O vapor d'água gerado pela Amazônia forma rios voadores. Os cientistas concluíram que essa massa úmida é responsável por até um terço das chuvas em algumas regiões do país Foto: Raffael Portugal/Shutterstock
80% do agro brasileiro depende da chuva gerada pelas terras indígenas da Amazônia
Estudo pioneiro mostra que os ruralistas terão prejuízo se o Congresso continuar investindo contra as áreas demarcadas
Oitenta por cento da área coberta por lavouras e pastagens no Brasil depende das chuvas geradas pelas florestas mantidas de pé nas terras indígenas da Amazônia. A conclusão é de cientistas do Brasil e da Holanda que, pela primeira vez, calcularam quanta água circula nos “rios voadores” gerados nesses territórios e que caminho eles percorrem levando umidade para o resto do continente. A área alcançada pelas chuvas abarca dezoito estados e o Distrito Federal e inclui trechos do Cerrado, do Pantanal, do Pampa e da Mata Atlântica. Os nove estados mais beneficiados são responsáveis por 57% da renda do agronegócio brasileiro.
Já se sabia que as árvores da Amazônia lançam na atmosfera grandes quantidades de vapor d’água que são transportadas pelo vento a outras regiões, gerando a chuva que irriga as terras agrícolas (daí a expressão “rios voadores”). A novidade do estudo foi calcular a contribuição específica das terras indígenas para a formação dessa massa úmida. “Mostramos que o setor agropecuário depende da conservação, do cuidado e do manejo que as populações tradicionais dão à floresta”, disse à piauí o hidrólogo Caio Mattos, que está fazendo pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi o primeiro autor do estudo. “A conservação desses territórios não é pauta apenas dos povos indígenas, mas da sociedade e da economia brasileira.”
Mattos e seus colegas concluíram que o Paraná é o estado mais impactado por essas chuvas: 25% da precipitação no estado é oriunda das terras indígenas da Amazônia. O índice também passa dos 20% no Acre e em Mato Grosso do Sul. Em determinadas regiões desses estados, até um terço das chuvas têm origem nos territórios indígenas. “O poder desse resultado é quantificar pela primeira vez dados que estavam disponíveis há muito tempo”, disse a coordenadora do estudo, a meteorologista Marina Hirota, também da UFSC. Os resultados foram publicados em uma nota técnica assinada por dez autores à qual a piauí teve acesso em primeira mão.
Como a maior parte da produção agrícola no Brasil precisa de chuva para ser viável, o estudo aponta uma conclusão lógica: o agronegócio vai perder dinheiro se o desmatamento aumentar e, consequentemente, os rios voadores diminuírem. Antes mesmo da publicação, já estava claro que o agro deveria ser o primeiro a defender a floresta em pé nas terras indígenas e em outras áreas da Amazônia e de outros biomas. O setor – responsável por quase 22% do PIB brasileiro deste ano – tem sido diretamente impactado pela crise climática.
As áreas de agricultura que dependem da irrigação pela chuva tiveram um déficit hídrico médio de 37% entre 2013 e 2017, conforme estatísticas da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que o volume de chuva que caiu é 37% menor do que as lavouras precisavam para crescer em condições ideais. “Já estamos operando sob déficit hídrico”, explicou Caio Mattos. “O aumento do desmatamento pode ser catastrófico para a segurança alimentar e econômica do país.”
Apesar disso, setores do agronegócio tentam avançar sobre as terras indígenas. A bancada ruralista no Congresso faz o que pode para impedir a demarcação de novos territórios e abrir os que já foram demarcados para a agropecuária, a mineração e outras atividades econômicas. É como se serrassem o galho da árvore que sustenta eles próprios. Parecem não se dar conta de que os proprietários rurais estarão entre os maiores prejudicados com a diminuição das chuvas que ocorrerá se áreas florestais forem derrubadas.
A principal linha de frente dessa disputa tem sido a chamada tese do marco temporal, segundo a qual os indígenas só têm direito às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição de 1988. Ela ignora que muitos povos originários foram expulsos de suas terras antes disso, em alguns casos por agentes do próprio Estado. Por isso, foi declarada inconstitucional pelo plenário do Supremo Tribunal Federal em 2023.
Menos de uma semana depois do julgamento, no entanto, o Congresso atropelou o STF e aprovou uma lei instituindo o marco temporal e uma série de outras medidas que ameaçam a conservação das terras indígenas, como a possibilidade de exploração de recursos naturais e a abertura de empreendimentos econômicos em áreas demarcadas. O ministro Gilmar Mendes, embora tivesse votado pela inconstitucionalidade do marco temporal, resolveu então abrir uma câmara de conciliação para tratar de uma série de processos relacionados à nova lei.
A primeira audiência foi realizada em agosto, no Supremo. Dias depois, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciou que não participaria mais. Alegou que não aceitava negociar violações a direitos garantidos na Constituição de 1988. “É inadmissível que os povos do Brasil que têm a maior contribuição para a conservação das florestas, dos biomas, da biodiversidade e que são aqueles que mais têm capacidade de fazer frente à emergência climática e ao desenvolvimento sustentável do país sejam submetidos a um processo de conciliação fora da lei, com esse nível de pressão, chantagem e preconceito”, afirmou o grupo, em um manifesto.
“O estudo sobre as chuvas produzidas nos territórios indígenas comprova que abrir essas áreas para arrendamento ou exploração econômica é um tiro no pé do agronegócio”, disse à piauí Kleber Karipuna, coordenador-executivo da Apib. Karipuna cita dados da ONU segundo os quais as terras indígenas protegem 80% da biodiversidade do planeta, sendo que os povos originários representam apenas 5% da população global. Além disso, a taxa de desmatamento e as emissões de gases do efeito estufa nas terras indígenas são menores do que em outros territórios. “A demarcação de terras indígenas precisa virar uma política de enfrentamento da crise climática”, defendeu Karipuna.
O Congresso vai em outra direção. Não bastasse a aprovação da lei do marco temporal, o Senado agora discute incorporar a tese à Constituição, o que, se acontecer, tornará mais difícil sua revogação no futuro. A proposta, de autoria do senador Hiran Gonçalves (PP-RR), aguarda votação pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da casa.
(Infografias: Mario Kanno)
O estudo que calculou a influência das terras indígenas sobre a chuva é uma iniciativa de um grupo de pesquisa em ecologia tropical criado pelo Instituto Serrapilheira, organização que financia projetos de ciência e de jornalismo científico no Brasil.* O trabalho foi realizado com o objetivo de municiar a discussão que está em curso no STF. “A ideia era trazer informação que pudesse fazer diferença no debate”, disse a meteorologista Marina Hirota. Por isso os resultados ainda não foram submetidos a uma revista especializada (os pesquisadores têm a intenção de fazer isso no futuro). Segundo a cientista, o grupo estava mais interessado em causar impacto e contribuir com a formulação de políticas públicas. A nota técnica foi publicada no site do Serrapilheira nesta terça-feira (3).
Se seguido o caminho dos periódicos especializados, os autores poderiam esperar meses até que o artigo fosse avaliado por outros especialistas – um tempo que, segundo eles, não era razoável perder. Para Hirota, não foi uma escolha difícil. “Desapegamos de publicar artigos”, disse. E notou que a ciência que embasa a nota técnica já havia sido chancelada antes. “A nossa pergunta científica é diferente, mas o método que adotamos foi validado pela revisão por pares. Só estamos aplicando a terras indígenas.”
A nota técnica foi endossada por cinco cientistas brasileiros que não participaram de sua elaboração. São nomes de destaque, como a ecóloga Mercedes Bustamante, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, o físico Paulo Artaxo e o economista Ronaldo Seroa da Motta. A lista é encabeçada pelo climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP – o primeiro a mostrar, no começo dos anos 1990, que quase metade do vapor d’água trazido do oceano Atlântico para a Amazônia pelos ventos alísios era mais tarde direcionado para o Sul do continente.
O climatologista concorda que os resultados mostram a importância de proteger os territórios indígenas. “Se a gente desmatar tudo aquilo, vamos diminuir muito as chuvas que alimentam um dos maiores setores da agricultura da América do Sul.” Para Nobre, passou da hora de os ruralistas acordarem para o que ele e outros colegas vêm alertando há décadas. “Não é mais possível que eles continuem ignorando o risco que as mudanças climáticas e o desmatamento da Amazônia e do Cerrado trazem para eles próprios”, afirmou. “Vamos ver se agora vão deixar o negacionismo de lado.”
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) conta atualmente 340 deputados e senadores – o equivalente a 57% do Congresso. Desse total, estima-se que entre cem e duzentos compõem o núcleo da bancada ruralista, que costuma votar em bloco e defender a qualquer custo os interesses dos grandes proprietários rurais. A piauí perguntou à FPA se, diante dos resultados do novo estudo, o agronegócio não deveria se empenhar para conservar a floresta em terras indígenas. Em nota, a bancada afirmou que defende a tese do marco temporal como ferramenta para promover a segurança jurídica no campo. “A FPA não é contrária à demarcação de terras indígenas já realizadas, muito pelo contrário. Acreditamos na preservação da cultura daqueles que desejam mantê-la”, diz a nota. “Somos contra a demarcação de terras em áreas escrituradas e registradas, sem a devida indenização do produtor rural que investiu nessa área, fragilizando o direito de propriedade e a segurança jurídica.”
No estudo, os cientistas brasileiros utilizaram uma ferramenta de modelagem computacional que permite estimar a quantidade de vapor d’água gerado numa determinada área de floresta e o caminho que ele percorre graças à ação dos ventos, como se um rastreador tivesse sido colocado nas moléculas de água. “Nosso método revela quanta água certas áreas fornecem para outros lugares”, resumiu o ecólogo Arie Staal, da Universidade de Utrecht, o único autor estrangeiro do estudo. O holandês é um dos criadores da técnica, batizada de UTrack e descrita num artigo publicado em 2020.
Ele disse que ficou satisfeito ao ver a metodologia empregada para mostrar a importância da floresta de pé nas terras indígenas. “É exatamente o tipo de aplicação de impacto que tínhamos em mente quando desenvolvemos nosso método e decidimos tornar nossos dados disponíveis para o público”, afirmou o ecólogo à piauí.
Os números recém-publicados se referem apenas à chuva gerada nas florestas conservadas nas terras indígenas, que cobrem pouco menos de um quarto da área de toda a Amazônia Legal. No futuro, o método pode ser usado para calcular a chuva gerada por outros trechos onde haja floresta – sejam unidades de conservação, propriedades privadas ou terras públicas que ainda não foram designadas para uma finalidade específica. Se os cientistas mostrarem que essas matas também produzem chuvas que irrigam lavouras e pastagens, podem estimular que elas sejam protegidas na forma de terras indígenas ou unidades de conservação.
“Os benefícios ambientais seriam muito maiores se o cálculo fosse expandido para outros territórios que protegem a floresta”, disse a economista Bruna Stein, coautora do estudo. Stein lembrou ainda que o trabalho investigou apenas a geração de chuva, mas que os serviços ambientais prestados pela Amazônia vão muito além disso. Eles incluem ainda a regulação climática promovida pela floresta e o armazenamento de carbono pelas árvores, que retiram da atmosfera o gás carbônico que contribui para o aquecimento global.
* O Instituto Serrapilheira foi criado pelo fundador da piauí.
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