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    Manifestantes concentrados em frente à FIESP FOTO: PABLO RAPHAEL_UOL

questões da política

A hora da xepa

Fernando de Barros e Silva | 21 mar 2016_18h27
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O governo de Dilma Rousseff parece muito próximo do fim. Depois de quarta-feira, quando Lula foi anunciado ministro e vieram a público os grampos, o país entrou em curto-circuito: o que se viu nas ruas nas 48 horas seguintes não eram mais manifestações com data e hora marcadas, mas focos de revoltas quase permanentes espalhados pelas grandes cidades, com destaque para a vigília que se instalou na avenida Paulista, em frente ao medonho prédio da Fiesp, transformado em quartel general do impeachment. Em Brasília, os manifestantes zanzavam entre o Planalto e o Congresso, entrando várias vezes em confronto com a polícia, o que amplificava a sensação generalizada de que o poder agora estava sitiado. O ódio a Lula e ao PT, que nos protestos do dia 13 havia se manifestado com toda a força retórica, transbordou, fazendo emergir nas ruas a figura do Coxa Bloc – um tipo social que vinha sendo gestado na alma profunda das manifestações “pacíficas e ordeiras”. Na semana passada, houve registros de cenas de agressão física e risco iminente de linchamento de simpatizantes do governo. É algo que tende a se reproduzir daqui para a frente.

As manifestações reativas a favor do governo (em defesa da democracia, contra o golpe) puderam mostrar, pela primeira vez desde que a crise atingiu seu ponto de ebulição, que o desfecho será mais traumático do que podia sugerir a escalada do “fora Dilma”. Apesar da avalanche de reveses, o PT conseguiu agrupar nas ruas muita gente de suas tradicionais bases (sindicatos, movimentos sociais, classes médias). Ninguém esperava, nem mesmo os organizadores, 100 mil pessoas na mesma Paulista que havia se transformado em passarela do impeachment.

A correlação de forças, de qualquer forma, é amplamente desfavorável ao governo: o Datafolha mostrou neste domingo que 68% dos brasileiros querem o impeachment de Dilma, e a rejeição a Lula atinge espantosos 57%. Os dois, mais do que nunca, estão sitiados.

Uma coisa é certa: o momento atual não tem nada a ver com aquele da queda de Fernando Collor, em 1992. Primeiro, porque desta vez a cisão política na sociedade é profunda e está se acentuando. Collor não tinha partido, não tinha trajetória nem história públicas relevantes, não tinha lastro social. Segundo, porque o Congresso nem de longe exibe a mesma legitimidade – o presidente da Casa não tem autoridade moral para ser síndico da Papuda. Eduardo Cunha é fruto da debilidade política do governo e da conivência de parte expressiva dos meios de comunicação (ele foi, em determinado momento, e não faz tanto tempo, alçado à condição de herói nacional e ocupou, em escala menor, o lugar imaginário que hoje é de Sergio Moro). A sobrevida de Cunha na Presidência da Câmara é fruto, ainda, da cultura do compadrio disseminada no Congresso. No caso dele, o compadrio se desdobrou em gangsterismo: houve aliciamento e intimidação de colegas, mais do que simples troca de favores e instinto de proteção corporativa. E os tucanos são cúmplices desse personagem, réu da Lava Jato, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro, com contas comprovadas na Suíça. Cunha é o “culpado útil”.

Em terceiro lugar, o day after de um possível impeachment terá que se defrontar com a instabilidade crônica que a Lava Jato passou a representar para o mundo político, a começar por Michel Temer e a oligarquia do PMDB, sem esquecer, obviamente, o menino do Rio, Aécio Neves. Mais  do que isso – e para ir ao fundamental –, o processo atual difere do que ocorreu em 1992 porque aquele foi um momento de afirmação da democracia e avanço do país; agora, tudo indica que estamos vivendo um processo de fragilização da democracia e ameaça de retrocesso institucional, além da regressão social em curso.

 

Isso posto, o governo Dilma, a rigor, não existe mais. Constrangida pelo próprio PT a entregar a massa falida de seu mandato nas mãos de seu padrinho e tutor político, a criatura abraça o criador como dois náufragos que sucumbem um agarrado ao outro. Com a ida de Lula para a Casa Civil, o Planalto foi transformado em bunker da crise, numa espécie de Palácio da Imunidade. Não há como distinguir entre interesses privados e projeto político nessa cartada desesperada. “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha”, dizia o Bandido da Luz Vermelha no filme de Rogério Sganzerla.

A avacalhação, no caso, se estende a Sergio Moro. Em relação a Lula, está óbvio que o juiz não agiu de acordo com o tempo processual, mas segundo a velocidade da notícia. Seu timing foi o da luta política, não o da Justiça. O primeiro grampo a vir a público, no qual Dilma trata com o ex-presidente da assinatura do termo de posse, foi divulgado pela GloboNews na tarde de quarta-feira, pouco depois da entrevista coletiva em que ela negava qualquer intenção de blindar o novo ministro. Era um grampo colhido após o fim da autorização judicial, que no entanto foi anexado ao inquérito e exposto ao país com estardalhaço. Ao perceber que havia perdido o domínio contra seu alvo principal, Moro tomou uma atitude digna dos aloprados. Tem razão Janio de Freitas ao dizer que “a ilegalidade foi ampliada com a divulgação, em meio às gravações, dos telefones particulares e das conversas meramente pessoais, que Moro ouviu e, por lei, devia manter em reserva, como intimidades protegidas pela Constituição.” Transformado em herói nas ruas, ele se fragilizou no episódio como nunca antes na história da Lava Jato.

Há muitas coisas em jogo neste momento, e uma delas é justamente o futuro da operação. Passamos a vida repetindo que a impunidade dos ricos e poderosos é um dos vexames do Brasil – “pegar peixe miúdo é fácil, quero ver prender um tubarão.” Aí está. A força-tarefa e Moro empilharam tubarões na carceragem de Curitiba. Depois que o juiz condenou Marcelo Odebrecht a quase vinte anos de prisão, seus pares que ainda não falaram estão retirando senha para entrar na fila da delação. O próprio empresário se inclina a abrir a boca a fim de reduzir sua pena. A mulher de João Santana, Mônica, e talvez o próprio marqueteiro, ambos na cadeia, podem vir a esclarecer em breve qual era a origem, o destino e a razão do dinheiro que receberam da Odebrecht em plena campanha presidencial de 2014.

Nunca se chegou tão longe no desvelamento das relações promíscuas entre os donos do poder e os donos do dinheiro. A discussão sobre as arbitrariedades da polícia, do Ministério Público e do Judiciário não é trivial e precisa ser travada. Basta mencionar o pedido de prisão contra Lula feito pelos três pândegos do MP paulista. Mas não se deve nunca perder de vista a enormidade do que está sendo trazido à tona pela versão local da Operação Mãos Limpas.

Ocorre que a boa nova da faxina pelo alto não representa, por si só, nenhuma garantia de que o país irá se tornar mais decente, em sentido substantivo. Pode muito bem ocorrer o contrário. Sem enfrentar esse paradoxo, impossível entender o que está acontecendo hoje.

Aqui, o que parece muito novo traz um monte de velharias para a ordem do dia. No rastro da Lava Jato e da debacle do ciclo petista, estão sendo destampados antigos preconceitos brasileiros, que nunca deixaram de existir, mas que agora ressurgem com inédito direito de cidadania em praça pública.

A referência ao fantasma de 1964 faz sentido. O momento atual ecoa o passado porque é inequívoco o avanço de um fascismo difuso que emana das ruas. O ódio a Lula e ao PT é a sua face mais evidente. A demonização do “perigo vermelho” é a sua dimensão alucinatória. Esse ódio e essa alucinação vêm acompanhados de um patriotismo tacanho e cafona (“meu coração é verde e amarelo”), do desprezo pelos pobres (“parasitas do Estado, massa de manobra”), do desejo de distinção (“pagamos impostos, carregamos o país nas costas”), da adoração à polícia fardada e do ardor  à família, da ojeriza aos políticos e de certo pendor autoritário que se apresentam como um “exemplo de cidadania, ordem e civilidade”, conforme as palavras de um dos líderes do Movimento Vem Pra Rua em artigo na Folha, no dia seguinte à manifestação do dia 13. No mesmo texto, Rogério Chequer decretava o “fim da farra” e exaltava “a disciplina e o respeito às leis” por parte dos manifestantes.

Não se pode, é claro, generalizar. Quem faz questão de se autodenominar “gente de bem” às vezes é, de fato, uma boa pessoa. Mas tome-se, a título ilustrativo, o discurso apoplético do historiador Marco Antonio Villa, um dos gurus do novo Brasil, durante o grande ato cívico: “Aqui tem brasileiros, aqui nós não temos medo, aqui nós mostramos que o verde- amarelo é a cor da nossa bandeira e será para todo o sempre”. Depois de chamar Lula de “cafajeste”, “desqualificado moral” e “criminoso-mor”, ele prosseguiu, com o microfone em mãos: “Só vai ter democracia no Brasil no dia em que Lula for preso, processado e condenado a regime fechado”; “ele não pode estar solto, ele ameaça as instituições e quer a guerra civil.”

Eu estava na Paulista no dia 13. Quis sentir de perto o humor dos meus compatriotas. Vi famílias, crianças e marmanjos posando felizes para selfies ao lado de policiais da Tropa de Choque, com blindados ao fundo. Vi a multidão contracenar com o helicóptero da Polícia Militar, estendendo os braços para o alto e chacoalhando as mãos a cada voo rasante sobre a avenida. Ouvi gritos de guerra contra o criador (“Lula cachaceiro, devolve o meu dinheiro!”) e contra a criatura (“Ei, Dilma, vai tomar no cu!”). Andei uns quarteirões ao lado de pessoas pacatas, gente obviamente despolitizada, entre perdida e deslumbrada com o fato de participar de um ato “a favor do Brasil”. Saí de lá com a sensação de que os petistas ainda vão ter saudades dos tucanos. À noite, conversando com um amigo, ouvi dele o seguinte: “Vai sair muito barato se essa fúria conservadora cair no colo da Marina em 2018.”

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