Agora que o mal-estar com a globalização aflorou, os neoliberais falam em “populismo”; com essa palavra etiquetam quem rejeita a suposta falta de alternativas na economia e na política IMAGEM: MIGUEL BRIEVA
O retorno do recalcado
O começo do fim do capitalismo neoliberal
Wolfgang Streeck | Edição 135, Dezembro 2017
O neoliberalismo veio junto com a globalização, ou a globalização com o neoliberalismo. Foi assim que começou a Grande Regressão. Nos anos 70, nas nações industriais reconstruídas no pós-guerra, o capital começou a se libertar das tarefas locais, do papel nacional que havia sido obrigado a cumprir depois de 1945. Havia chegado a hora de se despedir dos mercados de trabalho esvaziados, da produtividade estagnada, dos lucros em baixa e das reivindicações cada vez maiores dos sindicatos do capitalismo já maduro e administrado pelo Estado. O caminho rumo ao futuro, à nova expansão a que todo capital aspira de coração, apontava para fora, para o mundo ainda alegremente ingovernado de uma economia global sem limites – na qual os Estados, em vez de conter mercados, estão contidos neles.
A guinada neoliberal ocorreu então sob o signo de uma deusa chamada TINA – There Is No Alternative [Não Há Alternativa]. Sua longa linhagem de sacerdotes e sacerdotisas vai de Margaret Thatcher a Angela Merkel, passando por Tony Blair. Quem desejasse servir a essa deusa, sob o cântico solene dos economistas de todos os países, precisava reconhecer o avanço do capital mundo afora, escapando de seus grilhões locais, como uma necessidade ditada pelas leis da natureza e pelo bem comum. Precisava também se empenhar ativamente na desmontagem dos obstáculos a lhe atravancar o caminho. Práticas típicas dos não convertidos à deusa TINA, como o controle da circulação do capital e benefícios do Estado, deveriam ser perseguidas e exterminadas; ninguém mais deveria ter o direito de se furtar à “concorrência global” e de se acomodar confortavelmente em qualquer tipo de rede nacional. Tratados de livre-comércio deveriam abrir os mercados e resguardá-los de toda e qualquer intervenção estatal; uma “governança global” haveria de substituir os governos nacionais; as antigas medidas de proteção contra uma excessiva mercantilização da vida dariam lugar, agora, à capacitação para o mercado; ao Estado de bem-estar social caberia ceder terreno ao Estado competitivo de uma nova era de racionalização capitalista.
Antes que a década de 80 chegasse ao fim, o neoliberalismo já havia se transformado no pensamento único da vida política, da centro-direita à centro-esquerda. As velhas controvérsias foram dadas como resolvidas. Importava agora promover “reformas” para aumentar a “competitividade” nacional, e reformas idênticas por toda parte: flexibilização do mercado de trabalho; melhoria dos “incentivos” (positivos para o topo da distribuição de renda, negativos na base); privatização e abertura de mercados, usadas como arma para atrair investimentos e reduzir custos, mas também como teste de solidez moral. Os conflitos distributivos do passado foram substituídos pela avaliação tecnocrática do que era economicamente necessário, além de inevitável, a única possibilidade. Instituições, políticas e modos de vida deveriam se ajustar a esses objetivos.
Como era inevitável, tudo isso se fez acompanhar da involução dos partidos políticos, que passaram a contar com um número cada vez menor de membros e com uma participação popular cada vez menor nas eleições, algo que ganhava contornos acentuados entre os mais pobres. A isso se acrescentou um derretimento da organização sindical e um declínio dramático na realização de greves mundo afora – em outras palavras, uma desmobilização ampla de quase todos os mecanismos de participação e redistribuição de renda que vigoraram na democracia do pós-guerra. Tudo isso foi acontecendo aos poucos, num ritmo que ganhou intensidade e firmeza, a ponto de afinal se transformar no estado natural das coisas.
Como processo de regressão institucional e política, a revolução neoliberal também inaugurou a era da pós-verdade na política. Isso se fez necessário porque a globalização neoliberal nem de longe foi capaz de cumprir a promessa de bem-estar para todos. À inflação da década de 70 e ao desemprego decorrente do duro combate a ela seguiu-se, nos anos 80, o endividamento do Estado, e, na década de 90, o saneamento das finanças públicas por meio das “reformas” impostas ao Estado de bem-estar social. Numa espécie de compensação por essas mudanças, as famílias passaram a ter acesso a uma generosa oferta de oportunidades de endividamento. Enquanto isso, o crescimento regredia, embora a desigualdade e o endividamento continuassem a aumentar – na verdade, era justamente porque o crescimento era menor que isso acontecia. Em vez do que prometia o modelo econômico de trickle-down – em que benefícios estatais aos mais ricos, como abatimento de impostos, se converteriam em ganhos também para os mais pobres –, verificou-se o fenômeno inverso e bem mais vulgar, o trickle-up: a crescente desigualdade entre indivíduos, famílias, regiões de um mesmo país, e, na zona do euro, nações.
A prometida sociedade dos serviços e do conhecimento acabou se revelando bem menor do que a decadente sociedade industrial, aumentando assim o número de pessoas que se viam descartadas, sem serventia econômica. Essa gente, excesso de contingente do capitalismo em marcha, passou a assistir indefesa e confusa à transformação do Estado, que passava de coletor de impostos a Estado endividado (seguido do Estado de austeridade). Assistiam também às crises financeiras e às medidas de salvação nacional que as sucederam, sob as quais essa população se viu em situação cada vez pior.
A “governança global” não ajudou em nada, tampouco o Estado nacional democrático ajudou – do qual, aliás, a economia capitalista se desatrelou. A fim de garantir que todos esses óbvios problemas – todas as limitações da globalização – não se transformassem num perigo para o Admirável Mundo Novo, foi necessário criar métodos mais refinados de produção de consenso, de um lado, e de desorganização da resistência, de outro. Com efeito, a caixa de ferramentas desenvolvida com essa finalidade se mostrou de início extraordinariamente eficaz.
Mentiras, mesmo as mais descaradas, sempre houve na política; basta pensar no PowerPoint apresentado por Colin Powell ao Conselho de Segurança da ONU, contendo provas visuais infalíveis da existência de armas de destruição em massa no Iraque. Com a revolução neoliberal e, atrelada a ela, a transição rumo à “pós-democracia”, entrou em cena um novo tipo de engodo político: a mentira especializada. Sua estreia se deu com a Curva de Laffer, que comprovaria cientificamente que reduções de impostos conduziriam a uma arrecadação tributária maior. Em seguida, veio, entre outros exemplos, o “Relatório Cecchini” da Comissão Europeia (1988), que, como recompensa pela conclusão do processo de criação do mercado comum europeu, prometeu aos cidadãos da UE um crescimento do bem-estar equivalente a 5% de seu PIB, uma queda média de 6% nos preços dos bens de consumo, “milhões de novos postos de trabalho” e uma melhora das finanças públicas de cerca de 2,2% do PIB europeu. Enquanto isso, nos Estados Unidos, especialistas em finanças, como os ex-presidentes do FED (o banco central americano) Ben Bernanke e Alan Greenspan, e o ex-secretário do Tesouro Larry Summers, concordavam não só que medidas de segurança tomadas por investidores racionais, em interesse próprio e por sua própria conta, bastariam para estabilizar mercados financeiros cada vez mais “livres” e globais, como também que as autoridades estatais não precisavam atuar contra a formação de bolhas, até porque já era possível anular sem dor os efeitos de uma eventual reversão de expectativas.
Ao mesmo tempo, foram se tornando cada vez mais absurdas as “narrativas” disseminadas por partidos tradicionais, governos e especialistas em relações públicas, bem como as decisões ou ausência de decisões que elas fundamentavam. A captura do aparato governamental por antigos e futuros executivos da Goldman Sachs prosseguiu como se nada tivesse acontecido; seu saber especializado era tido como indispensável. Passados sete anos sem que um único executivo de banco corresponsável pelo crash de 2008 fosse levado à Justiça, Eric Holder, procurador-geral de Obama, retornou ao escritório de advocacia do qual havia saído, especializado na defesa de executivos do setor financeiro, para receber um salário principesco de milhões de dólares. E Hillary Clinton – que, com marido e filha, acumulara fortuna de centenas de milhões de dólares nos dezesseis anos desde sua saída da Casa Branca, incluindo aí honorários da Goldman Sachs muito acima daqueles pagos inclusive a Larry Summers – disputou uma eleição como representante autoproclamada dos que “trabalham duro” ou, na verdade, daquela “classe média” que o progresso capitalista degradou há tempos à condição de contingente supérfluo.
Tudo isso já acontecia, mas é claro que para o internacionalismo neoliberal, que havia elevado a propagação de ilusões à condição de arte do governar democrático, a era da pós-verdade só começou depois de 2016, o ano do referendo do Brexit e da derrota do clintonismo para Donald Trump. Foi somente depois do fracasso da pós-democracia – depois do fim da paciência desmesurada de boa parte da população com as “narrativas” de uma globalização que, nos Estados Unidos, beneficiou apenas o 1% mais rico – que os gestores do “discurso” dominante passaram a exigir a “checagem de fatos”. Só então passaram a lamentar os “déficits” impostos àqueles que se viram esmagados pela força da economia global, de um lado, e pelos efeitos das políticas de austeridade nacionais, em matéria de educação e treinamento, de outro.
Como remédio contra a pós-verdade, defensores do neoliberalismo começaram a exigir provas de aptidão – dos mais diversos tipos – como requisito para o exercício do direito ao voto. O retorno das massas às urnas – elas que, para o bem do capitalismo, haviam passado muito tempo no Facebook, nas páginas de Kim Kardashian, Selena Gomez, Justin Bieber e tutti quanti – pareceu sinalizar uma perigosa regressão. Além disso, recursos até então utilizados para distrair as pessoas da decadência de suas próprias sociedades, como “intervenções humanitárias” ou o reavivamento do conflito Leste-Oeste – dessa vez com a Rússia no lugar da União Soviética, e a temática LGBTQ em vez do comunismo –, haviam, de súbito, se exaurido. Verdade e moralidade tinham deixado de importar – e, na Inglaterra, um membro conservador da Câmara dos Comuns explicou, quando lhe perguntaram por que, contrariando a opinião dos especialistas, ele fazia campanha pela saída do Reino Unido da UE: “As pessoas neste país já se cansaram dos especialistas!”
Característica do “espírito do tempo” de hoje é uma nova cisão cultural que, do nada, parece ter acometido as sociedades capitalistas democráticas. Estruturalmente, essa divisão se fundamenta num desconforto com a “globalização”, algo que há tempos vem aumentando nos subterrâneos, dado o crescimento constante do número de “perdedores” nesse processo – um processo que alcançou um momento crítico nos anos que se seguiram à crise financeira de 2008, quando a quantidade dos atingidos se traduziu na qualidade do protesto, agora aberto. Que isso tenha demorado tanto a ocorrer também se deve ao fato de os antigos porta-vozes dos “perdedores” sociais terem aderido, antes do final dos anos 90, ao fã-clube da globalização. Assim, quem vivia a “globalização” como problema, e não como solução, ficou sem ter quem o representasse.
A fase áurea da globalização promoveu uma indústria da consciência de orientação cosmopolita; e essa indústria vislumbrou suas chances de crescimento ao atribuir ao ímpeto expansionista dos mercados capitalistas valores libertários da revolução social dos anos 60 e 70, bem como suas promessas utópicas de libertação. Isso fundiu a pensée unique tecnocrática do neoliberalismo ao juste milieu moral de uma comunidade com discurso internacionalista.
Depois de, ao longo de décadas, decair nas democracias ocidentais, recentemente a participação nas eleições voltou a subir, sobretudo nas camadas mais baixas da sociedade. A redescoberta da democracia como corretivo político, no entanto, beneficia apenas partidos e movimentos novos, que conturbam os sistemas políticos nacionais. Por isso, partidos tradicionais irmanados há tempos e já integrados aos aparatos estatais, assim como seus assessores de imprensa, identificam e combatem esses novos partidos e movimentos como um perigo mortal para “a democracia”. A palavra de luta aí empregada, e rapidamente inserida no saber pós-verdade, é “populismo” – com ela se etiquetam correntes e organizações de direita e de esquerda que se fecham à lógica da falta de alternativas, da política “responsável” sob a égide da globalização neoliberal.
O conceito de populismo tem uma longa história, que remete à era progressista nos Estados Unidos dos anos 20 e ao Progressive Party de Robert M. La Follette.[1] Mais tarde, populismo passou a ser o nome neutro para a ideologia de movimentos políticos, sobretudo latino-americanos, que se viam como oposição “popular” a uma “elite” autoproclamada que buscava o próprio enriquecimento. Hoje, e já há alguns anos, o conceito é empregado pelos partidos e pela mídia do internacionalismo liberal como designação genérica e polêmica para a oposição que insiste em alternativas nacionais para a internacionalização declarada compulsória.
A ideia, associada ao populismo clássico, de um povo que, na luta política, age em conjunto para afastar do poder uma minoria hostil à “gente comum”, economicamente influente e culturalmente arrogante, aplica-se tanto à direita como à esquerda. Isso facilitou sua adoção pelos discípulos da globalização, porque lhes permite evitar distinções, e assim, para efeito de propaganda, jogar num mesmo saco Donald Trump e Bernie Sanders, Nigel Farage[2] e Jeremy Corbyn[3], ou, na Alemanha, Frauke Petry[4] e Sahra Wagenknecht[5].
O racha entre aqueles que chamam os outros de “populistas” e os que são assim designados é, hoje em dia, o conflito político dominante nas sociedades em crise do capitalismo financeiro. A questão em pauta não é outra senão a da relação entre capitalismo global e organização estatal. Nada polariza tanto as sociedades capitalistas atuais como os embates sobre a necessidade e a legitimidade de políticas nacionais; nessas discussões, interesses e identidades se fundem, dando margem a hostilidades de um vigor que não se via desde o final da Guerra Fria. A consequente guerra religiosa, que a qualquer momento pode explodir em batalhas de aniquilação moral, mexe com camadas profundas e extremamente sensíveis da identidade social e individual, nas quais se tomam decisões sobre respeito e desdém, inclusão e exclusão, reconhecimento e excomunhão.
Característica da política de internacionalização é a uniformidade com que as “elites”, assim designadas depreciativamente pelos “populistas” (mas apreciadoras, elas próprias, de tal designação), reagem aos novos partidos. Na linguagem una dos internacionalistas, o “populismo” é tratado acima de tudo como um problema cognitivo: seus adeptos seriam pessoas que demandam “soluções simples” porque não compreendem as soluções complexas efetivamente necessárias (como as que podem ser produzidas, de maneira incansável e exitosa, pelos quadros de comprovada competência do internacionalismo); e seus representantes são cínicos que prometem “ao povo” as desejadas “soluções simples”, embora saibam não existir alternativa às soluções complexas dos tecnocratas. Assim, pode-se explicar o surgimento dos novos partidos como uma Grande Regressão que acomete a gente comum e se manifesta na falta de educação e de respeito pelos bem-educados. Podem-se também cultivar “discursos” sobre a desejável abolição de referendos ou a transferência de decisões políticas a especialistas e autoridades não políticas.
Do ponto de vista mais prático, esse tipo de discurso tem como consequência a exclusão moral e cultural dos partidos antiglobalização e de seus adeptos. À declaração de imaturidade cognitiva segue-se a condenação moral das demandas por políticas nacionais visando a proteção contra riscos e efeitos colaterais da internacionalização. A palavra de luta usada pelos internacionalistas, que há de evocar a lembrança do racismo e da guerra, é “etnonacionalismo”. Os “etnonacionalistas” não estão à altura dos desafios da globalização, sejam eles morais ou econômicos. Seus “medos” e suas “preocupações”, afirma a linguagem sacramentada, “devem ser levados a sério” – mas “levados a sério” como quem se preocupa em oferecer algum tipo de assistência social.
Manifestações de protesto contra a degradação moral e material da sociedade são suspeitas de serem fascistas, sobretudo agora que os antigos defensores das classes plebeias apoiam a globalização, de modo que estas, para articular seu protesto contra a pressão capitalista por modernização, só dispõem do material linguístico bruto, não elaborado, da experiência pré-política da privação. Daí decorrem constantes violações das regras vigentes para o discurso público civilizado, que provocam tanto revolta “no topo” como mobilização “na base”. Ao mesmo tempo, conforme se retiram das mídias públicas e passam a atuar nas “mídias sociais”, os perdedores e os contestadores do internacionalismo escapam à censura moral: com o auxílio da mais globalizada das infraestruturas, constroem círculos de comunicação que os protegem de serem chamados de retrógrados pelas elites.
Entre os acontecimentos mais espantosos de 2016, deve-se incluir o modo como o Brexit e a vitória de Trump surpreenderam não apenas a opinião pública liberal, mas também as ciências sociais. Nada documenta melhor a cisão das sociedades globalizadas do neoliberalismo do que a perplexidade de suas elites, tanto a do poder como a do discurso, com o retorno do recalcado, cuja apatia política acreditaram poder interpretar como sábia resignação.
Até mesmo as universidades americanas, tidas como “excelentes” e, por isso mesmo, bem-dotadas de fundos, falharam como sistemas de alarme. Claro que a pesquisa de “opinião” realizada por entrevistas telefônicas de vinte minutos já não tem nada a ensinar sobre as atuais sociedades, desestabilizadas e em crise. É de se esperar o adensamento contínuo daqueles que veem os cientistas sociais como espiões de um poder estrangeiro e que, portanto, buscam evitá-los, ou que, na impossibilidade de fazê-lo, contornam sua desaprovação com respostas que acreditam corresponder ao que esses cientistas querem ouvir. Solidificam-se assim, patologicamente, as ilusões das “elites” sobre o estado de suas sociedades. São poucos os cientistas sociais que parecem perceber, hoje, o que se passa mais abaixo. Quem leu, por exemplo, Our Kids: The American Dream in Crisis [Nossos Filhos: o Sonho Americano em Crise], de Robert Putnam, decerto não se espantou com a vitória de Trump.
Será necessário um bom tempo até que a esquerda globalmente aburguesada compreenda o que aconteceu em 2016. Na Grã-Bretanha, os adeptos de Blair remanescentes no Partido Trabalhista acreditaram que convenceriam seus antigos eleitores a permanecer na ue enumerando os benefícios dessa permanência, sem, contudo, questionar a distribuição enviesada dessas vantagens. Não ocorreu a liberais apartados da experiência cotidiana de decadência vivida por grupos e regiões do país que o eleitorado poderia, na verdade, esperar que o governo que elegera primeiro cuidasse dos interesses dos eleitores, e não de acordos internacionais. Além disso, muitos eleitores por certo não entenderam que a solidariedade internacional entre trabalhadores no século XXI compreende expor o próprio emprego à competição global irrefreável.
O que esperar agora? A desmontagem da máquina clintoniana por Trump, o Brexit, o fracasso de François Hollande na França e de Matteo Renzi na Itália, tudo isso inaugura uma nova fase na crise do sistema estatal capitalista transformado pela revolução neoliberal. Para caracterizar essa fase, recorro ao conceito de “interregno” de Antonio Gramsci: um período de duração indeterminada em que a velha ordem já se rompeu, mas a nova ainda não pode surgir. A velha ordem, rompida em 2016 sob o ataque dos populistas bárbaros, era o mundo do capitalismo globalizado. Os governos dessa velha ordem haviam neutralizado suas democracias locais, nacionais, adotando pós-democracias, a fim de não perderem a conexão com a expansão global do capitalismo – delegando a uma futura democracia global a tarefa de realizar intervenções igualitárias e democráticas nos mercados capitalistas. A cara da nova ordem ainda por criar não se sabe qual será, e essa incerteza é inerente ao interregno. Até que essa nova ordem surja, segundo Gramsci, podem ocorrer “fenômenos patológicos dos tipos mais diversos”.
Um interregno, como o entendia Gramsci, designa um período de extrema insegurança, no qual perdem validade os costumeiros nexos causais e a todo momento podem ocorrer coisas inesperadas, perigosas, grotescamente fora dos padrões, até porque, nele, desenvolvimentos disparatados caminham lado a lado, inconciliáveis, resultando frequentemente em configurações instáveis e dando ensejo a cadeias inesperadas de acontecimentos, em vez de estruturas previsíveis. Entre as causas dessa nova imprevisibilidade está a obrigatoriedade imposta pela revolução populista de as classes políticas do capitalismo neoliberal voltarem a dar ouvido a suas populações nacionais.
Depois de décadas de dedicação institucional exclusiva à globalização, a democracia nacional volta a ser útil como canal para a articulação da insatisfação vinda de baixo. É o fim da desmontagem planejada das linhas nacionais de defesa contra a pressão por racionalização exercida pelos mercados internacionais. Depois de Trump, é improvável que ocorra na Grã-Bretanha um segundo referendo sobre o Brexit, à maneira do que a União Europeia costuma fazer – ou seja, seguir votando até alcançar o resultado correto. Um novo eleitorado estará tão pouco receptivo a necessidades econômicas naturais e compulsórias, como a engolir que o controle de fronteiras é impossível.
A retórica do One Nation da nova primeira-ministra britânica mostra que pelo menos uma parte da classe política dominante esteve atenta. Já no discurso de lançamento de sua candidatura, em 11 de julho de 2016, Theresa May clamou por mudanças que não se ouviam desde os anos 80, nem mesmo no Partido Trabalhista: combate à desigualdade econômica, tributação mais justa dos que ganham mais, melhoria do sistema educacional, participação dos trabalhadores no destino das empresas, proteção aos postos de trabalho no Reino Unido contra seu deslocamento para o exterior – tudo isso acoplado à restrição da imigração. O voto pela saída da União Europeia lembrou sobretudo aos políticos britânicos que são eles, em primeira linha, os responsáveis por seu eleitorado; em seu discurso na assembleia anual da Confederação da Indústria Britânica, em novembro de 2016, Theresa May explicou o resultado do referendo como “o desejo das pessoas por uma economia mais justa”.
O programa neoprotecionista de May coloca a esquerda social-democrata diante de questões desconfortáveis. Trump também poderia se tornar um problema para a esquerda, caso pretendesse cumprir suas promessas no campo da política industrial e da política fiscal. Na verdade, um astuto Bernie Sanders já lhe ofereceu apoio repetidas vezes, tanto no saneamento das velhas regiões industriais, que seguiram se degradando nos oito anos do governo Obama, como para um programa “keynesiano” de reconstrução da infraestrutura nacional. O novo e necessário endividamento para tanto, sobretudo se for cumprida a promessa de redução de impostos, atenderia às receitas neokeynesianas a que políticos e economistas da esquerda moderada dão preferência há muito tempo (“fim da austeridade”); ante a resistência do restante do Tea Party, isso só passaria no Congresso com a ajuda dos democratas.
O problema é que tampouco uma política pós-globalista e neoprotecionista como a pretendida por Trump ou May poderá assegurar crescimento estável, maiores e melhores taxas de emprego, diminuição das dívidas pública e privada ou a confiança na moeda. O capitalismo financeirizado e atualmente em crise não se deixa regular desde o nível nacional, embaixo, nem de cima, em nível internacional: ele pende por um fio de seda de uma política monetária “não convencional”, que notoriamente busca em vão gerar algo parecido com crescimento valendo-se de juros negativos e de uma expansão monetária aventureira, produzida por meio da compra de títulos de dívida pelos bancos centrais.
As “reformas estruturais” neoliberais, necessárias e complementares na visão dos “especialistas”, empacaram naqueles países onde talvez ainda pudessem surtir algum efeito, mas onde enfrentam a resistência da população a uma imposta “globalização” de suas condições de vida. Ao mesmo tempo, a desigualdade cresce, inclusive porque sindicatos e Estados perderam seu poder, ou dele abdicaram, para os mercados globais. Seja pela via do “populismo” ou da tecnocracia, o capitalismo se tornou ingovernável devido à destruição pura e simples de instituições nacionais de redistribuição econômica, e foi isso que acarretou a dependência exagerada de políticas monetárias e dos bancos centrais como instâncias últimas de política econômica.
Conflitos políticos internos se anunciam também onde o simbolismo cultural desempenha papel decisivo. A valorização da população local por parte dos “populistas” implicará uma desvalorização dos imigrantes, no sentido mais amplo do termo? Conseguirão as esquerdas pagar um tributo cultural crível àqueles que despertaram de sua apatia? Muitas palavras duras foram ditas de parte a parte, isso sem contar que uma reconciliação entre a esquerda e os insatisfeitos da globalização poderia alienar os esquerdistas aburguesados, cosmopolitas, mais próximos do centro no espectro político-ideológico. E, no caso de um insucesso econômico, Trump, May e outros poderiam se sentir tentados a lançar campanhas diversionistas, sutis ou nem tanto, contra minorias étnicas e outras. A consequência disso seriam revoltas tanto dos decentes quanto dos indecentes.
No plano internacional, é possível que, ao menos de início, as coisas sejam menos dramáticas. Ao contrário de Obama, Blair, Clinton, ou mesmo Sarkozy, Hollande, Cameron e talvez até Angela Merkel – como “última defensora do Ocidente livre” –, os novos protecionistas nacionais não possuem qualquer ambição em termos de direitos humanos, nem em relação à China e à Rússia, nem, até onde se pode ver, no tocante à África e ao Oriente Médio. Eis algo que defensores de intervenções humanitárias, no sentido amplo da expressão, podem vir a lamentar.
Seja como for, a intolerância russa em relação a manifestações culturais como o Pussy Riot não deflagrará reflexos missionários nos governos ensimesmados desta nossa nova época. Planos como o de integrar a Ucrânia à União Europeia e à OTAN, privando a Rússia de seu porto no mar Negro, são agora águas passadas, assim como projetos de “mudança de regime” em países como a Síria. A tentativa dos Estados Unidos de engajar a Rússia pós-soviética numa nova Guerra Fria vai ter fim. É possível que a substituam pela China, a China que o presidente Trump precisa convencer a renunciar a fatias de mercado nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, a seguir comprando e acumulando títulos da dívida do Tesouro norte-americano.
O avanço dos “populistas” nos aparatos de poder estatal é outra fonte de incertezas no cenário pouco estruturado do interregno que se instala, com suas instituições disfuncionais e suas cadeias causais caóticas. O início do interregno parece um momento bonapartista: tudo é possível, mas nada traz consequências, menos ainda aquelas desejadas, porque a sociedade na revolução neoliberal voltou a se tornar um “saco de batatas”[6]. Os novos protecionistas não vão encerrar a crise do capitalismo, mas vão trazer a política de volta à cena e lembrá-la constantemente das classes baixas e médias transformadas em perdedoras da globalização. Tampouco a esquerda, ou o que foi feito dela, sabe como seria uma transição do capitalismo ingovernável do presente para um futuro mais ordenado, menos ameaçado e ameaçador – basta observar Hollande, Renzi e Clinton.
Se a esquerda, contudo, ainda deseja desempenhar algum papel, vai precisar tirar lições do fracasso da “governança global” e desse sucedâneo que é a política identitária. Entre essas lições, podem-se enumerar: os outsiders da autoproclamada “sociedade do conhecimento” não devem, menos ainda por razões estéticas, ser abandonados a seu próprio destino e, portanto, entregues à direita; numa democracia, não há como impor o cosmopolitismo à custa da “gente comum”, nem mesmo com ameaças neoliberais; só se pode abrir o Estado nacional com a colaboração dos cidadãos, e não contra eles. Ao se aplicar isso tudo à Europa, tem-se que quem deseja semear integração demasiada colhe conflito e, assim, menos integração. O identitarismo cosmopolita dos dirigentes da era neoliberal, saído em parte do universalismo esquerdista, gera como reação um identitarismo nacional, e medidas antinacionais de reeducação vindas de cima produzem, em baixo, um nacionalismo antielitista. Quem, econômica ou moralmente, pressiona uma sociedade para que se dissolva vai colher uma resistência tradicionalista, porque aquele que se vê entregue às incertezas dos mercados internacionais – cujo controle é promessa antiga, mas jamais cumprida – prefere ter na mão o pássaro da democracia nacional do que ver a sociedade democrática global voando.
*
[1] La Follette (1855-1925) concorreu à Presidência dos Estados Unidos em 1924.
[2] Uma das lideranças do Ukip, o Partido da Independência do Reino Unido, legenda de direita que fez campanha pelo Brexit.
[3] Líder do Partido Trabalhista, a principal agremiação de esquerda no Reino Unido.
[4] Política conservadora, nacionalista, da extrema direita alemã.
[5] Parlamentar alemã, marxista.
[6] Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx se refere à falta de consciência de classe entre os pequenos proprietários rurais na França, em meados do século XIX. Esse grupo social, naquele momento histórico, segundo ele, poderia ser caracterizado como “uma adição de grandezas homólogas”, à maneira de batatas num saco de batatas.
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