Arrigo Barnabé: labirinto e mirante
Falar de Arrigo não é fácil. Seu trabalho tem uma complexidade e abrangência muito grandes. Mas gosto de desafios e acho que há uma certa urgência em falar de nossos grandes artistas: são raros e descortinam mundos possíveis. E impossíveis também. Mirante e labirinto.
Falar de Arrigo não é fácil. Seu trabalho tem uma complexidade e abrangência muito grandes. Mas gosto de desafios e acho que há uma certa urgência em falar de nossos grandes artistas: são raros e descortinam mundos possíveis. E impossíveis também. Mirante e labirinto.
A aparição de Arrigo no festival da TV Cultura em 1979 com a apresentação de Infortúnio e Diversões eletrônicas foi uma explosão. O público atônito se perguntava: que música estranha era aquela?
Infortúnio – Arrigo Barnabé / Vocal: Neuzza Pinheiro
Arrigo atualiza o tropicalismo e vai além ao modificar a estrutura da linguagem musical: essa foi sua grande revolução. Em nenhum outro compositor popular brasileiro o entrecruzamento entre o erudito e o popular se deu de forma mais intensa. É na obra deste artista singular que a linguagem da música popular brasileira sofre uma nova transformação radical ao sair do campo tonal e modal e incorporar as inovações que aconteceram na música erudita do início do século XX. Com Arrigo a polirritmia, o serialismo, o atonalismo e o dodecafonismo pedem passagem e ingressam na MPB escandalizando os ouvidos tradicionais e desestabilizando os sentidos acostumados à fruição tranqüila da música convencional. Nada será como antes.
O Século XX, com Stravinsky e Schoenberg, viu surgir uma nova música. Wagner, em Tristão e Isolda, (1859) chegara ao limite da exploração cromática e, a partir de então, a fronteiras entre as tonalidades foram desaparecendo até não haver mais tonalidade alguma. Na música de Stravinsky (1882-1971) polirritmia, cromatismo, politonalismo. Na de Schoenberg (1874-1951) o atonalismo, uma fase. Viria depois o dodecafonismo onde, ao invés das 24 tonalidades do sistema tradicional, só há uma única tonalidade, os 12 sons. Entre eles nenhum é destacado, todos têm a mesma função. Assim, não há mais tom menor nem tom maior, consonâncias ou dissonâncias. Se você disse que eu desafino amor, não estará entendendo quase nada do que eu digo…
Schoenberg- Fantasie op.47 / Piano:Glenn Gould / Violino: Yehudi Menuhin
Vanguarda paulista. A música popular em busca de novos caminhos, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Grupo Rumo. O cenário histórico de onde emerge o mutante-marginal Clara Crocodilo é o das águas lamacentas da frustração do projeto de redemocratização do país. Final dos anos 70, início dos 80. Em lugar da esperança, o desencanto. Os personagens da música de Arrigo movimentam-se num espaço degradado, cidade violenta e desumana, submundo da diversão barata, antro sujo de diversões solitárias e eletrônicas. Labirinto. São seres grotescos: Clara Crocodilo, metade homem, metade réptil, a viúva desesperada e histérica de Infortúnio, o coroa e a prostituta de Acapulco Drive in.
Arranha-céu, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, que inspirou Diversões eletrônicas.
Clara crocodilo: nesta obra-prima, Arrigo mistura a narrativa dos gibis à crônica policial radiofônica, à Gil Gomes, e num universo reificado, povoado pelo kitsch – bala de conhaque, Maverick, drinques, drive-in, balcão de fórmica vermelha, lábios de carmim, calcinha de pele de leoparda – cria uma atmosfera tensa, de humor corrosivo, beirando o horror : “O riso de quem ouve Clara Crocodilo”, diz Fernando de Barros e Silva , “é a todo instante amarelado por uma atmosfera próxima do intolerável. É como se, lançados num universo de fantasmagorias, medos, vertigens e labirintos, personagens e ouvintes fossem condenados a uma sensibilidade de tipo paranóico.” Existe uma “dramaturgia visível” nas peças, que unifica o LP Clara Crocodilo e que dá a impressão de se tratar de uma ópera-rock. Mas é mais no caminho da performance, do teatro-música ou da música-teatro que as composições se articulam.
Show Tubarões Voadores – teatro Sesc Pompéia, 1985 / Vocal: Vânia Bastos e Arrigo Barnabé, teclados: Bozo Barretti, guitarra: Tonho Penhasco, baixo; Otávio Fialho, percussão: Paulo Barnabé, bateria: Duda Neves.
O futurismo se desenha em Office-boy na presença da máquina que canta e que seduz: Ela era caixa num supermercado, todo dia ela só, só apertava os botões e aquelas máquinas cantavam. Solidão humana, sociedade de consumo, pessoas que ouvem o canto das máquinas, jogam com máquinas, diversões eletrônicas, no fliperama ela gastava toda a sua grana, apaixonam-se por imagens da TV, por fantasmas. A perversão é escancarada:Depois, quando clareou, e eles foram pro hotel, ela viu um bêbado jogado no chão, e sorriu, perversa. Representação de um mundo violento, grotesco, maquinal e sem compaixão: a cidade moderna. A nova música de Arrigo, aliada a visão de um mundo maquinal em ruínas, de uma sociedade degradada e estridente produz uma espécie de vertigem e somos arremessados neste labirinto estranho e sombrio que nos sorri como a predizer um indesejável futuro. Você, que então é tão espertinho, vamos ver se consegue me seguir neste labirinto, provoca o narrador de Clara Crocodilo.
Arrigo compôs com parceiros diversos uma série de pockets óperas, O homem dos crocodilos, 22 antes e depois e Santos Dumont- enquanto estiverem acesos os avisos luminosos, duas missas in memoriam, uma para Arthur Bispo do Rosário e outra para Itamar Assumpção, fez trilhas para filmes, como Cidade Oculta, onde também atua, foi protagonista do filme de Rogério Sganzerla, Nem tudo é verdade, interpretando Orson Welles, tem um programa na rádio cultura, o Supertônica, gravou as canções de Lupicínio Rodrigues, Caixa de ódio. A obra de Arrigo transcende a música ao dialogar com as diversas artes, o cinema, a literatura, as artes plásticas.
Arrigo Barnabé / missa in memoriam Itamar Assumpção
Trailler de Cidade Oculta, filme de Chico Botelho / Shirley Sombra – Arrigo Barnabé, citação do Rubayat de Omar Khayyam, na recriação de Augusto de Campos / canta Ana Amélia
Caixa de ódio – Lupicínio Rodrigues
Em sua constelação de referência, escritores e poetas, compositores populares e eruditos, cantores, cineastas, escritores, criadores de HQs: Will Eisner, Luiz Gê, Baudelaire, Mallarmé, Ezra Pound, James Joyce, Marinetti, Augusto e Haroldo de Campos, Schoenberg, Stravinsky, Orlando Silva, João Gilberto, Caetano Veloso, Lupicínio Rodrigues, Paulinho da Viola, Villa-Lobos, Tom Jobim.
Tubarões voadores – Arrigo Barnabé, Luiz Gê/ quadrinhos.
Há também um lado profundamente delicado e lírico em sua obra, nas deslumbrantes canções que ele compôs. Elas estão espalhadas nos diversos discos: Instante, em Clara Crocodilo, Canção do astronauta perdido, Lenda, a intergaláctica Mirante e Mística, em Tubarões Voadores, Cidade Oculta, música tema do filme de Chico Botelho, no LP do mesmo nome, Londrina. Foram reunidas no belíssimo CD, Luar- as canções de Arrigo Barnabé. Luar é o nome de uma canção que Arrigo compôs para Tom Jobim.
Luar – Arrigo Barnabé/Canta Tuca Fernandes e Quinteto Delas
Tua nudez – Arrigo Barnabé, Roberto Riberti/Canta Manu Cirne, gravação ainda inédita
Cidade Oculta – Arrigo Barnabé, Eduardo Gudin, Roberto Riberti / Canta Vânia Bastos
Na cidade esquecida pelos deuses, chuvosa, escura e fria, neste escuro labirinto, a saída surge inesperadamente na figura de um doce e misterioso andróide que desenhando um holograma no coração do poeta o faz reencontrar o sentido da vida. Mundo às avessas, é a máquina que devolve ao homem sua humanidade perdida. Abre-se então uma brecha. Mirante. A poesia volta a ter razão. A saída deste labirinto não está no passado, está no futuro, um futuro inesperado, misterioso e, quem sabe, redentor.
Mirante – Arrigo Barnabé / Carlos Rennó / Canta Tuca Fernandes e Quinteto Delas
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