Do conteúdo dos artigos às regras do convívio, todas as decisões são negociadas entre os editores. A Wikipédia costuma ser lida como obra de referência, mas funciona também como rede social ILUSTRAÇÃO: ROBERTO NEGREIROS_2012
Cooperação conturbada
Quem são e por que brigam os editores da Wikipédia em português
Bernardo Esteves | Edição 70, Julho 2012
A usuária que se identifica como Nice poa editou pela última vez um artigo da Wikipédia numa noite de setembro do ano passado. Em uma hora e meia ela fez dezesseis intervenções, dando preferência a verbetes sobre cidades gaúchas. Organizou links internos, padronizou subtítulos e removeu um bloco de texto que não citava nenhuma fonte. Antes de desconectar, incluiu um aviso num verbete: “Esta página precisa ser reciclada de acordo com o livro de estilo. Sinta-se livre para editá-la para que esta possa atingir um nível de qualidade superior.” Ainda voltou à enciclopédia online uma última vez, mas não editou nenhum artigo. Apenas apagou mensagens deixadas por outros usuários em sua página de discussão.
Com 153 641 intervenções desde abril de 2006, Nice poa é quem mais editou artigos da Wikipédia em português. Na sua página de usuária, ela se apresentava: “Meu nome é Eunice. Nasci, cresci e moro em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Sou formada em artes plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado, de São Paulo, onde morei alguns anos.”
Aos 63 anos, Nice tem cabelos compridos e a voz rouca. Ela gostava de editar na Wikipédia artigos sobre bairros, clubes, igrejas e estádios da capital gaúcha. Mexia também em verbetes de artes plásticas e cinema. Embora não trabalhasse, atravessava madrugadas no computador. Algumas de suas intervenções corrigiam erros de português e acrescentavam imagens. Passava um tempão agrupando artigos em categorias como “Praças de Porto Alegre”, “Economia de São Paulo” ou “Símbolos da Espanha”. “Eu era uma organizadora”, disse Nice quando a entrevistei num café no bairro Moinhos de Vento. “Deve ser coisa de mãe.”
Nice se considera alvo do que chamou de bullying de um usuário da enciclopédia que se intitula RafaAzevedo. “Ele não me dava folga, em qualquer página que eu mexesse, ia lá e desfazia”, contou. “Era uma coisa horrorosa. Chegou o ponto em que eu disse: ‘Sabe de uma coisa? Cansei. Não sou masoquista. Para mim, deu.’” Nice reconheceu que seu comportamento nas discussões não era lá um modelo de fleuma. Ao se deparar com o que julgava ser um desaforo, defendia-se com vigor. “Jamais agredi alguém na Wikipédia antes de ser agredida primeiro”, ressalvou.
A gota d’água veio num debate sobre a legitimidade da inclusão de todos os historiadores nas listas de escritores – afinal, é na forma de livros que eles costumam apresentar seus estudos. Convicta disso, Nice tratou de fazer valer o seu ponto de vista. RafaAzevedo discordava, e achou natural desfazer uma a uma as intervenções de Nice. Como acontece em divergências, a questão foi resolvida nas páginas de discussão que acompanham cada verbete e cada perfil de usuário. Nice reclamou de seu antagonista num desabafo a outro editor:
Ele reverteu tudo, como era esperado, impondo sua opinião pessoal apenas, e obviamente sem fundamento, e principalmente sem discussão. E, como sempre, ninguém se manifestou sobre a atitude persecutória que esta pessoa invejosa, despeitada e mau-caráter me faz. Mais uma vez a força bruta de alguém que se esconde no mundo virtual, a imposição da própria opinião, a empáfia e a certeza da impunidade deste senhor chorão, rei dos pedidos de bloqueio aos desafetos, venceu.
Ofendido, RafaAzevedo pediu aos administradores do projeto que punissem Nice poa por “violação gravíssima das normas de conduta”, “acusações infames” e “disseminação de desconfiança”. Julgado procedente o pedido, ela foi impedida de editar a Wikipédia por três dias. Manteve sua rotina de edição por pouco mais de um mês após a decisão. Depois, desistiu e se afastou do site.
O artigo “Botswana” da Wikipédia em português não parece diferente do verbete de outros países. Mas uma leitura mais atenta notará, já na introdução, a abundância de fontes citadas para justificar a grafia do nome do país ora com “w”, ora com “u”. Isso é indício da prolixa negociação, na página de discussão do verbete, na qual os editores escreveram mais de 193 mil caracteres ao longo de três anos para decidir qual grafia deveria prevalecer.
Todas as decisões editoriais da Wikipédia são negociadas entre seus editores voluntários, que nada recebem por suas contribuições. Eles decidem o que pode ser incluído, o estilo e o conteúdo dos verbetes. E também as regras para o convívio dos editores, as punições para aqueles que as infringirem e quem são os usuários com a prerrogativa de aplicar sanções. A maioria das decisões é tomada por voto aberto, e há casos abundantes de fraude eleitoral comprovada. A Wikipédia costuma ser lida como obra de referência, mas funciona também como uma rede social.
Ainda que os artigos da Wikipédia possam ser alterados por qualquer um com acesso à internet, só 6% dos leitores o fizeram alguma vez. Os usuários não precisam fazer cadastro e podem contribuir sem se identificar. Suas intervenções são registradas com seu endereço de IP, um número de vários dígitos que identifica os dispositivos conectados à internet. Ele permite rastrear o provedor e a localização de uma máquina na rede. Com autorização judicial, é possível investigar e descobrir em qual computador foi feita determinada edição. Mas o recurso à Justiça é trabalhoso, demanda tempo e dinheiro. Os editores podem também criar uma conta na Wikipédia e, nesse caso, passam a ter suas contribuições identificadas com um nome de usuário.
Cada editor pode construir uma página de usuário, mas não precisa declarar a sua identidade verdadeira. Alguns revelam ali algo da sua vida fora da internet. Em sua página, RafaAzevedo, o desafeto de Nice poa, disse poder contribuir com a Wikipédia em onze idiomas diferentes, inclusive russo, grego, latim e hebreu. No topo da página, incluiu uma declaração de princípios em que deplora a tolerância da enciclopédia com usuários novatos: “Parece que devemos passar a mão complacente na cabecinha dos mentecaptos que produzem o lixo que temos de limpar, como se isso fosse uma escola primária, um hospital de alienados, um centro da Cruz Vermelha, um consultório psicanalítico ou um parquinho de diversões.”
Na Wikipédia não importa quem você é, só o que você faz. RafaAzevedo já fez mais de 100 mil intervenções e criou mais de mil artigos. Em junho, ampliou o artigo “Império Aquemênida”, modificou verbetes sobre xintoísmo, mitologia grega e famílias reais europeias, além de intervir nos artigos de Leonel Brizola, Florestan Fernandes e Fátima Bernardes.
“Carlinhos Cachoeira morreu”, mentiu um usuário, identificado pelo número de IP, no verbete sobre o contraventor que é protagonista da última Comissão Parlamentar de Inquérito aberta no Congresso. O senador Demóstenes Torres também foi alvo de má-fé. Um outro IP afirmou que ele fora considerado “o senador mais feio da história do país”.
As edições mal-intencionadas são chamadas na Wikipédia de vandalismos. Elas são comuns nos artigos mais consultados, os de personalidades e acontecimentos de destaque. Há quem escreva palavrões, inclua sequências sem sentido ou apague blocos de texto. O histórico de edições de um verbete registra intervenções pouco enciclopédicas, como a incluída certa vez no artigo “Efeito estufa”: “Adoro colocar as minhas mãos entre as pernas da Claudete.”
Um usuário incluiu recentemente uma passagem no verbete da presidente Dilma Rousseff dizendo que ela é “uma mulher muito malandra, que por isso se tornou a 36ª presidente do Brasil”. No mesmo minuto, a intervenção foi desfeita pelo Salebot, que vem a ser um software criado para fazer intervenções automáticas na Wikipédia. Combater o vandalismo é sua função. Ele é programado para monitorar as intervenções recentes e revertê-las caso encontre expressões suspeitas. Salebot já fez mais de 175 mil interferências em verbetes da Wikipédia lusófona.
Robôs como ele não são o único mecanismo usado no combate aos vandalismos. Muitas depredações são desfeitas por patrulheiros humanos, que monitoram edições recentes. O wikipedista tem também a possibilidade de vigiar um artigo de seu interesse. Nesse caso, ele é notificado sempre que o verbete selecionado passar por alguma alteração. O número de vigilantes de um artigo pode ser lido como um termômetro do interesse por aquela página. O artigo de Lula é vigiado por 170 usuários. O de Dilma Rousseff, por 112. O de José Serra, por 94. E o de Fernando Haddad, por menos de 30.
Em seu doutorado sobre a Wikipédia em português, defendido na Universidade Federal de Minas Gerais, o professor de jornalismo Carlos Frederico d’Andréa estudou algumas biografias de pessoas vivas. Notou que nem sempre os erros e vandalismos eram corrigidos de imediato, mesmo em artigos muito consultados. No artigo sobre Ronaldo Nazário, menções ofensivas ao peso do centroavante, ou ao episódio no qual foi visto na companhia de travestis, foram removidas com rapidez. Durante mais de três anos, no entanto, sua então esposa foi chamada de Milene Rodrigues, em vez de Domingues.
A intervenção que anunciou a morte prematura de Carlinhos Cachoeira foi desfeita – dois minutos depois de posta no ar – pelo usuário Viniciusmc, que em seguida protegeu o artigo por dois meses. Com isso, proibiu que IPs ou usuários com contas recém-criadas alterassem o verbete. O artigo de Luiz Inácio Lula da Silva está protegido por um ano. Entre milhares de outras, também têm edição restrita as páginas dedicadas a Silvio Santos, Ronaldinho Gaúcho, Karl Marx e Britney Spears, além de Aquecimento global, Coca-Cola, Rede Globo e Igreja Universal do Reino de Deus.
Restringir a edição de verbetes é uma medida extrema que poucos usuários têm a permissão para tomar. Ela é facultada a editores considerados merecedores da confiança da comunidade: os administradores, eleitos por sua folha corrida de intervenções pertinentes e rigorosas. Eles podem também apagar artigos e bloquear usuários. Tudo isso é feito de maneira a evitar que se crie uma casta de privilegiados: o acesso às ferramentas administrativas só pode ser usado para fazer valer as regras do projeto, e não confere a um usuário autoridade sobre os demais. “A percepção da maioria da comunidade é que não deveria existir hierarquia na Wikipédia”, disse-me Lucas Teles, um estudante de medicina em Salvador, de 26 anos e administrador há três. “O ideal é que a palavra do administrador tenha o mesmo peso que a de um IP.”
A expressão enkyklios paideia – “educação circular” – designava em grego a educação em geral, acadêmica ou não. Reunir todo o conhecimento disponível numa única obra é a ambição do projeto enciclopédico, que teve encarnações variadas em diferentes épocas e povos, pelo menos desde a História Natural, em 37 volumes, de Plínio, o Velho. A ideia de enciclopédia que perdura até hoje é tributária do projeto iluminista conduzido na França do século XVIII por Denis Diderot e Jean d’Alembert. A Encyclopédie inspirou a mais longeva de todas as iniciativas do tipo: a Encyclopædia Britannica, lançada em 1768 na Escócia e editada nos Estados Unidos desde o início do século passado.
A Britannica anunciou em março passado que, depois de 244 anos, deixaria de ser publicada na versão impressa. Ela continuaria a existir apenas na web. A Wikipédia, gratuita e mais abrangente, foi invariavelmente apontada na imprensa mundial como um dos fatores que levaram ao fim de uma era. Um artigo na revista americana Wired defendeu que, na verdade, o golpe fatal na Britannica foi dado pela Encarta, a enciclopédia em CD-ROM que a Microsoft ofereceu aos compradores do Windows nos anos 90. Aos poucos, o computador substituiu a enciclopédia nas casas e no orçamento dos pais zelosos com a educação dos filhos.
No Brasil, há uma única enciclopédia em papel. É a Barsa, lançada em 1964 e comprada há doze anos pelo grupo espanhol Planeta. Foi lançada há poucos meses uma nova edição dela, com verbetes e ortografia atualizados. Com dezoito volumes e 135 mil artigos, ela custa pouco mais de 3 mil reais, e é comercializada por meio do sistema tradicional de venda de porta em porta. Seu público mudou. “Nossos compradores vêm da classe média emergente e adquirem a enciclopédia como objeto de desejo”, disse Sandra Cabral, diretora de marketing da empresa que a publica. A Barsa espera vender 70 mil unidades neste ano, contando clientes individuais e institucionais – por não haver concorrência, a aquisição por governos municipais, estaduais e federal dispensa licitação.
Ao menos no discurso público, a Wikipédia não é vista como ameaça. Numa manhã recente, o presidente do grupo Barsa-Planeta, Mauricio Gregório, pediu que eu imaginasse uma criança com um trabalho de escola para fazer sobre a questão “Por que Plutão deixou de ser um planeta?”. “Na Wikipédia pode acontecer de a pessoa que escreveu conhecer sobre o tema”, ponderou. “Na Barsa, a informação é validada pelo professor Ronaldo Mourão. Como pai, o que você quer para educar seus filhos?”
A Wikipédia foi lançada no começo de 2001 por Jimmy Wales, um especialista em finanças, e pelo estudante de filosofia Larry Sanger. Um ano antes, Wales contratara Sanger para ser editor-chefe de um projeto similar, a Nupedia, também concebida como uma obra de referência gratuita na web, só que feita por especialistas e com um rígido processo de revisão. Ao final de um ano, só doze verbetes foram concluídos.
Sanger foi então apresentado ao WikiWikiWeb, software que permitia que usuários modificassem e salvassem páginas da web. Seu nome era inspirado na palavra wiki, “rápido” na língua nativa do Havaí. O estudante e Wales resolveram testá-lo para construir uma enciclopédia colaborativa. Imaginaram que seria um projeto paralelo à Nupedia, mas o trabalho com a nova ferramenta mostrou-se mais ágil e dinâmico. Em menos de um mês, a Wikipédia atingiu seu primeiro milhar de artigos. Em um ano, eram quase 20 mil. A versão em inglês está prestes a atingir quatro milhões de verbetes.
A Wikipédia foi construída a partir de um punhado de princípios editoriais inegociáveis. Ela deve abrigar apenas informações de caráter enciclopédico, e está a critério da comunidade de editores determinar o que se encaixa nessa definição. Os artigos devem apresentar de forma neutra e equilibrada diferentes pontos de vista sobre uma mesma questão. Devem conter apenas informações verificáveis, ou seja, não há espaço para relatos de primeira mão ou opiniões. Só pode constar na Wikipédia o que já tiver sido dito em outras fontes – e desde que sejam consideradas confiáveis pela comunidade.
Ela é o sexto site mais visitado do mundo, atrás do Google, Facebook, YouTube, Yahoo e Baidu. Foi acessada por quase meio bilhão de usuários em maio, e teve 18 bilhões de páginas visua-lizadas em computadores e dispositivos móveis. Existem Wikipédias em 285 idiomas diferentes, das quais quarenta têm pelo menos 100 mil artigos. A edição em português está com quase 750 mil artigos e é a décima maior, atrás das versões em inglês, alemão, francês, holandês, italiano, polonês, espanhol, russo e japonês. Criada em maio de 2001, só dois meses depois apareceram os verbetes. O artigo inaugural foi “Planeta”, editado mais de 700 vezes desde então.
A Wikipédia costuma ser demonizada devido ao uso indiscriminado em trabalhos escolares. O departamento de história do Middlebury College, nos Estados Unidos, proibiu que a enciclopédia fosse citada em provas e tarefas dos alunos. Estudantes não são os únicos a recorrer a ela. Um estudo com médicos recém-formados na Inglaterra mostrou que 70% deles usam a Wikipédia. Em 2010, a versão francesa da revista eletrônica Slate apontou semelhanças inequívocas entre passagens do último romance do escritor Michel Houellebecq e três verbetes da Wikipédia. No mês passado, um livro-texto de medicina que plagiava o verbete “HIV” da Wikipédia em inglês foi retirado do mercado na Índia.
Os jornalistas também recorremos à Wikipédia, nem sempre com os devidos cuidados. Quando o maestro francês Maurice Jarre morreu, em março de 2009, um estudante irlandês decidiu fazer o que ele mais tarde chamou de um “experimento social”: na biografia do maestro na enciclopédia, atribuiu-lhe uma frase fantasiosa: “Quando eu morrer, vai haver uma valsa final tocando na minha cabeça que apenas eu poderei ouvir.” A frase foi lembrada no obituário de jornais respeitáveis como The Guardian e The Independent. Uma afirmação recorrente foi evocada na blogosfera para comentar o caso: “A Wikipédia é o melhor lugar para começar uma pesquisa e o pior para terminar.”
A revista científica Nature fez um estudo no qual avaliou a precisão de 42 verbetes de ciência da Wikipédia em inglês e da tradicional Encyclopædia Britannica, produzida sob a chancela de especialistas. Houve quatro erros graves de cada lado. A Britannica teve pouco menos erros factuais que a Wikipédia (123 a 162). A enciclopédia eletrônica se saiu melhor em artigos como “Lipid” [Lipídeo] – seu verbete não tinha nenhum erro factual, contra três da Britannica. Publicado há mais de seis anos, o estudo da Nature continua sendo citadíssimo em discussões sobre o site. Desde então, o verbete “Lipid” foi modificado 1 750 vezes.
O escritor e artista James Bridle mandou imprimir há dois anos, em doze volumes encadernados em couro preto, as 12 mil versões do verbete “A Guerra do Iraque” publicadas entre dezembro de 2004 e novembro de 2009 na Wikipédia em inglês. Com a dúzia de livros, chamou a atenção para o caráter processual dos artigos, uma dimensão fácil de perder de perspectiva na leitura cotidiana. A informação é fugidia na Wikipédia, transitória como as verdades.
Para preservar a isenção dos artigos, a Wikipédia não veicula peças publicitárias. A maior parte da receita para custear seu funcionamento vem de doações coletivas. Em uma grande campanha, no fim do ano passado, mais de 1 milhão de voluntários doaram 20 milhões de dólares. Elas se destinaram à Wikimedia Foundation, organização sem fins lucrativos que Jimmy Wales criou para ser a responsável legal pela operação da enciclopédia e de projetos correlatos (há um dicionário, bancos de sons, imagens, livros e documentos, todos eles colaborativos).
A sede da Wikimedia Foundation, em São Francisco, concentra a maior parte de seus 138 funcionários. A fundação trabalha em parceria com os chamados “capítulos locais”, iniciativas independentes que se alinham com seus postulados em diversos países. São cerca de 40 em todo o mundo. Por aqui, dezenas de voluntários se reúnem na Wikimedia Brasil, entidade que ainda não tem sede ou representação legal, mas realiza atividades na internet e fora dela para promover o conhecimento livre.
A Wikimedia Foundation tem dois funcionários recém-contratados no Brasil. A jornalista Oona Castro deve coordenar o escritório que a fundação pretende abrir aqui até o começo de 2013, que será o primeiro fora dos Estados Unidos. A ideia é promover o uso da Wikipédia e atrair novos contribuintes e apoio institucional.
A fundação está preocupada com a dificuldade da enciclopédia para renovar o seu corpo de editores. Na versão em português, o número de editores novatos – que fizeram ao menos dez intervenções – chegou a um pico de 506 em janeiro de 2008, mas vem caindo desde o fim do ano seguinte. Em maio passado 311 novatos se juntaram ao projeto. Se considerados os usuários que fizeram ao menos uma edição naquele mês, o número de wikipedistas era então de quase 4 700. Praticamente três quartos das edições são procedentes do Brasil, e 10% vêm de Portugal. Como em outras línguas, a Wikipédia lusófona é predominantemente masculina: só 7% dos usuários são mulheres.
Em maio, foi criado um verbete para a secretária municipal de Educação do Rio, Claudia Costin. O administrador Yanguas defendeu a sua eliminação chamando a atenção para o currículo nela exposto: “cv de política, bastante apologético (e, neste ano eleitoral, bem conveniente).” Seu destino foi decidido pela comunidade. Por nove votos a zero, decidiu-se pela extinção do verbete. No mesmo mês, foram apagados ou fusionados outros 118 artigos, incluindo “Expressão algébrica não linear” (“A Wikipédia não é um manual”), “História do bumerangue no Brasil” (“Pesquisa inédita sem fontes”) e “Fazer nas coxas” (“Artigo feito nas coxas”). Por outro lado, os wikipedistas decidiram manter os verbetes sobre o babalorixá Ivo de Xambá, a banda Orbe, o Movimento dos Atingidos por Barragens e outros 42 artigos.
Alguns verbetes sequer têm a chance de passar pelo crivo da comunidade. Se violar abertamente as normas da Wikipédia, um artigo pode ser indicado para eliminação sumária, ou quase. Ele passará pela apreciação de um administrador ou de um eliminador (categoria de usuários criada na Wikipédia em português e incorporada a outras versões). A maior parte das decisões sobre o que deve ou não entrar na enciclopédia é tomada por poucos usuários – 36 administradores e 23 eliminadores.
Numa enciclopédia colaborativa em que o limite do número e o tamanho dos artigos não são preocupações, traçar a linha de corte entre o que deve e não deve ser aceito está entre as tarefas que demandam mais tempo e energia dos usuários. A questão costuma ser descrita em termos de uma disputa entre “inclusionistas”, para quem toda forma de informação vale a pena, e “delecionistas”, que defendem rigor na seleção do que é enciclopédico.
Relatos de desencanto com o projeto frequentemente envolvem a criação malograda de um verbete por um usuário novato. Registrado como Pinguim2011, criei um artigo sobre o físico Luiz Davidovich com seis frases e três referências. O artigo passou pelo crivo de notoriedade e verificação dos patrulheiros de novas páginas, mas ficou oito meses sem qualquer intervenção. Ninguém se interessou em expandi-lo.
A Wikimedia Foundation promoveu em março encontros com wikipedistas de São Paulo, Rio, Curitiba e Natal. O do Rio reuniu quase vinte usuários no 2º andar de uma livraria em Laranjeiras. Eles estavam na rodada inicial de apresentações quando a atenção de todos se voltou para um rapaz magrelo que chegou atrasado, vestindo chapéu branco e camiseta do Império da Praça Seca, escola de samba da quarta divisão do Carnaval carioca. Era o usuário Quintinense, um inclusionista folclórico, batizado em homenagem ao bairro Quintino Bocaiúva, na Zona Norte, de onde também veio o jogador Zico.
Na página de usuário que registrou na enciclopédia, ele disse se chamar Leandro Rocha, ter 23 anos (hoje são 26), estudar direito e contribuir com artigos sobre bairros, escolas de samba, futebol e política. “Sou contra deleções de páginas, penso que esta deve ser uma alternativa extrema para conteúdos claramente não enciclopédicos, ou que sejam VDA”, escreveu ele, referindo-se às violações de direito autoral.
Quintinense recorreu a um expediente repudiado pela comunidade: criou o que os usuários chamam de sockpuppets, ou fantoches, isto é, outras contas na Wikipédia usadas para participar de uma mesma discussão. Falando em nome de vários usuários, ele reforçava seu ponto de vista nas votações de páginas para eliminar. Ele está bloqueado por tempo indeterminado desde que foi descoberto, há três anos e meio. Mas muitos wikipedistas acham que ele ainda continua interferindo na enciclopédia, só não se sabe com qual identidade.
Leandro mora com os pais numa casa de muro alaranjado, a dois quarteirões de um ramal da Central do Brasil em Quintino. No seu quarto, o monitor preto do desktop exibia a lista de “Páginas a eliminar” da Wikipédia, à frente de outras cinco abas abertas em segundo plano. Ele me explicou que, durante um tempo, editava alternadamente com uma conta em seu computador, com acesso à banda larga, e como outro usuário na máquina do pai, no 2º andar, com linha discada. Por descuido, fez com uma conta uma intervenção que deveria ter sido feita em nome de outro usuário. Foi pego. Continuou criando contas, sendo flagrado e bloqueado, num ciclo sem fim. “Quando dá game over eu começo de novo”, resumiu, rindo. A Wikipédia tem uma página chamada “Fantoches de Quintinense”, que lista sessenta contas com as quais ele editou.
Leandro Rocha não passou por um grande dilema ao decidir usar fantoches. Estava cansado de ver o conluio de editores, em chats e no MSN, para decidir entre si a sorte de propostas para eliminação em votações pouco divulgadas. “Políticas importantes são decididas com dez, vinte votos”, reclamou. Pareceu-lhe legítimo criar aliados para entrar na briga. “Meu interesse era só que houvesse justiça.”
Um usuário me disse que a Wikipédia é mais divertida devido a Quintinense. Fábio Azevedo não compartilha esse ponto de vista. Professor do Instituto de Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele é conhecido na Wikipédia como Lechatjaune. Azevedo acha que Leandro Rocha legou à Wikipédia lusófona um ambiente de descrédito e suspeição dos novatos. “Ele contribuiu para reduzir a confiança da comunidade na sua própria capaci-dade de se gerir e de confiar nas pessoas.” Por causa de usuários como Quintinense, o direito ao voto foi restrito na Wikipédia em português. Só são usuários plenos aqueles com contas ativas há três meses e 300 edições no currículo.
Em paralelo à sofisticação crescente dos fantoches, desenvolveu-se uma estrutura de vigilância para identificá-los e puni-los. Alguns editores – os verificadores – têm acesso a uma ferramenta capaz de localizar o endereço de IP das intervenções feitas pelos usuários com contas registradas, de forma a flagrar o eventual uso de sockpuppets.
Alexandre Montilha, funcionário público de 27 anos, é conhecido na enciclopédia como Ruy Pugliesi, que segundo ele teria uma personalidade distinta da sua na vida real. “Ele é mais calmo do que eu e tem uma linguagem um pouco mais rebuscada”, disse Montilha, que mora em Bauru, no interior paulista. Como verificador, ele identificou dezenas de fantoches comandados por Leandro Rocha, o que lhe “dava uma sensação de dever cumprido, de estar livrando o projeto de algo nocivo”.
Pugliesi, por sua vez, foi objeto de uma denúncia do usuário Sir Lestaty de Lioncourt, que teve acesso aos registros das investigações que ele fizera. O denunciante notou que o funcionário de Bauru andava bem mais ativo que os outros verificadores e insinuou que poderia estar fazendo consultas não autorizadas. Um dos alvos seria o usuário JSSX, que preferiu preservar sua identidade. Num e-mail, ele contou ter sido perseguido por Pugliesi e outros editores. Disse que, em consequência das verificações ilícitas, teve sua reputação arruinada na Wikipédia. “Tive que solicitar a substituição do nome que usava com o intuito de ‘limpar’ um pouco o estrago feito na minha imagem”, afirmou.
Ruy Pugliesi defendeu-se alegando que o pedido de verificação havia sido feito num e-mail por um ex-administrador da Wikipédia – um expediente lícito, segundo ele. Também contestou a legitimidade do acusador para ter acesso aos registros de verificação e assinalou que o antagonista estava mancomunado com outro operador de fantoches, que ele flagrara.
Depois desse episódio, a Wikipédia passou um ano e meio sem verificadores. A acusação foi levada ao Conselho de Arbitragem, a instância suprema de resolução de conflitos da enciclopédia. O Conselho está inativo e nunca se pronunciou sobre o caso, atitude que JSSX taxou de “uma omissão repugnante”. Em abril, foram promovidas eleições e a Wikipédia em português voltou a ter verificadores. A novidade foi saudada como um sinal de recuperação por Lechatjaune, que era um dos cinco integrantes do Conselho. “Houve uma retomada na confiança”, considerou. “Estamos juntando os cacos e olhando para a frente.”
A Wikipédia pode ser vista como um experimento de política em tempo real, no qual alguns dos seus frequentadores se associam para defender seus pontos de vista e restringir a ação de quem tenha posições contrárias. É espantoso o tempo e o investimento emocional que centenas de usuários dedicam ao projeto. Discussões de bloqueio e pedidos de desoneração podem assumir dimensões titânicas. É possível ignorar a discussão política dos bastidores, mas não se pode escapar do alcance das decisões tomadas ali. Como lembrou Quintinense, citando uma frase que a Wikipédia atribui ao historiador inglês Arnold Toynbee, “o maior castigo para quem não gosta de política é ser governado por quem gosta”.
Chegou a vez de Vinicius Siqueira falar no encontro de wikipedistas. Aos 19 anos, ele é um editor experiente e já foi administrador. Tem dedicado menos tempo ao projeto desde que começou a cursar medicina na Federal do Rio, no ano passado. Disse que era impossível exigir dos novatos que conhecessem todas as normas. “A Wikipédia tem mais regras que a Constituição de qualquer país”, avaliou. “Seus princípios fundadores foram sobrepostos por uma burocracia stalinista.”
O jargão legalista usado nas discussões entre editores evidencia o castelo bizantino de normas erguido pelos usuários. Quando foi solicitada a suspensão das permissões administrativas de Ruy Pugliesi, ele escreveu uma comprida defesa, e concluiu: “Um pedido de suspensão só pode ser aberto se estiver amparado no disposto em Wikipédia: Política de bloqueio#4 (Abuso da ferramenta de bloqueio por parte do administrador). Não há nada que o autorize, portanto. É ilegal, ilegítimo, irregular e representa única e exclusivamente uma vingança pessoal do usuário.” O pedido foi indeferido.
É tentador enxergar na selva de regras da enciclopédia o reflexo de um pendor que brasileiros e portugueses teriam pela burocracia, cristalizado na imagem do “Estado cartorial” descrito pelo sociólogo Hélio Jaguaribe. Mas nas Wikipédias em outros idiomas parece que o cenário não é muito diferente. Falando de São Francisco pelo Skype, Barry Newstead, coordenador de desenvolvimento global da Wikimedia Foundation, disse não haver um indicador que permita comparar o volume de regras nas diferentes versões do projeto. Ele não enxerga no excesso de burocracia um traço distintivo da enciclopédia lusófona. “Eu ficaria surpreso que muitas versões tivessem mais regras do que a Wikipédia em inglês, que, por ser a maior, lida com uma gama mais ampla de questões e desafios.”
O conhecimento das regras divide os wikipedistas novatos e experientes. Intervenções de boa-fé, mas que ignorem as normas do projeto, podem ser desfeitas sem discussão ou justificativa. Em casos de conflito, os veteranos frequentemente evocam as regras do projeto, às vezes na forma de siglas, e não raro levam a melhor.
Essa tensão está por trás de um ambiente percebido como hostil por vários editores novatos. O carioca Eduardo Feld, de 42 anos, vê a questão com tranquilidade. Numa conversa pelo Skype, ele comparou a chegada de um wikipedista à ambientação de um novato a uma academia de jiu-jítsu, esporte que ele pratica: “Você se torna amigo de todo mundo em uma semana? É rapidamente aceito como bom lutador? Não. Tem que provar que é bom. Enquanto isso, as pessoas vão te testando, tomam atitudes agressivas, questionam sua capacidade.” Feld é juiz de direito no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. O cargo guarda algum paralelo com a sua posição na Wikipédia: como eliminador, recebeu da comunidade procuração para apreciar os pedidos para apagar e restaurar artigos.
Ao contrário de Feld, o paulistano Heitor Carvalho Jorge, de 21 anos, queria ser administrador para combater vandalismos com mais agilidade. Por cinco vezes, postulou sua candidatura. Foi derrotado em todas. Heitor Jorge disse que não quer mais ser administrador.Com quase 40 mil edições em artigos no currículo, ele aprendeu a se valer do conhecimento das regras. “Sei onde posso mexer, com quem posso falar, e não sou o único”, disse. “Todos os usuários mais velhos manipulam o sistema em favor do que querem.”
Se um verbete for considerado de qualidade excelente e preencher uma série de requisitos formais, pode ser proposto para destaque – a comunidade decide por voto se aceita a candidatura. Um estudo mostrou que, nos artigos destacados, o número de intervenções e editores envolvidos é significativamente maior do que na média dos artigos. Na Wikipédia não vale o ditado segundo o qual muitos cozinheiros estragam o guisado.
Dentre os 461 artigos destacados na Wikipédia em português figuram quatro dedicados à cantora canadense Avril Lavigne. O artigo dedicado a ela tem 378 referências bibliográficas. É estruturado em catorze grandes tópicos e ilustrado por 23 imagens, três gráficos e uma tabela. Ele foi editado quase 6 mil vezes por mais de 1 100 editores. Já o verbete da cantora americana Nina Simone tem 251 palavras, uma foto e nenhuma referência. Foi alterado noventa vezes por 56 usuários.
Diferentemente de outros projetos enciclopédicos, a Wikipédia não segue um plano ou roteiro. Espelho da comunidade que a constrói, é um termômetro de suas preocupações. Dos 25 artigos mais editados do mês de maio, treze eram sobre futebol, seis sobre televisão e três sobre música. Havia ainda um artigo sobre cinema, outro sobre arte e a biografia de um político, François Hollande, que acabara de ser eleito presidente da França.
Para fortalecer a enciclopédia em áreas que não atraem tanto interesse, a Wikimedia Foundation vem buscando a ajuda da comunidade acadêmica. Foi promovido, há poucos meses, um encontro num auditório do Instituto de Física da USP para apresentar o programa Wikipédia na Universidade. Everton Zanella Alvarenga, consultor da Wikimedia Foundation no Brasil para a área de educação, expôs o desafio de atrair novos editores com conhecimento especializado, tanto professores quanto alunos.
Também vem crescendo o envolvimento de pesquisadores brasileiros com a Wikipédia. No ano passado, a professora Juliana Bastos Marques ofereceu uma disciplina optativa aos alunos de história da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Durante o semestre, 25 alunos melhoraram verbetes sobre a história da Roma antiga. Antes do curso, o artigo “Romanização” tinha duas frases. Hoje, tem vinte parágrafos, organizados em sete tópicos e farta bibliografia.
Juliana Marques chamou a atenção para a visibilidade desses artigos. “Religião na Roma Antiga” – um verbete cujo tamanho aumentou doze vezes depois da disciplina – foi visitado 4 322 vezes em maio. “Antes, os alunos aprendiam na enciclopédia que os romanos copiavam os deuses gregos, que Zeus era o equivalente de Júpiter e acabou”, disse ela. “Agora eles têm uma ideia um pouco mais adequada do assunto.”
Animada com o resultado da experiência, a professora promove neste ano um curso de extensão sobre a Wikipédia e capacita os alunos a criar e editar artigos. No primeiro semestre, iniciativas similares também foram promovidas na USP, na Unesp e na UFRJ.
Mas a Wikipédia também encontra resistência em sua investida na academia. Ao atuar ali, os cientistas têm que deixar de fora suas credenciais profissionais. Títulos e publicações acadêmicas não conferem privilégios a um wikipedista. No encontro promovido na USP, a física Lia Queiroz do Amaral, professora do Instituto de Física da universidade desde 1974, pediu a palavra e criticou a falta de revisão editorial do projeto. “Essa história de qualquer um poder tirar e adicionar é um pouco perigosa”, disse. Para ela, falta à Wikipédia um mecanismo que valorize “o conhecimento real, com critério”. “A fonte do conhecimento tem que ser controlada”, defendeu. “Tem que ter um aval, senão é o caos.”
Como Jurema Oliveira está registrada na Wikipédia desde 2004, ela é considerada uma usuária jurássica, de tão antiga. Criou artigos de instituições e nomes conhecidos da cultura nacional, como Gilberto Gil, Jorge Amado e Academia Brasileira de Letras. Escreveu inúmeros verbetes sobre candomblé, religião que ajuda a difundir na internet há mais de uma década. Também adotou a Nigéria na Wikipédia e elaborou dezenas de artigos sobre a política e a geografia do país africano. Ela tem 64 anos, trabalha como promotora de vendas num supermercado no bairro do Limão, em São Paulo, e criou mais de 2 mil artigos.
Ao longo de oito anos como editora, foi bloqueada uma única vez, em decorrência de um bate-boca justamente com RafaAzevedo, com quem tinha um extenso contencioso. Numa discussão sobre a grafia correta da província francófona do Canadá (Quebec ou Quebeque?), RafaAzevedo acusou-a de dizer uma “mentira deslavada”. Jurema replicou: “Não sou sua mãe pra dizer mentiras deslavadas.” Depois de uma animada apreciação do caso por editores, em que se ressaltou o longo histórico de beligerância entre os protagonistas, Jurema foi considerada passível de punição com base no parágrafo 1.3.1.3 da política de bloqueio: “Fazer ataques pessoais de modo sistemático.”
Jurema disse ter se reconciliado com RafaAzevedo após conhecê-lo pessoalmente no encontro de wikipedistas em São Paulo. “Quando você só tem contato com alguém através de um link, não faz ideia de quem é”, explicou num café no Centro de São Paulo. Ela classificou assim o antigo desafeto. “É um excelente editor. Uma pessoa muito inteligente.” E completou: “E rabugenta.” Numa foto do encontro na internet, os dois sorriem com copos de cerveja na mão. “Jurema e Rafael brindando à paz”, lê-se na legenda.
No livro O Iluminismo como Negócio, o historiador americano Robert Darnton discutiu um relatório em que Diderot avaliou a feitura da Encyclopédie. Para o editor, a obra tinha sido prejudicada pela mediocridade e incompetência de muitos colaboradores. Os verbetes eram malfeitos e desiguais, e temas importantes haviam sido omitidos. “A Encyclopédie foi um sorvedouro”, escreveu Diderot, “no qual esses perfeitos trapeiros lançaram desordenadamente uma infinidade de coisas mal digeridas, boas, más, detestáveis, verdadeiras, falsas, incertas, e sempre incoerentes e discordantes.” Ao citar essa passagem em seu blog, o estudioso da Wikipédia Carlos Frederico d’Andréa assinalou a semelhança das críticas de Diderot com argumentos comuns entre os detratores da Wikipédia.
Enciclopédias tomam tempo e esforço. A Encyclopédie levou mais de duas décadas para ficar pronta. Os onze anos de idade da Wikipédia não devem servir de álibi para justificar fragilidades do conteúdo. Mas ajudam a relativizar o que talvez sejam percalços da juventude. Juliana Bastos Marques recomendou encará-la como um projeto de longa duração ainda em construção. “É bobagem esse desespero para consertar tudo, a Wikipédia não precisa ser acabada amanhã”, disse. “Faz parte da ideia dela não ter fim.”