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    A prosa de Olavo de Carvalho é uma colagem de sofismas. Ele pertence à categoria dos ilusionistas; praticou tanto essa arte que, mesmo quando parece querer dizer a verdade, não consegue ILUSTRAÇÃO_NEGREIROS_2018

tribuna livre da luta de classes

Sofística e polícia política

Olavo de Carvalho, Bolsonaro e a ideologia

Ruy Fausto | Edição 148, Janeiro 2019

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Olavo de Carvalho brindou a mim e a alguns amigos com dois vídeos de raivosa elocução, totalizando mais ou menos uma hora, em resposta a um artigo que publiquei no final do ano passado na Folha de S.Paulo. Não responderia a essas emissões, caso elas dissessem respeito apenas a uma discussão entre mim e Olavo de Carvalho, isto é, se o problema fosse apenas comigo. Assinalo que o título original de meu artigo saiu reduzido. Era: “A gravidade da hora: desconstruindo o discurso de Olavo de Carvalho.” Provavelmente com o objetivo de desdramatizar, a redação do jornal colocou somente a frase final. Por aí já se vê que o meu problema não é Olavo, o qual me interessa sofrivelmente; é a gravidade da hora. Para mim, Olavo importa apenas enquanto peça que compõe o quadro sinistro da realidade brasileira atual. Mas ele é peça importante, sem dúvida e infelizmente.

Ouvi toda a falação, não direi com interesse, mas com curiosidade. Passarei mais ou menos rápido por muitas questões, para me ater ao que é dito no final. Há de tudo na sua fala: a defesa e o ataque. Ele seria um bravo cidadão que não deseja mal a ninguém, salvo a alguns, eu inclusive, pois, na versão dele, pelo menos objetivamente, como se dizia outrora, eu estou a serviço da perigosa conspiração comunista.

Quem sou eu, afinal? (agora sou eu mesmo que falo): um intelectual de esquerda. Um filósofo, conforme o uso francês da palavra que acabou pegando entre nós: não necessariamente autor de grande obra filosófica, mas um sujeito que se ocupa, entre outras coisas, de filosofia. Sou muito radical? Nem isso. Mas, em certo sentido, sim, porque gostaria que as coisas mudassem muito na nossa sociedade. Desejaria que as enormes desigualdades (eis aí o statu quo!) desaparecessem, que a economia solidária fosse a forma econômica hegemônica, embora não exclusiva. E sou um sujeito essencialmente democrata. Sendo de esquerda, passei a vida, quase literalmente, brigando com a esquerda, por nunca ter transigido na condenação dos horrores praticados em nome dela. (Eu nunca reconheci responsabilidades? Um pouco de rigor não faz mal, mesmo quando se trata de polêmica.)

Sou também um crítico intransigente dos partidos de esquerda, em especial aquele que é, ou era, hegemônico entre nós. Essa minha atitude data, em parte, do momento em que, ainda adolescente, me reconheci como um jovem de esquerda; e, em parte, data de mais tarde – lá vai quase meio século –, quando liquidei as últimas ilusões que tinha, não com o modelo stalinista, no qual nunca acreditei, porém com outros modelos menos mortíferos, mas também condenáveis, de que só me desfiz – como aconteceu com muita gente, aliás – depois de alguns anos (há de se convir que a conjuntura não era transparente, sobretudo para um jovem num país do Terceiro Mundo).

Essa postura me valeu, e ainda vale, muitos ataques. Como outros dissidentes, desde adolescente me acostumei a um plano de batalha condenado pelos tratados de estratégia: a luta em duas frentes. Ou seja, enfrentar a direita – a direita tout court e a extrema direita –, e também o que havia de podre no campo da esquerda (e não era pouca a podridão). Peitar os stalinistas, com suas calúnias e golpes baixos. E, uma vez liquidado, ou quase, o stalinismo, haver-se ainda com o leninismo ou o castrismo, formas menos letais, mas também patológicas, e cujos adeptos não costumam deixar barato. Pois este intelectual de esquerda dissidente virou, na língua de Olavo, pelo menos um auxiliar objetivo da conspiração comunista continental ou mundial.

 

Tudo isso teria pouca importância, insisto, não fosse o que está realmente em jogo aí. O bolsonariato chegou ao poder (Jair Bolsonaro, os seus três filhos – a Santa Família Bolsonariana –, os seus acólitos, religiosos, alguns militares, alguns políticos e o guru-mor). Que pretendem eles? A resposta é bem clara, e está quase com todas as letras no que eles dizem, inclusive nessa longa fala que Olavo de Carvalho proferiu contra o autor destas linhas. Querem um governo que controle a imprensa e a universidade. Também os costumes. E, last but not least, pelo menos segundo um vídeo de Olavo e uma entrevista de um dos filhos, o fechamento dos partidos de esquerda. Não menos.

Qual é o elemento essencial na base do discurso de Olavo de Carvalho? Primeiro, transformar um democrata de esquerda em um comunista, qualquer que seja o sentido, válido, que se dê a este último termo; e, segundo, transformar o comunista assim obtido em servidor mais ou menos consciente da conspiração comunista mundial. O resultado final se vê sem dificuldade: pela graça do discurso, o democrata de esquerda se transformou em comunista perigoso.

Essa operação é tão arbitrária como a de alguém – e não se trata de uma hipótese, os totalitários de esquerda fizeram isso muitas vezes – que tomasse o discurso de um homem ou de uma mulher da direita republicana para transformá-lo(la) num(a) fascista. Por exemplo, guardadas as proporções, tomava-se a obra ou mesmo a figura de um Raymond Aron e se descobria nele um conspirador fascista. Insisto: isso ocorreu mais de uma vez, o que mostra como totalitários de esquerda e de direita são parecidos.

As provas que Olavo de Carvalho fornece para fundamentar essa operação são variadas. Vou me centrar em duas. O iluminado se debruça sobre o meu currículo. Curiosidade científica? Não. Trata-se de outra coisa. Eu diria, brutalmente, que se trata de um trabalho de polícia (a autoridade policial é a única que poderia legitimar a arrogância crítica com que ele examina os meus textos). Ele passa em revista, um a um, os meus livros. Aliás, observo que faltaram alguns, como O Ciclo do Totalitarismo, que publiquei pela editora Perspectiva, em 2017. Ali ele poderia encontrar, por exemplo, um ensaio sobre “comunismo e nazismo”, que, se fosse publicado em um país comunista nos “bons tempos” da Cortina de Ferro, me mandaria diretamente para o gulag. Hoje, ele me vale apenas algumas caretas da esquerda neototalitária.

Olavo conclui que só escrevi sobre querelas internas da esquerda, ou coisa parecida. Bobagem. Isso pode ser dito de qualquer autor, principalmente dos que se ocupam bastante de política. Em qualquer autor, a obra é iluminada por uma perspectiva geral, teórica, mas também ética e política. Isso vale tanto para a esquerda como para a direita. É um fenômeno absolutamente normal, e é mesmo a condição da própria obra. Por exemplo, eu me ocupei muito de um objeto complicadíssimo, a lógica de Hegel. Olavo diria que meu interesse vem do fato de que ela tem, ou pode ter, digamos, uma vocação crítica. Isso é, em parte, verdade. E daí? Eu gastei anos e anos de trabalho destrinchando esse livro dificílimo que é a A Ciência da Lógica, de Hegel (sugiro a Olavo estudá-lo um pouco, mas que leia devagar porque, se for pulando de um lado para o outro, tudo se complica), uma obra que pode interessar gente de direita, de esquerda, de centro, de centro-esquerda, de centro-direita e mesmo de extrema direita. O raciocínio acusatório de Olavo de Carvalho é digno de um Vichinsky, o grande procurador staliniano.

Depois, Carvalho se interessa pelas teses das quais fui orientador. Seu problema: quer saber se entre elas há alguma de um candidato “de direita”. Pressuposto: se não encontrar nenhuma, isso é sinal evidente de que houve discriminação de minha parte. Eu teria recusado os alunos de direita. O que seria irregular – observo – e provavelmente ilegal. Repito: o trabalho de Olavo é o de um policial à procura de provas. Mas aonde ele quer chegar, exatamente? Eu nunca discrimino ninguém quando recebo candidatos a mestrado ou doutorado, nem verifico quais são as opiniões políticas do aluno. Na realidade, ocorre o seguinte: quando candidatos a mestrado e a doutorado procuram orientadores para as suas teses, eles se dirigem de preferência àqueles professores com os quais acham que têm afinidade teórica. A afinidade política não é necessária, claro, mas pode ocorrer.

Se Olavo orientasse trabalhos na universidade, quanta gente de esquerda o procuraria? Muito pouca, certamente. Mas seria isso uma prova de que ele discrimina os estudantes de esquerda? Eu seria a última pessoa a dizer tal coisa. Devo acrescentar que há nessa escolha também uma questão relacionada ao tema. Um candidato busca como orientador alguém que é mais ou menos especialista no assunto ou no autor sobre o qual pretende fazer o seu mestrado ou doutorado. Hoje em dia, trabalho principalmente os frankfurtianos. É normal que alguém que se interesse por esse assunto (em geral pessoas com ideias de esquerda, mas não necessariamente) busque, como orientador, quem se ocupe disso, eu entre outros.

Olavo de Carvalho fala como se eu trabalhasse sozinho. Nada disso. Professor emérito da Universidade de São Paulo (e mesmo se não o fosse), sou parte de um departamento com cerca de trinta professores. Um aluno de direita ou de esquerda que quisesse trabalhar a obra de Santo Agostinho não encontraria orientador no departamento onde eu atuo? Nada mais falso. Há ali um colega, eminente especialista em Santo Agostinho. E se o aluno quisesse escrever sobre São Tomás? Também encontraria no departamento colegas especialistas em filosofia medieval que poderiam orientá-lo com competência. E assim por diante, quer se tratasse da filosofia antiga ou medieval, quer da moderna ou contemporânea. A variedade de autores tratados em aula ou abordados em livros pelos professores desse departamento é muito grande. Olavo se esquece de tudo isso. Se não encontrar aluno notoriamente de direita, será porque, segundo ele, faço discriminação política na universidade. Corro então o risco de ser afastado da universidade, concluo. E talvez até de ser preso.

Ele comenta as teses que orientei e os meus livros (com frequência de modo completamente imaginativo; ele chega a se referir a um livrinho de poemas, sem se dar conta disso…). Mas não fala dos meus cursos. Ora, além de publicar livros e artigos, passei uns quarenta anos dando aulas de filosofia, boa parte delas, embora não todas, de história da filosofia, em cinco universidades, três países e três idiomas. Com bastante diligência, o agente encontrará o registro desses cursos e dos autores de que tratei.

Na maioria dos casos, foram cursos sobre filósofos, mas, durante uns poucos anos, também dei algumas aulas de sociologia. Aí vai a lista dos filósofos de que me ocupei nessas cinco universidades: Descartes, Spinoza, Leibniz, Hobbes, Locke, Hume, Kant, Rousseau, Montesquieu, Fourier, Fichte, Hegel, Feuerbach, Marx, Comte, Husserl, Frege, Adorno, Lefort e Castoriadis. Quanto aos sociólogos e antropólogos: Durkheim, Weber e Lévi-Strauss. E não se pense que foi uma aulinha aqui, outra aulinha ali. Passei vários anos lendo com os alunos as três críticas de Kant. Fiz o mesmo com as obras principais de Husserl. Faltaram os gregos e os medievais? Discrimino, talvez, uns e outros… Devo dizer que li bastante os gregos, e gosto muito deles. Entretanto, o que estudei de grego – aliás, com um excelente colega de universidade – não me permite mais do que verificar essa ou aquela passagem, e não uma verdadeira leitura do original. Como fomos educados com exigências como conhecer suficientemente a língua em que as obras foram escritas, evitei sempre dar aulas de filosofia antiga. Quanto aos medievais, infelizmente, eram pouco estudados no meu tempo. Hoje, essa insuficiência foi corrigida. Não dei aulas sobre eles, mas sempre me interessei muito por Santo Anselmo e pelo “argumento ontológico”.

Que melhor lugar para o proselitismo do que a sala de aula? Assim, quando ia tratar de Husserl, eu levava sempre para a classe uma bandeira vermelha. Antes de começar os comentários das Ideen… [Ideias…], agitava a bandeira diante dos alunos, enquanto todos nós, juntos, cantávamos A Internacional… É talvez esse o quadro que habita a mente de Carvalho. Ou alguma coisa mais sutil. De qualquer modo, Husserl, abordado por mim, se trataria de um pensador para o uso dos futuros candidatos à militância no movimento comunista internacional.

 

A quantas estamos? Recorrendo a métodos consideravelmente abusivos, na internet e nas redes sociais, certo “bando” chegou ao poder. Agora se prepara para tomar todo o poder. Eu ousaria dizer: o objetivo último dos novos detentores do poder é fazer da Polícia Federal, sem mudanças formais, uma verdadeira polícia política. Para isso, é necessário controlar a imprensa, colocar na ilegalidade os partidos de esquerda, determinando a prisão de quantos professores tenham praticado o crime de “falar de política” em sala de aula. Não sou eu quem diz. Eles mesmos o disseram muitas vezes. A sua tática principal, no momento presente, é gritar que o outro lado, o nosso, ajuda de uma forma ou de outra uma conspiração internacional.

É um pouco como o ladrão que grita “pega ladrão”. Enquanto o bando vai se instalando e construindo um governo, no limite, de tipo policial, essa gente grita que quem quer fazer isso somos nós. Tudo somado, mutatis mutandis, isso parece com o procedimento hitleriano: enquanto o Estado nazista era montado, denunciava-se a conspiração judaica internacional.

Não sou um bom suspeito, já que ninguém denunciou mais do que eu as simpatias que alguns dirigentes do PT manifestavam por tal ou tal dirigente populista latino-americano. Sempre condenei esse tipo de namoro. Mas os laços internacionais do PT nunca foram muito longe, e, em grande medida, são coisas do passado. Hoje, nem aqueles dirigentes do PT têm muita força nacional (e têm menos ainda força internacional), nem os governos populistas latino-americanos estão em condições de avançar com a bola. Em compensação, a extrema direita está em plena forma. E utiliza um complô fantasmagórico para ocultar um complô real.

Estudando a fala de Olavo de Carvalho, logo me dei conta de que para entender o que ela significa não há nada melhor do que o dito infantil: “Quem fala é que é.” Feitas as adaptações necessárias, tudo o que ele diz vale para si mesmo. Pois descobri – ou, antes, um amigo me contou –, que o próprio Olavo recomenda o seguinte procedimento: “Acusar os outros daquilo que nós mesmos somos.” Fantástica contraprova. Essa frase viria de onde? Parece que ele a atribui a Lênin. Não sei, mas se for, não há nada de estranho nisso. Pois quais são os reais inimigos de Olavo de Carvalho? Lênin, Stálin (não confundo os dois, mas não gosto de nenhum deles)? Não creio. Quando ele fala de Lênin, é sempre com laivos de simpatia. Ele o admira, no fundo. Talvez queira imitá-lo. Os verdadeiros inimigos de Olavo são os intelectuais e políticos de esquerda democrática (sociais-democratas, trabalhistas, socialistas cristãos etc.), incluindo os liberals americanos.

Quem personifica melhor o demônio para Olavo de Carvalho? Acho que ninguém desempenha melhor o papel, no seu discurso, do que esse perigoso esquerdista que é… Barack Obama. O ódio que ele manifesta por Obama é da ordem do infinito. Olavo lutou para provar que Obama não é cidadão americano, e o acusa das piores coisas, inclusive de estar ligado à conspiração islâmica internacional. O que não suporta é, no fundo, a “democracia social”, o welfare, o Estado que respeita direitos, a política pró-justiça social etc. E quem ele admira? Ninguém menos que Trump.

Que se reflita um pouco mais sobre isso. O grande guru da família Bolsonaro, que domina o Brasil, é um admirador de Trump. Se é uma ilusão supor que os inimigos dos inimigos são amigos, acho que não é ilusório o adágio “Diz-me quem admiras e dir-te-ei quem és”. Que Olavo me desculpe, mas, aos olhos do mundo inteiro, Trump é um personagem mais do que duvidoso: debochado, racista, corrupto. Uma figura realmente repugnante. Como se pode fazer de um personagem desses o herói, o “campeão”, como dizem os franceses, da defesa da “civilização ocidental”? Francamente, tenho dificuldade para entender como essa gente chega até aí. Ignorância não é. Eles sabem do que se trata. Maldade intrínseca? Não sei. Mas essa é a realidade, o que faz do grande guru da família reinante uma espécie de Rasputin, como observou muito bem um colunista. Vale lembrar que o Império Russo terminou mal, muito mal…

No momento presente – vide o que disseram no encontro internacional das direitas –, eles se dispõem a atacar a universidade e as agências de imprensa. Que Olavo tenha falado muito ou pouco do primeiro-ministro Viktor Orbán, não importa: o esquema brasileiro parece muito com o da nova Hungria. Aliás, a Hungria foi convidada para o encontro de Foz do Iguaçu… Perto dessa gente, o pessoal do Foro de São Paulo estava apenas brincando em serviço.

 

No artigo que publiquei no caderno “Ilustríssima”, da Folha, e mesmo antes disso, me ocupei bastante da lógica (ou “ilógica”) que está por trás do discurso de Olavo de Carvalho. Recebi muito apoio dos melhores, mas alguns da esquerda tradicional me criticaram. Disseram que eu estava perdendo tempo demais com essas coisas. (Um engraçadinho de extrema esquerda disse mesmo que eu devo estar meio “ocioso” para poder me ocupar da desconstrução do discurso de Olavo. Não nos enganemos, não era esse “o ponto”: a extrema esquerda populista ou neototalitária não perdoa críticas aos governos cubano e venezuelano, como as que fiz no artigo. Outro militante da esquerda tradicional, este petista, revoltado com o que escrevi alhures sobre a política da direção do seu partido, me acusa de “cinismo”. E um beócio da internet recusa legitimidade à minha palavra, porque não sou “dirigente político”…)

Mas voltemos. Olavo usa e abusa de certa lógica que não obedece às regras clássicas. Não em proveito de alguma regra mais moderna. O seu discurso é blefe. Impostura. A respeito disso, gostaria de acrescentar mais um exemplo aos que já dei, não só em artigos, mas também no livro Caminhos da Esquerda, publicado pela Companhia das Letras em 2017, e que se originou justamente de um texto para a piauí.

O exemplo que segue é muito especial, porque tem por objeto um conceito de que Olavo e os seus se servem constantemente. Aliás, o peso que esse conceito tem no seu discurso mostra como são superficiais as críticas dos que dizem que tais coisas não têm importância. A adesão (enorme, aliás) a Olavo é emocional, dirão eles. Sim, mas nunca é apenas emocional. De resto, os “nossos”, pelo menos os melhores, também têm interesse na tentativa, que é a minha, de reduzir a seus elementos a prosa de Olavo de Carvalho, condição de sua plena desmistificação. O exemplo que introduzo é o da utilização que ele faz do conceito de “ideologia” e em particular da sua tese, que circula por todo lado, de que “Bolsonaro não é ideólogo” (ele teria apenas “opiniões”). De fato, Olavo afirma frequentemente que “Bolsonaro não é ideólogo”. Mas por trás dessa afirmação há outra, implícita, e que representa o verdadeiro objetivo da enunciação. A frase oculta é: “Bolsonaro não é perigoso” (ou “Bolsonaro é um candidato no qual se pode confiar” etc.).

Na realidade, temos aí um raciocínio vicioso, o que os lógicos chamam de “sofisma”, raciocínio que não visa a ensinar a verdade, mas sim a enganar o interlocutor. A desconstrução rigorosa desse raciocínio é um tanto complicada. Simplificadamente, tudo se baseia numa ambiguidade, no emprego de expressões que têm mais de um sentido. Olavo joga com dois dos sentidos da palavra “ideologia”, e, visando a um enquanto o leitor acaba visando ao outro, consegue insinuar a frase implícita (“Bolsonaro não é perigoso” ou “Bolsonaro é um candidato no qual se pode confiar”).

De fato, “ideólogo” pode significar, entre outras coisas: 1) um sujeito que aceita grandes sistemas de pensamentos, como o liberalismo, o socialismo, o comunismo etc.; 2) alguém que, sem ser cultor bastante coerente de um grande sistema como os citados, tem projetos políticos bem precisos e, mais do que isso, se engaja com muito entusiasmo na sua realização (claro que esses projetos têm a “aura” de ideias políticas, éticas ou religiosas, só que não se fundamentam num “grande sistema”).

É fácil mostrar que Bolsonaro não entra na categoria (1), pois ele não tem nada de teorizante, menos que isso, não tem coerência teórica necessária para que o consideremos como cultor de um grande sistema. Em compensação, encaixa-se bem na categoria (2): é alguém que tem projetos políticos precisos e se engaja com entusiasmo e até com fanatismo na realização deles (projetos que remetem, claro, a um certo número de ideias políticas, éticas ou religiosas, mas não propriamente a um “grande sistema”).

Essa é a situação. Bolsonaro é ideólogo no segundo sentido, mas não no primeiro. Ora, explicitamente, Olavo trabalha com o primeiro sentido, não com o segundo. Explica, por exemplo, que as ideologias são grandes sistemas, e a figura de Bolsonaro não se encaixa como alguém que os cultua. Só que, por baixo do pano, ele trabalha também com o segundo. De fato, o sentido “secreto” da insistência em dizer que “Bolsonaro não tem ideologia” não é o de que ele está alheio às grandes ideologias, mas o de que não seria um sujeito fanatizado por projetos políticos, éticos ou religiosos.

Ora, se a afirmação explícita é verdadeira (“Bolsonaro não é ideólogo”, no sentido de que não cultua grandes sistemas), a segunda afirmação, que fica implícita, mas representa a essência da sua intervenção (“Bolsonaro não é um ideólogo”, no sentido de que não tem um projeto político inspirado por preconceitos morais e religiosos etc.), é evidentemente falsa. Bolsonaro é, sim, um ideólogo, nesse segundo sentido. Ele tem um projeto político, iluminado por preconceitos morais e religiosos, e se engaja com empenho (e até com fanatismo) na sua realização.

Assim, Olavo vende “gato por lebre”. O leitor desavisado só se dá conta da frase explícita, mas é empurrado sem querer, pelo jogo dos significados, a aceitar a ideia implícita: “Bolsonaro não é perigoso, é um candidato no qual se pode confiar” etc.

Eis aí um bom exemplo, talvez o exemplo-chave, do discurso de Olavo de Carvalho, utilizado também por seus partidários. Uma deputada eleita o empregou para justificar uma eventual “renovação” da equipe de juízes do Supremo Tribunal Federal. Os atuais juízes, segundo ela, eram movidos por motivos “ideológicos”, por isso seria preciso substituí-los.

A análise desse sofisma nos mostra ou, antes, confirma quem é precisamente Olavo. Ou o que ele é. Olavo é filósofo? Em certo sentido, sim. Mau filósofo. E não porque tenha lido pouco, mas porque mistura tudo, e tem uma cabeça tão carregada de ódio que lhe é difícil pensar. Mas, antes de ser filósofo – e também por isso é mau filósofo, já que as duas coisas se misturam –, Olavo é rigorosamente um sofista, no sentido pejorativo do termo. Isto é, alguém que está interessado não na verdade do argumento, mas na capacidade que, verdadeiro ou não, este teria de convencer o interlocutor.

A prosa de Olavo de Carvalho é uma colagem de sofismas, do tipo citado ou de outro. Que um discurso assim possa servir a objetivos políticos é coisa tão velha como o mundo. Já ocorreu na época da sofística grega, embora nesse caso seja preciso levar em conta outros elementos (há variações importantes, de sofista a sofista, e o sofista não era apenas um ilusionista). Mas pode-se dizer que, se considerados como tipos ideais, há uma oposição entre os filósofos, os quais visam a verdade, e os sofistas, que pretendem iludir. Carvalho pertence essencialmente à categoria dos ilusionistas. E tem-se a impressão de que praticou tanto essa arte que, mesmo quando parece querer dizer a verdade, ele não consegue.

 

Ao analisar discursos neototalitários de esquerda, encontrei neles sofismas do mesmo tipo (ver sobre isso meus artigos na revista eletrônica Fevereiro). Isso não é casual. Tanto nesse caso como no de Olavo, há um afã de inverdade, um esforço por impingir ao interlocutor teses – de extrema direita ou de extrema esquerda totalitária – que são falsas. E, nos dois casos, é pela mídia que a enganação se propaga. A impostura via mídia deve ser parecida com aquela que se veiculava na ágora, mas potencializada. Às vezes, no caso de Olavo, pelo menos, ela vem recoberta por uma camada de impropérios, o que, paradoxalmente, a torna mais atraente e mais deglutível para o grande público. Nesse sentido, Olavo de Carvalho mereceria ser chamado de Górgias pornógrafo ou de Pródico de beco (Górgias e Pródico são dois sofistas gregos). Tudo isso seria apenas pitoresco e folclórico, se por trás dessas máscaras não se escondesse a figura bem real da polícia política, cujos instrumentos não são mais os sofismas, mas as algemas e as ordens arbitrárias de prisão.

Que Olavo de Carvalho seja um sofista e não um filósofo explica porque ele é rejeitado pelas melhores universidades do Brasil e do mundo. Os filósofos não têm muita dificuldade para reconhecer um sofista. Ele se queixa da perseguição da mídia. Embora majoritários no país, os conservadores teriam sido esmagados pelos minoritários, ideólogos comunistas que controlam jornais e revistas. Entretanto, Olavo dispõe de uma formidável máquina midiática. Em seu site, enquanto comenta o meu currículo, sou como que julgado naquele dia por um “tribunal popular” de mais de 100 mil pessoas, a maioria das quais são, provavelmente,  fiéis seguidores. Seus livros se vendem em centenas de milhares de exemplares. Olavo tem alguma coisa de Cidadão Kane, o personagem de Orson Welles. Não é à toa que se fala em “populismo de direita”: o neofascismo investe em grande escala na mídia (inclusive na internet), e a mídia se coloca a serviço do neofascismo.

Também é preciso dizer algumas palavras a respeito da suposição de que os brasileiros são majoritariamente conservadores. A maioria no Brasil é “cristã” e, de fato, como o peso das igrejas é grande, em caso de plebiscitos sobre costumes, talvez tivéssemos surpresas ruins, mas com divisão na sociedade. Porém, não é certo que haveria “maioria conservadora” no caso de plebiscitos sobre medidas econômicas necessárias para melhorar um pouco a condição de vida do povo, como mudanças no imposto de renda (cuja progressividade escandalosamente injusta não tem igual no mundo) ou no imposto sobre transmissão de herança (outro escândalo brasileiro).

O problema com os novos autocratas é que eles falam de tudo, mas não do mais importante: da situação em que se encontra a massa de pobres no país e de medidas necessárias para reduzir a pobreza. Isso não ocorre por acaso. Tocar nesses assuntos os desmascararia. Eles dão de ombros quando se deparam com a exploração e a opressão. Ou, antes, as apoiam com as duas mãos. O neoliberalismo econômico está falido. Ele produz e reproduz uma enorme desigualdade que serve de fonte para o neofascismo.

A fantasia de que o pensamento de esquerda domina o país, de forma ilegítima, pega fundo. Mesmo em revistas tidas como sérias, encontrei jornalistas impressionados com o fato de que a maioria dos professores de história seria “de esquerda”. O Brasil é um país onde reina uma desigualdade brutal (um dirigente de grande empresa pode ganhar até 600 vezes mais que um assalariado não qualificado). Nessas condições, é absolutamente normal que a intelligentsia tome posição contra o estado de coisas. Isso significa, quer eles queiram ou não, tomar uma posição “de esquerda”. O anormal seria que isso não acontecesse. Mutatis mutandis, poderíamos lembrar o que acontecia na época do antigo Império Russo, onde a maioria dos intelectuais não se alinhava com o czar. Alguns dirão: mas a Rússia era uma autocracia, e o Brasil é uma democracia. Sim, por enquanto é uma democracia, por muitíssimo imperfeita que seja, mas é uma democracia apenas no plano político. No plano econômico, o país é uma autocracia, e nesse sentido é perfeitamente lógico que a maioria dos intelectuais seja adversária do regime econômico (o que não tem nada a ver com “comunismo”).

O que querem os Olavos e Bolsonaros? Equilíbrio? Quinze minutos para a intelligentsia e quinze minutos para o czar? (No caso da Alemanha nazista, seriam quinze minutos para Hitler e quinze minutos para os judeus.) Na realidade, agora eles querem meia hora para o czar, e o olho da rua ou a cadeia para a intelligentsia. Há assim situações em que o “desequilíbrio” é o verdadeiro equilíbrio (a ordem justa das coisas), e o “equilíbrio”, um desequilíbrio imposto pelos interesses dominantes. Temos à frente um governo de extrema direita, repressivo até a medula, que expulsará do emprego ou porá na prisão quanta gente puder. De resto, há muitas universidades no país, públicas ou privadas, em que a direita é dominante, e, nas condições atuais, falar de dominação da esquerda no Brasil é puro delírio. Guardadas as proporções, trata-se de um mito similar ao da dominação judaica, ao qual recorreu o governo de Hitler.

Nunca se mentiu e se enganou tanto como hoje se mente e se engana no Brasil. Diz-se que o presidente eleito não tem ideologia, mas ele vem encharcado de ideologia; propõe uma escola sem partido, só que nela deverá se pensar conforme o que manda um partido; alimenta-se o culto da vontade popular, que, entretanto, prepara a asfixia da “minoria“ e, com isso, o estrangulamento da democracia.[1]


[1] Agradeço ao historiador Arthur Hussne Bernardo, a quem devo ideias e informações.