ILUSTRAÇÃO: NEGREIROS_2010
A grana preta e suas relações com o inconsciente
A poderosa pulsão de adular pacientes que pagam 600 dólares por sessão.
Woody Allen | Edição 50, Novembro 2010
Se as orgias, o arremesso ocasional de um cristão aos leões e a regurgitação de línguas de pavão a fim de preparar o estômago para a segunda rodada de miolos de macaco representaram, para Edward Gibbon, indícios de que a toga romana estava prestes a sair de circulação, uma reportagem na qual meus olhos resvalaram quando punha em dia a leitura de números atrasados do New York Times serve de funesto testemunho sobre o futuro dos adeptos de banhos de leite.
Parece que agora existem psicanalistas especializados no tratamento dos super-ricos, um grupo cuja fortuna e poder criam problemas peculiares que intimidam e até instigam a inveja de psiquiatras classificados em faixas de tributação do imposto de renda menos obesas. Segundo a reportagem intitulada “Os desafios de tratar pacientes que pagam 600 dólares por sessão”, quando se psicanalisa o magnata típico, pode ser difícil para o médico resistir à tentação de “adotar, de maneira bajulatória, o ponto de vista do paciente”.
Em certos casos, aponta a matéria, “os pacientes tratam o terapeuta como apenas mais um membro de seu séquito de serviçais”. Um analista, incapaz de encontrar cinquenta minutos livres para atender um mandachuva, recebeu da secretária do paciente a seguinte pergunta: “Que tal às 10 horas? Ele vai voar para Hamptons, mas vamos mandar um carro buscar o senhor para que possa pegar o helicóptero junto com ele e fazer a terapia durante o voo.” De resto, os problemas que afligem os super-ricos podem ser menos existenciais do que, digamos, um mineiro de carvão que passa a sofrer de claustrofobia ao descer quilômetros abaixo da superfície da terra. Como exemplo de uma crise de maior requinte, a reportagem apresenta uma senhora abastada que se convenceu de que era uma jogadora de tênis pouco hábil. Podemos imaginar os soluços histéricos de uma loura da Quinta Avenida, paramentada de Prada: “Doutor, o senhor tem de me ajudar. Parece que não consigo de jeito nenhum acertar meu segundo saque.”
Toda essa decadência não poderia deixar de trazer à mente o seguinte esquete, que tanto pode ser lido como rasgado, ou quem sabe possa ser usado para deduções do imposto de renda.
O doutor Leon Parafuso Frouxo era a imagem exata que um cartunista faria de um psicanalista freudiano: meio calvo, atarracado, um cavanhaque à la Van Dyke, que evocava o mundo de Strauss e strudel da velha Viena, enquanto caminhava afobado, não pela Ringstrasse, mas pela Park Avenue, rumo a um atendimento domiciliar. “Não posso me atrasar”, sussurrava entre bufos e arquejos. “Não posso deixar o senhor Pólipo esperando. Não com a posição que ele ocupa na classificação da agência de negócios Dun & Bradstreet. O homem ganha mais em títulos do Tesouro num dia do que eu numa década. Na sexta-feira passada, quando me atrasei, ele me esculachou. É humilhante ouvir alguém falar assim com a gente. E a surra, então? Eu devia ter terminado o tratamento naquele minuto, mas detesto abrir mão de usar seu jato Gulfstream.
É interessante a neurose de que ele sofre: uma mórbida incapacidade de aprimorar sua tacada de golfe. Rico do jeito que é, pesa sobre o homem um tamanho bloqueio que ele só consegue dar tacadinhas de leve, como se a bola estivesse já perto do buraco. A causa subjacente se revelou óbvia a partir de um sonho que ele contou, no qual os 400 mais ricos da revista Forbes apareceram em sua janela com chapeuzinhos de cata-vento e regaram seu corpo com um molho de carne morninho. É claro que o senhor Pólipo rejeitou minha interpretação do sonho em favor da sua, e fui obrigado a concordar com ele, tendo em vista nossos patrimônios líquidos relativos. Sei que ele se sente superior a mim, e outro dia o surpreendi num ato falho muito revelador, quando quis elogiar minha serenidade e me chamar de “cabeça-fria” e usou “boia-fria”.
Tenho de conversar com meu próprio terapeuta sobre os problemas de identificação com a clientela abastada. Sendo a minha receita mensal o que é, o que será que passou pela minha cabeça quando paguei uma volumosa entrada para a aquisição de um iate de 60 pés à prestação? Foi deveras embaraçoso quando uma equipe da financeira apareceu e retomou a posse da embarcação, e eu estava em pleno mar, obrigando meus convidados a nadarem até a praia. E agora toda essa aflição em torno dos problemas conjugais de Pólipo. Quando sugeri que um relacionamento adúltero não resolveria nada, ele discordou enfaticamente e, que inferno, depois de alguns drinques e um final de semana com ele no Mar-a-Lago Club, ele me convenceu mais uma vez de que eu estava errado, e que um par de garçonetes de 19 anos seria a cura perfeita para a sua depressão. Passei para ele o telefone de Lola, a secretária de meu filho. Por que não? Além de solteira ela é, pelo que soube, um verdadeiro fenômeno. Também devo insistir para que ele não receba telefonemas de negócios durante nossas sessões. Sobretudo porque sempre me pede para sair da sala e esperar no corredor até a conversa terminar.”
Na esquina da rua 74 com a Park Avenue, Parafuso Frouxo, imerso em reflexões, nem percebeu para onde estava andando e enrolou-se na coleira de um cachorro puxada por um homem de ar erudito que passeava com um poodle.
“Santo Deus, tome cuidado”, repreendeu o homem. “Este animal é ganhador de vários prêmios.” E depois, com olhos arregalados: “Leon Parafuso Frouxo, pelas barbas do Profeta!”
“Vilmos”, disse Parafuso Frouxo, reconhecendo na mesma hora o colega de profissão. “Não nos vemos desde a convenção da Filadélfia. Ainda não tive a chance de lhe dizer como apreciei seu artigo ‘Amnésia como mecanismo de defesa contra o ato de dar gorjetas’. Não sabia que você tinha um cão premiado em exposições.”
“Ah, não é meu”, explicou o doutor Miolomole. “Estou só passeando com ele para meu empregador. Edwards, o motorista, telefonou avisando que estava doente. Em geral, é ele quem passeia com o Príncipe.”
“Seu empregador?”, indagou Parafuso Frouxo.
“Sim. Faço parte da folha de pagamentos do senhor e da senhora Lubrificante, que moram nesse condomínio de luxo.”
“Não está se referindo a Quincy Lubrificante, cuja família detém a patente da ideia dos royalties, o que lhe rende royalties toda vez que alguém ganha royalties, não é?”
“O próprio”, admitiu Miolomole. “A fortuna de ambos chega à casa dos porrilhões. Para encurtar a história, vivo com eles em tempo integral, na condição de psicanalista de plantão.”
“Não!?”, disse Parafuso Frouxo. “Eu estava louco para saber quem era o felizardo que tinha abiscoitado esse empregaço.”
“Pode parecer que é uma bênção dos céus”, confessou Miolomole, “mas, acredite em mim, eles não me dão sossego. Bem entendido, o salário é razoável. Ganho os protocolares seiscentos paus por hora, e mais opções de compra de ações a preço fixo. Claro que tenho meu próprio quarto, vizinho ao quarto da faxineira. Não é grande coisa, mas tenho uma televisão. O pessoal de serviço consiste em Juliana, a empregada, e eu, além de um chefe de cozinha, um motorista e um preparador físico particular. Eles são muito gentis e todos nós damos cobertura uns aos outros nas horas de emergência. Como aconteceu hoje, quando o motorista acordou gripado, e sobrou pra mim exercitar o cachorro. No final de semana passado, como Juliana teve de ir ao Departamento de Imigração, eu mesmo cuidei de fazer a faxina e empunhar o espanador de pó. Entre tudo isso, e ainda fazer compras na mercearia de importados, me sobra exatamente o tempo necessário para tratar dos ataques de pânico do senhor Lubrificante.”
“A julgar pelo que leio sobre ele no Wall Street Journal”, atreveu-se a falar Parafuso Frouxo, “diria que o homem sofre de narcisismo agudo.”
“Era precisamente esse o meu diagnóstico inicial, mas há algumas semanas tive de extrair um dente e Trúculus, o preparador físico particular, tomou meu lugar na psicanálise de Lubrificante.”
“O preparador físico fez a terapia?”, indagou Parafuso Frouxo.
“Já fez isso inúmeras vezes”, respondeu Miolomole. “É um garoto perspicaz. Sabe Pilates. Além do mais, trabalhou como leão de chácara, e assim assimilou certa dose de psicologia. De todo modo, fique sabendo que o Trúculus chegou ao âmago do problema de Lubrificante. Constatou que se tratava de culpa. Isso mesmo. Lubrificante passa por um inferno emocional toda vez que faz uma oferta hostil para se apossar de alguma empresa.
A única maneira que encontra para aplacar a consciência é presentear a si mesmo com a pintura de um mestre da Antiguidade, à guisa de recompensa. Então se sente duplamente culpado por gastar 300 milhões para comprar um Vermeer e depois jogá-lo dentro de um armário. Eu o ajudei, mas a melhora é lenta. Quando comecei o tratamento, ele pegava o carro, ia para sua casa em Lyme, acendia sua churrasqueira e queimava 4 ou 5 milhões em dinheiro vivo, por puro ódio de si mesmo. Pelo menos já consegui que não ficasse parado tão perto do fogo.”
“A propósito”, indagou Parafuso Frouxo, “tem alguma notícia de Paul Ersatz? Não o vi com os outros psiquiatras na praia de Vineyard este ano, e ainda estou com aquele seu disco voador de brincar na areia.”
“Lamento dizer que Ersatz não está mais entre nós”, respondeu Miolomole com ar solene. “Uma história horrível. Ele estava tratando de Morris Bancarrota, herdeiro dos milhões oriundos do comércio das máscaras feitas só de nariz e óculos postiços.
“E então?”, perguntou Parafuso Frouxo, com ar apreensivo.
“O único horário livre que o paciente tinha para a terapia era em seu helicóptero, no trajeto para a sua fazenda em East Hampton. Como sabia que o paciente era um titã da indústria extremamente ocupado, Ersatz concordou. Mas o helicóptero entrou numa zona de turbulência, o sofá onde o paciente estava deitado ricocheteou no teto e projetou Ersatz para fora da aeronave. Encontraram seu corpo no último terreno amplo o bastante para permitir a construção de um condomínio em Sagaponack.”
Naquele momento, saindo de um prédio impecável, com uma maleta na mão, surgiu um terceiro praticante da cura pela fala, a quem ambos conheciam e admiravam, Lobo Frontal, uma lenda nos círculos analíticos. Frontal era famoso por seu sucesso no tratamento dos casos de distúrbio de personalidade múltipla, pelos quais cobrava honorários em separado de cada uma das personalidades. Após uma rodada de saudações amigáveis, Parafuso Frouxo perguntou ao doutor Lobo o que andava fazendo.
“Acho que nunca devia ter aceitado tratar do caso de Fernando Fundo Falso”, disse, e suspirou.
“O nome é familiar”, ponderou Miolomole.
“Ele fez uma fortuna de bilhões com hedge funds. Mas depois se constatou que tudo não passava de esquema de fraude da pirâmide. E, ainda por cima, ele nunca pagou nenhum centavo de imposto. Foi obrigado a fugir de madrugada para as Ilhas Canárias. A questão é que Fundo Falso é rico como Creso, mas é um fugitivo da Justiça. Ele me paga para fazer sua psicanálise em trânsito. Encontramo-nos em locais secretos, marcados por intermediários. Às vezes nas Bahamas, às vezes na Venezuela, certa vez à meia-noite num hotel em Casablanca. Ah, sou bem remunerado. Embolso seiscentos paus por sessão, mas é uma rotina arriscada. Os agentes federais chegam cada vez mais perto. Uma vez, em Xangai, o paciente e eu tivemos de interromper uma epifania para nos jogarmos pela janela.
E, no Rio, trocamos tiros com a polícia. Na certa você está pensando por que razão eu ando com um berro sempre à mão, não é?”, disse o doutor Lobo e ergueu a perna da calça para deixar à mostra um revólver num coldre de canela. “É um serviço que ofereço à minha clientela mais chique.” Piscou o olho e se afastou.
“Eh… puxa vida”, disse Parafuso Frouxo com alívio, enquanto a tríade se desfazia.
“Também tenho de voltar ao trabalho”, disse Miolomole, checando a hora no relógio de pulso. “Está quase na hora do senhor Lubrificante, e além do mais prometi segurar o rolo de linha para sua esposa fazer tricô. Vejo vocês dois na convenção.”