma quimera e, no limite, deboche.
Mas esse momento de maturidade intelectual, expresso nas obras de Oliveira e Schwarz, coincidiu, também, com mudanças estruturais do capitalismo que simplesmente inviabilizaram a continuidade de qualquer projeto de tipo nacional-desenvolvimentista. Entre outras coisas, porque esse projeto político dependia de um padrão tecnológico de produção relativamente estável nos países centrais e do poderio de um Estado indutor do desenvolvimento, dois pilares minados pela revolução da microeletrônica e pela crise de crédito de fins da década de 70, respectivamente.
Um projeto de desenvolvimento em situação de subdesenvolvimento não afastava a necessidade de atualização tecnológica permanente, mesmo que fosse uma atualização retardada, na comparação com os países centrais. O que garantia essa atualização retardada era, de um lado, o fato de que ela se dava em patamares meramente incrementais de inovação, e, de outro, na capacidade de financiamento e de investimento do Estado. Foram essas condições que desapareceram já no início dos anos 80.
Mais do que isso, essas mudanças estruturais coincidem, no caso do Brasil, com a saída da ditadura e a redemocratização do país. A conjunção desses dois movimentos tectônicos tornou caduco não apenas o paradigma da “formação”: tornou inviável qualquer ideia de “projeto de país” nos termos em que o nacional-desenvolvimentismo (em suas variadas formas) cunhou a expressão. Pois, em condições democráticas, um “projeto de país” – ou um padrão de desenvolvimento – é o resultado de uma ampla luta social e política, travada ao longo de décadas, dentro e fora do poder de Estado, conflito moldado por diferentes correlações de forças e por diferentes constelações hegemônicas.
Não obstante, apesar de seu longo declínio, o paradigma da “formação” produziu obras tardias de impacto, como foi o caso de Um Mestre na Periferia do Capitalismo (1990), de Roberto Schwarz. A partir dos anos 90, o paradigma passou a ter em Paulo Arantes seu teórico de referência e encontrou em O Ornitorrinco ( 2003), de Francisco de Oliveira, aquele que talvez seja o caso exemplar de sua configuração atual.
O ajuste às novas condições mundiais veio definitivamente com o Plano Real – destinado não apenas a controlar a inflação e produzir estabilidade econômica em sentido amplo, mas também a estabelecer um bloco hegemônico no poder, capaz de superar a paralisia do sistema político. Um dos primeiros movimentos de então foi a significativa abertura econômica, tanto para consumo como para investimento. O Plano Real, entretanto, não foi um “projeto de país” nos moldes do anterior, nacional-desenvolvimentista. Foi antes, e em primeira linha, o desmonte das instituições nacional-desenvolvimentistas e, paulatinamente, a produção de instituições “flexíveis”, capazes de se ajustar às condições cambiantes do novo sistema econômico mundial.
A partir de meados da década de 90, os sucessivos governos se empenharam na construção de estratégias defensivas em momentos de crise econômica e no aproveitamento de oportunidades de crescimento em momentos favoráveis do cenário internacional. A nova lógica da integração econômica já não segue o padrão inter-nacional: os Estados Nacionais são “atores” decisivos, certamente; mas o mero fato de passarem a ser designados como “atores” (entre outros, portanto) já mostra muito da mudança estrutural ocorrida, dificilmente pensável até a década de 80. Se a conversa de que “não há mais centro nem periferia” desempenha papel ideológico nada desprezível, também ela, como todo dispositivo ideológico, tem seu momento de verdade: a subordinação já não se organiza mais primordialmente em termos de nações, países ou Estados.
Essa reviravolta estrutural foi registrada em primeira mão em termos teóricos em dois dos mais instigantes livros da segunda metade da década de 90. Em A Forma Difícil: Ensaios sobre Arte Brasileira (1996), Rodrigo Naves dá pistas importantes sobre o esgotamento do paradigma da “formação”. E faz isso, significativamente, em terreno explorado até então de maneira apenas episódica e irregular: o da crítica e da história da arte. Ou seja, naquela que é, talvez, a mais tardia das disciplinas universitárias a se consolidar no país, surge uma constelação que não apenas escapa ao paradigma da formação, mas produz algo como a sua crítica interna. O que é, por sua vez, compatível com uma produção em artes plásticas que “ao menos até meados da década de 70 – talvez com exceção do período do barroco mineiro – foi de fato irregular e esparsa, dificultando por ela mesma a constituição de um meio mais rigoroso e enriquecedor”, como registra Naves.
Nesse livro, é a própria “forma” – aquela mesma da “formação” – que se tornou “difícil”. Traduzindo as análises de Naves para a periodização apresentada aqui, é possível dizer que toda a arte moderna brasileira até a década de 80 reproduz, de variadas maneiras, o desafio nacional-desenvolvimentista segundo uma gramática artística da “dificuldade de forma” – que pode ser um “ideal meigo”, em artistas como Volpi e Guignard, ou uma “plenitude drástica”, como em Hélio Oiticica e Lygia Clark. Ou seja, mesmo se a melhor arte nunca se joga sem reservas no projeto da “formação”, é ele o seu pano de fundo incontornável. Não é acaso, portanto, que Naves tenha visto nos quadros de Iberê Camargo da década de 80, no momento de crise estrutural do nacional-desenvolvimentismo, o ponto de transição fundamental entre a “relutância formal” própria do modernismo brasileiro e sua já nova condição – a da “forma difícil”, transição gravada no “expressionismo paradoxal” desse artista e que encontrou seu emblema na escultura de Amílcar de Castro.
Essa mudança estrutural ficou gravada também em outro livro de exceção, que pertence, ao contrário do primeiro, a uma das disciplinas universitárias de consolidação mais antiga: a história. Em O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul (2000), Luiz Felipe de Alencastro desliga a ideia de formação da ideia-força da “nacionalidade”, com seu vínculo pretensamente intrínseco a um determinado território, a uma determinada população e a uma forma específica e exclusiva de soberania. Se a “formação” está ainda estampada no subtítulo do livro, Alencastro nos mostra, entretanto, que “o Brasil se formou fora do Brasil”, em um espaço transcontinental, sul-atlântico. Não por acaso, a variável determinante dessa formação fora do espaço territorial – a reprodução ampliada da força de trabalho – só passa a ocorrer “inteiramente no interior do território nacional”, segundo Alencastro, nos “anos 30-40”. Ou, nos termos da interpretação que se propõe aqui, coincide com o momento em que se cristalizou o “nacional-desenvolvimentismo”. Na situação de hoje, a relação umbilical entre o “dentro” e o “fora” volta a se mostrar, sob nova configuração, como determinante da formação do país. Ou seja, como quer se tome a partir de agora a “formação”, ela já não pode ter o sentido que lhe deram Antonio Candido ou Celso Furtado.
Entretanto, a longa hegemonia do nacional-desenvolvimentismo – e, no seu interior, do paradigma da “formação” em particular – produziu algo como um “carecimento de um projeto de país” exposto em seu conjunto; e o não preenchimento dessa falta não faz senão reforçar a própria lógica do carecimento. Dito em uma frase, no momento em que as condições para a produção de um sucedâneo do nacional-desenvolvimentismo estão inteiramente ausentes, a continuidade da defesa (implícita ou explícita) do paradigma da “formação” cumpre uma função primordialmente ideológica – e retrógrada.
A sobrevida do paradigma da “formação” é solidária, por outro lado, de sua necessária contrapartida ideológica “neomoderna”, consubstanciada nos novos paradigmas que se infiltraram pela “abertura teórica” que correspondeu à abertura econômica de meados dos anos 90. Também aqui, mais uma vez a conjunção de linhas de força históricas não foi favorável, já que o momento de estabilização e de abertura da economia brasileira coincide com um dos mais poderosos massacres ideológicos de que se tem notícia, um vagalhão que se costuma chamar de “neoliberal” e que varreu o planeta de cabo a rabo.
O momento de “abertura teórica” brasileiro na segunda metade dos anos 90 coincide com a esmagadora hegemonia de um aggiornamento das teorias tradicionais da modernização segundo o metro neoliberal. Em um período em que instituições como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial tiveram enorme protagonismo, variados cardápios de “reformas estruturais” foram propostos e impostos sob forma de “teorias da globalização”, incluindo receitas de desregulação de mercados, desenvolvimento de “vocações regionais”, currency board e mesmo caricaturas sintomáticas, como foi o caso do então chamado “Consenso de Washington”. A face mais “elevada” desse movimento se materializou na hegemonia de um determinado “cosmopolitismo” que, não por acaso, encontrou naquele momento a sua expressão mais saliente no projeto de uma “ampla reforma da ONU” e na ideia da “terceira via”.
As tentativas de contra-arrestar esse novo alinhamento ideológico não ficaram atrás em termos de crueza e superficialidade. Variaram do voluntarismo pop-bolchevique de Žižek ao esquerdismo filológico de Agamben. Encontraram seu ápice ao longo (e por causa) do sinistro governo de George W. Bush e com ele declinaram – da mesma forma, aliás, como o próprio “cosmopolitismo”, que perdeu o lustro dos anos 90. Ainda assim, prolongamentos dessas posições encontram até hoje ressonância e público. E, como não são poucos os paradoxos nacionais, são posições que costumam ser reivindicadas pelo caduco, mas ainda vivo paradigma da “formação”.
Ambos os lados da medalha ideológica respondem também a uma nova “lógica de redes” que se impôs a partir daí como princípio organizador da produção cultural em geral e do conhecimento acadêmico universitário em particular. Sem prejuízo da sua perfeita compatibilidade ideológica com a imposição de uma agenda externa aceita de maneira quase sempre acrítica, essa reorganização não é passageira. Ou seja, mesmo que a agenda teórica conservadora dos anos 90 tenha perdido força após a crise econômica mundial iniciada em 2007-2008, a lógica de redes veio para ficar.
A rede se compõe de pontos que podem estar em qualquer parte do planeta ou do mundo virtual. Pontos que podem ser movimentos sociais, empresas, Estados, indivíduos, e que são tanto mais ricos quanto mais numerosas forem suas conexões. São pontos que não estão em uma cultura específica, em uma universidade, em um país, em uma nação; estão em algum lugar de uma rede que eles têm de construir por si mesmos para alcançar consagração. Não constroem um país à medida que produzem bens, cultura, ações, conhecimento; estão construindo uma rede.
A partir da década de 90, o debate brasileiro passa a se estruturar segundo a alternativa entre um paradigma da “formação” caduco e um neomodernismo internacional acrítico, sendo que ambos os termos da alternativa se organizam hoje segundo a específica “lógica de redes” em vigor. Trata-se de uma alternativa que esteriliza e emperra o debate público. Destravar o debate e deixar para trás essa alternativa estéril significa hoje formar redes que não fiquem à mercê de pautas teóricas e políticas provenientes de uma agenda neomodernizadora que perdeu sua hegemonia nem se aferrem ao saudosismo do que não foi, a um “projeto de país” que não tem mais qualquer base real para se efetivar.
Mas, se já não é mais da “formação da nação”, com sua unidade e homogeneidade, que se trata, é do sedimento virtuoso de seus desenvolvimentos intelectuais e políticos a partir da década de 50 que se deve alimentar essa nova prática crítica de compreensão do momento atual. E esse sedimento virtuoso não pode ser outro senão o da união dos dois momentos fundamentais do paradigma da “formação” em novo patamar. Não se constrói um país decente fazendo terra arrasada, mas reconhecendo uma série de pequenos avanços ao longo de décadas. O projeto da “formação” se ancorou em processos sociais e históricos reais, e não na tábula rasa das pranchetas planejadoras.
Ao mesmo tempo, sem deixar de lado a positividade e o sentido progressista próprios dessas primeiras formulações, o momento “reflexivo” do paradigma da “formação”, nos anos 60 e 70, insistiu na negatividade que também deve necessariamente lhe pertencer, afiando o gume crítico. E, como no caso do momento anterior, com uma originalidade de amplas consequências: formulou esse “negativo” e essa “negatividade” não como falta ou como carência, mas em termos de elementos constitutivos de uma modernização forçada em condições de subdesenvolvimento.
O fato de a situação atual não ser mais, nem de longe, aquela da regulação internacional que prevaleceu até os anos 80, abre justamente as brechas por onde podem se infiltrar redes de tipo inteiramente novo, capazes de preservar o potencial crítico que um dia teve o paradigma da “formação”. Um capitalismo hoje pela primeira vez planetário ainda parece longe de encontrar (se é que encontrará) um novo ponto de equilíbrio (mesmo que instável) entre economia e política, como se viu em pelo menos dois distintos momentos do cenário mundial pós-1945. Ao mesmo tempo, e ao contrário da década de 90, estão vigorosamente abalados os padrões de modernização que, em situações de relativo equilíbrio, são impostos sem mais aos países periféricos. Por último, mas não menos importante, o desequilíbrio do momento atual se reflete também em uma correlação de forças nova, na qual o vínculo tradicional entre “centro” e “periferia” mudou de caráter.
Esse é o momento de reconhecer que o Brasil é hoje uma combinação de subordinação (a um capitalismo mundial bastante instável e desorganizado) e de inédita autonomia decisória (em que ao menos a margem de manobra é a mais ampla de que já se dispôs). De certa maneira, não somos a realização nem do sonho nem do pesadelo do projeto “nacional–desenvolvimentista”, mas uma combinação de ambos. Entretanto – e isso é o decisivo –, a proporção em que se dá a cada vez a composição dos dois elementos não é mais obra primordial de Estados, mas de alianças de diferentes forças políticas e econômicas que se organizam em rede, nas quais Estados são um dos componentes. Dependem, portanto, de correlações de forças mais amplas e mais capilarizadas, que não se explicam sem mais nem por um determinismo econômico nem por uma primazia da política.
Com a crise das receitas tradicionais de modernização, em um ambiente de relativo desequilíbrio do capitalismo mundial, um certo padrão de modernização está sendo efetivamente gestado e implementado à brasileira – e não somente dentro do território e das fronteiras nacionais, basta olhar para alguns países da África e da América Latina. E essa nova “realidade brasileira” – exemplarmente presente nos debates sobre a chamada “nova classe média” – está sendo produzida sem discussão pública e sem elaboração teórica minimamente satisfatórias. As explicações disponíveis não conseguem alcançar esse novo padrão de modernização, limitadas que estão por paradigmas obsoletos, fixados seja na construção da “nacionalidade”, seja em modelos de sociedade a copiar, que existem apenas nos manuais.
Enquanto não formos capazes de deixar para trás velhos fantasmas teóricos e práticos, os processos reais vão continuar opacos, bloqueando tanto o efetivo exercício da inteligência e da crítica em relação à nova modernização como o conflito aberto e produtivo em torno da maneira mais progressista de utilizar a margem de manobra inédita de que dispomos. O destravamento da inteligência e da crítica só virá com o reconhecimento de que um processo de “formação” se encerrou – ainda que não tenha se completado da maneira como esperava o paradigma. Iniciar uma nova etapa significa reconhecer que não mudou apenas o caminho. Mudou a pedra.
Foram tantas as pessoas que atormentei em tantas diferentes ocasiões com as ideias deste texto que a simples enumeração não está à altura da paciência e do cuidado que encontrei em: Ricardo Terra, Flávio Moura, Sérgio Costa, Rodrigo Naves, Fernando de Barros e Silva, José Carlos Estêvão, Rafael Cariello, Fernando Rugitsky, Vinicius Figueiredo, Marisa Lopes, Joaquim Toledo Jr., Marcio Sattin, Yara Frateschi, Daniel Tourinho Peres, Fernando Costa Mattos, Maria Isabel Limongi, Adriano Januário, Luiz Repa, Bianca Tavolari. Os pecados são todos meus, evidentemente.
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