A PF interceptou mais de 400 ligações entre Demóstenes e Cachoeira. "Nem tudo que se diz se faz", justificou o senador, citando um samba de Ismael Silva na esperança de escapar da cassação ILUSTRAÇÃO: MAXIMILIANO BAGNASCO_2012
Doutor & professor
Um retrato falado da parceria entre Demóstenes Torres e Carlinhos Cachoeira
Carol Pires | Edição 70, Julho 2012
No condomínio Alphaville Cruzeiro do Sul, em Goiânia, um agente de segurança trajando uniforme azul-marinho segue de moto conduzindo o táxi até uma casa branca, sem muros. A fachada moderna sugere uma construção térrea, com pé-direito alto. Só por dentro percebe-se que é uma residência de três andares. Andressa Mendonça, 30 anos, é quem abre a porta. Calça branca, camisa rosa bem larga, sapatilhas pretas, cabelos cor de mel presos em um rabo de cavalo, ela logo explica que se esquecera da apresentação de quadrilha do filho mais novo na festa junina, pela manhã. Foi até a escola às pressas, adiando nosso encontro em uma hora. “Hoje eu estou péssima”, ela anunciou, “nem me arrumei para te receber.”
Nascida em Itumbiara, quase na divisa de Goiás com Minas Gerais, filha de um vereador e uma administradora de empresas, Andressa tem os olhos verdes e o sorriso frouxo. A imprensa a alçou à condição de musa da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga as atividades de Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Fartamente exposta em fotografias – sempre acompanhando a via-crúcis do marido –, ela já negou um convite da Playboy para posar nua. “Não sou tão vaidosa assim”, disse. Quando tirei uma caderneta de anotações da bolsa, sugeriu que eu ligasse o gravador: “É melhor para você lembrar depois.”
Quando Carlinhos Cachoeira entrou em sua vida, há quase três anos, Andressa era casada com Wilder Pedro de Morais, suplente do senador Demóstenes Torres (ex-DEM, sem partido), dono de duas dezenas de empresas. Voltando de uma viagem aos Estados Unidos, encontrou o marido oferecendo um coquetel a amigos. Entre os convivas estava Cachoeira. Ela e Wilder haviam se conhecido num fim de semana furtivo em Caldas Novas, balneário de águas quentes no interior de Goiás. Casaram-se depois de oito meses de namoro – ele com 36 anos, ela com 22, grávida. Dois anos depois, no dia da sua formatura no curso de serviço social, na Pontifícia Universidade Católica, descobriu que teria o segundo filho. Quando o casamento entrou no sétimo ano, Andressa pediu o divórcio. E começou a sair com Cachoeira, hoje com 49 anos. Após uma semana de namoro, foi morar com ele. Nove meses depois, planejavam o noivado na Itália. A viagem estava marcada para o dia 11 de março deste ano. Eles colocariam as alianças dia 14, aniversário dela.
Andressa e Cachoeira estavam vivendo na casa do empresário Walter Paulo Santiago, que a comprara recentemente do governador Marconi Perillo, no Residencial Alphaville Ipês. Pouco antes das 6 horas do dia 29 de fevereiro – onze dias antes do embarque para a viagem de noivado –, a polícia chegou para prendê-lo. Foi o próprio Cachoeira quem atendeu a porta. Andressa só acordou quando os agentes já faziam os trabalhos de busca e apreensão.
Sentada de lado, com os pés em cima do sofá da varanda, Andressa disse que nunca temeu pela prisão do marido. “Nunca tive medo, nem receio. Terminei um casamento porque estava infeliz. Ter esse novo amor foi maravilhoso. Não é uma aventura. É algo concreto. Então você não fica titubeando. É algo que te leva”, ela explicou.
No inquérito da Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, que investiga Cachoeira, há o registro de uma gravação do casal em que ele confessa se sentir inseguro. “Você tá inseguro em que sentido? Insegurança é coisa de mulher, para começar”, Andressa reage. Cachoeira diz estar sob ataque, fala que “o negócio de Goiânia já fechou”, que está “perdendo tudo”. “É a minha vida, eu tô te explicando: você tem dois filhos, é uma pessoa maravilhosa, pô. Eu não sou aceito pela sociedade. Não sou, uai. Sou malvisto.” Andressa então pergunta se ele quer tomar “outro rumo” com ela: “O que você quer? Tem que me falar. Não tenho bola de cristal, entendeu?”
A degravação termina com Cachoeira depreciando a própria imagem: “Sabe o que eu tô sentindo? Tô me sentindo um bandido. A forma que a sociedade me vê… Coisa que eu nunca tive é preconceito de mim mesmo. Hoje eu tô com preconceito de mim mesmo.”
Em 12 de junho, Andressa visitou Cachoeira pela 14ª vez na prisão. Ele está desde 18 de abril no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Passou o primeiro mês detido no presídio de segurança máxima de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Os dois conversaram em um parlatório, não podiam se tocar. Pelo vidro, ela mostrou o cartão de Dia dos Namorados que comprara numa loja. Cachoeira mostrou o dele, feito à mão. “Ele escreveu: ‘Te amo, você é a mulher da minha vida’, todo romântico’’, contou Andressa, que o chama de “Carlinho”, sem o “s” final.
Nas suas palavras, Cachoeira é “bem-humorado”, “bem-disposto”, “descolado”, “polido”, “delicado”, “comprometido”, “hilário”. Ela atribui a prisão à “inveja”, e a demora na obtenção de um habeas corpus, à “guerra política entre os partidos”. “Eu considero ele um preso político”, repetiu algumas vezes. “O Carlos que o jornal pinta, coloca como bandido – essa pessoa eu não conheço e posso garantir que não existe. Inventaram esse personagem.”
Policiais federais que participaram das investigações ou estiveram com Cachoeira após a prisão o descrevem como “um cara muito articulado”. Um deles me disse: “Com cinco minutos de conversa, você quer virar amigo dele. Ele é muito extrovertido, te ganha fácil na conversa.”
Carlos Augusto Ramos e mais oitenta pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público Federal em Goiás. Ele é apontado como chefe de uma quadrilha de exploração clandestina de jogos de caça-níquel em Goiânia e no entorno de Brasília. Tal atividade configura uma contravenção penal, mas, para realizá-la, o grupo cometeu uma lista de crimes: formação de quadrilha, corrupção, peculato, violação de sigilo profissional – conforme apontam as 205 páginas da denúncia. Policiais militares, civis e federais eram corrompidos para garantir o funcionamento da jogatina. Políticos e empresários trocavam sua influência por favores e vantagens financeiras, sustenta a promotoria.
A prisão de Cachoeira deflagrou uma crise política no país. Pelo menos dois governadores ou seus auxiliares tiveram contatos suspeitos com ele: Marconi Perillo, do PSDB de Goiás, e Agnelo Queiroz, petista do Distrito Federal. O deputado Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO) admitiu ser amigo de Carlos Cachoeira há 25 anos. “Se eu falar para você que não tinha conhecimento de que ele mexia com jogo, seria hipócrita”, disse. O ator e deputado federal Stepan Nercessian (PPS-RJ) recebeu 160 mil reais de Cachoeira como empréstimo para comprar um apartamento. Depois devolveu o valor.
A Delta Construções também caiu nas investigações. Segundo o relatório da PF, recursos da construtora foram enviados a “pessoas físicas e jurídicas vinculadas direta ou indiretamente à estrutura do jogo de azar” comandada por Cachoeira. Um grande diretor da empreiteira foi acusado pelo Ministério Público de manter sociedade secreta com o contraventor. Uma devassa nas atividades da Delta fatalmente atingiria o governo federal – que pagou à empresa 4 bilhões de reais entre 2001 e 2012 – e o governador do Rio, Sérgio Cabral, flagrado em situações no mínimo impróprias ao lado do empresário Fernando Cavendish, que se afastou do comando da Delta depois da eclosão da crise. A CPI ameaçou convocar Cabral para que explicasse os contratos da empresa do amigo com o governo fluminense. A mobilização dos governistas, que controlam a comissão, arquivou a ideia.
Neste balaio sortido de relações promíscuas, a parceria de Cachoeira com Demóstenes Torres foi a mais documentada. Áudios interceptados pela polícia indicam que o senador colocava o cargo e o prestígio a serviço dos interesses do contraventor, repassando informações que obtinha em ministérios, no Congresso e no Ministério Público. Até então, Demóstenes era conhecido pela ênfase com que atacava a conduta fisiológica ou mesmo criminosa do PT e de seus aliados. O mundo ruiu sob os pés do arauto da moralidade.
Bastou que eu dissesse meu primeiro nome, sem aposto ou outra referência, para Sebastião de Almeida Ramos acionar a abertura do portão de sua casa, na Vila Góis, em Anápolis. Aos 88 anos, o pai de Carlinhos Cachoeira mora num imóvel com muros altos e grades de segurança. Ele e o filho são muito parecidos – a boca pequena, a fisionomia, o sorriso. Sebastião assistia à TV Senado. Usava um sapato preto bem lustrado, calça social cinza e camisa de botão. Seus olhos pareciam azulados e o olhar, um pouco perdido (uma cirurgia de catarata feita há pouco tempo comprometeu parte de sua visão).
Tião Cachoeira, como é conhecido, nasceu em Araxá, na Fazenda Cachoeira. É o caçula de onze filhos do fazendeiro Antônio de Almeida Ramos. Os jogos de azar fazem parte da família há pelo menos três gerações. O avô de Carlinhos era sócio de um cassino na cidade mineira, no extinto Cine Trianon. Como todas as casas de jogos do país, o negócio foi fechado pelo governo de Eurico Gaspar Dutra, em 1946. Em 1956, ainda jovem, Sebastião foi para Brasília, trabalhar na construção da cidade.
Quando a capital foi inaugurada, ele se mudou com a mulher, Maria José, os pais e os filhos para Anápolis. Foi lá, ele disse, que começou a atuar no jogo do bicho, a convite de um amigo chamado Gedeon Gangussu. “Tocamos a sociedade. Ficamos juntos até ele morrer”, contou. Sem o primeiro sócio, Sebastião tentou formar parceria com outro amigo. A sociedade naufragou meses depois. O pai de Carlinhos afirma que largou o bicho “há pelo menos vinte anos”.
Ele mora na casa que era de Maria José, a ex-mulher. Diabética e tabagista, ela morreu no último dia 16 de abril, vítima de complicações respiratórias. Cachoeira estava preso e não pôde ir ao enterro da mãe, que reuniu mais de 600 pessoas em Anápolis.
Sebastião estava na companhia de uma empregada quando cheguei. Quarenta minutos depois, apareceu outra senhora: “Os filhos não querem que ele fale nada. Já estão cansados”, disse, aborrecida, sem se identificar. Quando ela foi à cozinha, o pai de Cachoeira pediu que eu fosse embora. “Não vou falar mais porque ela vai chamar meus filhos, vai te atrapalhar. Chega, chega.” No caminho até a porta, ele disse que ser chamado de “bicheiro” é o que mais magoa o filho: “Um sujeito que mexe com farmácia… Ele trabalhou para mim um mês, quando fiquei doente. Virou bicheiro por causa desse mês?”, questionou.
O pai de Cachoeira se referia à Vitapan, indústria farmacêutica fundada em 1977, no Rio de Janeiro, e transferida em 1990 para o Distrito Agroindustrial de Anápolis. Cachoeira a comprou em abril de 1999. Hoje, a empresa está no nome da ex-mulher, Andréa Aprígio, mãe dos três filhos dele. No site da empresa, consta que ela tem 898 clientes cadastrados, 67 produtos em linha e 280 funcionários. Com a Vitapan, Cachoeira deixou de ser conhecido apenas como bicheiro. Foi, porém, outra a empresa que o catapultou à alta sociedade goiana – a Gerplan, Gerenciamento e Planejamento Ltda.
A proibição dos jogos de azar vigente no país desde 1946 foi sendo relaxada ao longo dos anos, por meio de decretos e brechas na lei. A loteria, por exemplo, reserva parte da sua arrecadação para fins sociais. Nos anos 90, o lobbydo jogo obteve autorização para operar casas de bingo credenciadas, o que deu ensejo à instalação de máquinas caça-níqueis ilegais país afora. Estados e municípios aproveitaram o ambiente de indefinição jurídica que havia sido criado para aprovar suas próprias leis, o que complicou ainda mais o problema.
Foi nesse período que o então governador Maguito Vilela, do PMDB, terceirizou o controle da Loteria do Estado de Goiás, a LEG. Em 1995, a Gerplan de Cachoeira venceu a licitação e firmou contrato para explorar a loteria até 1997. Findo o prazo, o governo renovou o contrato até 2010, dispensando nova licitação. Um aditivo ao contrato em 1998 deu margem à exploração de videoloterias. O contrato foi questionado pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas do Estado, mas seguiu em vigor até 2004, quando Cachoeira se tornou personagem de um escândalo político nacional.
Em 2002, ele havia filmado um encontro com Waldomiro Diniz. O então presidente da Loteria do Estado do Rio de Janeiro lhe pedia propina e dinheiro não declarado para campanhas eleitorais de candidatos do PT e do PSB. Em troca, prometia mudanças no edital da licitação da Loterj para que as loterias virtuais fossem asseguradas a Cachoeira. Dois anos depois, a cena foi revelada pela revista Época. Waldomiro era o subchefe da Casa Civil, diretamente subordinado ao então todo-poderoso ministro José Dirceu.
O caso trouxe à tona contratos de Cachoeira com loterias não só do Rio e de Goiás, mas também do Rio Grande do Sul e do Paraná, firmados com diferentes empresas. A norte-americana GTech, da área de informática, foi arrolada às denúncias e “Charlie Waterfall” virou notícia internacional. A embrulhada foi desembocar na CPI dos Bingos, em 2005.
O então presidente Lula reagiu à crise editando uma Medida Provisória que proibia bingos e máquinas de caça-níquel em todo o Brasil. A Câmara aprovou a lei, mas 75 dias depois o Senado a rejeitou. Na ocasião, Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, foi criticado pela existência de brechas na MP que permitiram a Cachoeira preservar parte de seus negócios. Foi de Thomaz Bastos a responsabilidade final sobre o texto editado. Hoje ele atua como advogado de Cachoeira.
Em 30 de maio de 2007, as leis estaduais foram enfim declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. A CPI dos Bingos – também batizada de “CPI do Fim do Mundo”, por abrigar escândalos sem nexos visíveis entre si – havia sido concluída em 2006 com o pedido de indiciamento de 79 pessoas, entre as quais o ex-ministro Antonio Palocci. Em março deste ano, Waldomiro foi condenado a doze anos de reclusão e multa de 319 280 reais. Carlinhos Cachoeira, a oito anos de reclusão e multa de 184 520 reais. Os dois podiam recorrer em liberdade, mas Cachoeira havia sido preso pela Operação Monte Carlo no dia anterior. Pelas novas acusações, pode ser condenado a até trinta anos de prisão.
Pivô da crise política de 2004, Cachoeira contou ao jornal O Popular, de Goiânia, que a relação dele com Waldomiro Diniz tinha começado como “dono de empresa e administrador público”. Em primeiro mandato, ainda sem inserção nacional, o senador Demóstenes Torres era um dos tantos membros da oposição que foram à tribuna para bradar contra Waldomiro e o PT. Só hoje chama a atenção que em quatro discursos ele tenha omitido qualquer menção ao nome de Cachoeira. Os dois já se conheciam havia alguns anos. Também tinham sido apresentados um ao outro como “dono de empresa” e “administrador público”. Continuam juntos, sendo investigados pela mesma CPI.
Demóstenes Lázaro Xavier Torres, 51 anos, é o penúltimo de dez irmãos, nascido em Anicuns, município a 85 quilômetros de Goiânia. Filho do comerciante Avelomar Torres e da dona de casa Luzia Xavier Torres, viveu desde pequeno em Goiânia, onde cursou direito na Pontifícia Universidade Católica. Foi professor concursado da rede pública, revisor de jornal, advogado e promotor antes de chegar a procurador-geral de Justiça de Goiás. Sua ascensão foi veloz. Por quatro anos ele foi promotor em Crixás, no norte do estado. Dali, foi transferido para Goianésia, 173 quilômetros ao norte de Goiânia. Concorreu a procurador-geral do estado e perdeu a eleição, mas virou chefe de gabinete da procuradora em Goiânia. Dois anos depois, tentou novamente o posto de procurador-geral, com êxito. Foi eleito duas vezes consecutivas, em 1995 e 1998. Vigorava o mandato de Maguito Vilela, o mesmo governador que concedeu a Cachoeira o controle da LEG, a loteria de Goiás. Hoje o cargo de procurador-geral é ocupado pelo irmão mais novo de Demóstenes, Benedito Torres.
Foi no primeiro governo de Marconi Perillo que Demóstenes trocou a carreira na Procuradoria pela política. O tucano aceitou a sugestão dos então deputados pefelistas Vilmar Rocha e Jalles Fontoura e nomeou Demóstenes secretário de Segurança Pública em 1999. Jalles é de Goianésia e conheceu Demóstenes ainda como promotor. As famílias eram amigas. Os casais – Jalles e a arquiteta Maria Luiza; Demóstenes e a ex-mulher Leda – chegaram a viajar juntos ao Chile.
No terceiro ano do governo Perillo, as negociações apontavam para sua reeleição em 2002. Jalles Fontoura era o pré-candidato do PFL, a antiga encarnação do DEM. “Sugeri ao Demóstenes que fosse candidato a deputado estadual para tentar, dali a dois anos, a prefeitura de Goiânia. Ele me disse que tinha o desejo de ser federal, mas que não tinha financiadores de campanha”, contou Jalles, numa tarde recente, durante uma pequena festa junina organizada por sua mulher em Goiânia. Terminado o ano de 2001, a pedido do governador, todos os secretários que eram pré-candidatos entregaram seus cargos. Jalles o fez, Demóstenes não.
Até então secretário da Fazenda, Jalles almejava ser candidato ao Senado na vaga que cabia ao PFL na chapa com o PSDB. Filho de Otávio Lage de Siqueira, ex-governador de Goiás, ele tinha controle político de parte do partido no estado. A ala adversária era capitaneada pelo deputado federal Ronaldo Caiado, conhecida liderança da bancada ruralista, presidente do diretório. Não havia outro candidato dentro do partido brigando pela vaga, mas Caiado criou um: Demóstenes Torres. Jalles soube do rompimento da amizade pelos jornais. O ex-secretário de Segurança foi eleito senador com 1 239 352 votos. Caiado disse a mim que não iria comentar como anda hoje sua relação com Demóstenes: “É um assunto pessoal.”
“Quem financiou a campanha em 2002 foram o Carlos Cachoeira e o Ernani de Paula, ex-prefeito de Anápolis, cuja esposa veio a ser suplente do Demóstenes”, disse Jalles. Pela vida austera que o candidato parecia levar, Jalles conta ter ficado “surpreso” com o poder econômico da candidatura, “sobrando avião, aquela festa”. Oficialmente, a campanha de 2002 custou 614 351 reais. Na reeleição de 2010 ao Senado, quando obteve 911 mil votos a mais, foram gastos 9 216 013 reais – quinze vezes o dispendido oito anos antes. O relatório da Monte Carlo diz que há suspeita de financiamento de Cachoeira a Demóstenes, mas nada ainda foi comprovado.
A mulher de Ernani de Paula, Sandra Melon, permaneceu oito anos como suplente do senador. O ex-prefeito alega que, naquela época, desconhecia a participação de Cachoeira na campanha. “Não percebi que ele era apoiador oculto do Demóstenes. Pouco depois, me informaram que o Demóstenes foi visto com o Cachoeira em Anápolis, pagando umas continhas de campanha. Estranhei. É impossível que um secretário de Segurança Pública não soubesse onde estava o foco do jogo de bicho. Todo secretário tem um mapa do crime. Se não tem, é incompetência demais.”
Ernani de Paula teve o mandato cassado pela Câmara Municipal em 2003, acusado de aplicar irregularmente a verba destinada à educação. O ex-prefeito alega que foi “vítima de uma armação” de Demóstenes, Cachoeira e Perillo. Hoje ele é dono da Universidade São Marcos, que foi descredenciada pelo Ministério da Educação em março por irregularidades financeiras e administrativas.
Jalles Fontoura contou que esteve com Cachoeira e Demóstenes uma vez, antes da campanha de 2002. Como titular da Fazenda, era responsável pela fiscalização da loteria e das máquinas caça-níqueis no estado. Ele solicitou apoio logístico da polícia ao secretário de Segurança. “Eu mesmo articulei com o Demóstenes a cobertura de segurança dos fiscais da Fazenda, e assim aconteceu. Foi feita a fiscalização. Até aí tudo bem. Numa certa altura, o Cachoeira convidou o Demóstenes para ir à Vitapan. Ele me disse: ‘Vamos a Anápolis conhecer o Carlos Cachoeira que é empresário da área de remédios, produtos farmacêuticos.’ Ele me convidou, eu fui. Conheci o Carlinhos lá”, recordou Jalles. Foi, conforme suas palavras, “um encontro rápido”, num dia de semana, durante o expediente. A viagem foi feita em um carro oficial da Secretaria de Segurança. “Ou seja: eles já eram amigos”, concluiu.
Mauro José Severiano, o Maurão do INPS, já foi engraxate de Sebastião Cachoeira, trabalhou em padaria, serviu o Exército em Brasília e foi servidor concursado em diversas autarquias até se aposentar pelo Ministério da Saúde. É vereador há cinco mandatos. É um dos poucos que ainda gosta de alardear sua amizade com Cachoeira. No enterro da mãe do contraventor, Maurão foi parar nas páginas dos grandes jornais ao dizer: “Se Carlinhos não estivesse preso, aqui estaria cheio de políticos, com senador, governador e ministros de Estado.”
Ele disse que se lembra de Cachoeira, quando eram jovens, recolhendo o lucro nas bancas de jogo do bicho do pai. “Mas nunca vi o Carlinhos vender cocaína na porta de colégio, maconha na porta de colégio, nunca vi destruir a vida de ninguém. Só via ele na chácara, jogando bola. Ia Zezé de Camargo e Luciano, Bruno e Marrone, Leonardo. Todo mundo conhece o lugar como Chácara do Cachoeira”, disse, numa tarde recente no seu gabinete na Câmara Municipal de Anápolis.
Maurão contou que Cachoeira distribuía remédios e cestas básicas a anapolinos, além de arrumar empregos a pedido de vereadores, mas negou, é claro, que fosse um deles. A seguir, sugeriu que eu caminhasse pela avenida principal de Anápolis para verificar como a prisão de Cachoeira havia afetado o comércio da cidade.
Os números não são oficiais, mas estão consolidados na boca do povo: o comércio caiu 30% desde que Carlinhos foi detido. “Se ele não for solto logo, a gente vai quebrar”, disse o primeiro taxista que encontrei na cidade. Um empresário dono de uma rede de padarias adotou a mesma linha: alegou ter sofrido entre 20% e 30% de perdas nos últimos dois meses. Apenas o dono de uma concessionária associou o revés da economia local à conjuntura internacional, e não à prisão de Cachoeira. A explicação predominante é que muitas padarias, bares e lanchonetes mantinham máquinas caça-níqueis, agora confiscadas, no fundo dos estabelecimentos e usavam o dinheiro do jogo para honrar parte das suas despesas. Sem as máquinas, muita gente não consegue mais fechar as contas.
Anápolis firmou-se no cenário econômico regional como um centro de olarias de tijolos e reserva de areia que abastecia a construção de Brasília. Hoje é um polo industrial, com um dos dez maiores portos secos do país em movimentação de carga. Em 2010, o porto movimentou 2 bilhões de dólares. Segundo a PF, até recentemente os jogos ilegais empregavam 5 mil pessoas em Goiás, a maioria delas de Anápolis. Acidade, a segunda maior do estado, tem pouco mais de 334 mil habitantes.
Não encontrei máquinas caça-níqueis ao percorrer os bares anapolinos, mas jogo do bicho, sim. Na avenida Goiás, uma das mais movimentadas, alguns homens conversavam na porta de uma loja, com o letreiro “Loterias”, enquanto o anotador, Lúcio, fazia contas na calculadora. No balcão, papéis impressos com os nomes dos bichos e os respectivos números ao lado estavam separados em montinhos. Ele contou que o resultado chega pelo telefone e manifestou preocupação com a fiscalização. “Mas não tem outro jeito”, disse, apreensivo.
Ojogo do bicho surgiu no Rio de Janeiro, em 1892, para tentar salvar um jardim zoológico da crise. A fim de estimular as vendas, o visitante tinha uma das 25 espécies do parque estampada no seu bilhete de ingresso e podia ganhar um prêmio se o seu animal fosse sorteado. Os animais passaram a ser associados a séries numéricas da loteria e o Rio se tornou a “capital do jogo do bicho”. No seu Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo escreve que “o jogo do bicho é invencível. Está, como dizem os viciados, na massa do sangue”. É um jogo fácil e barato, o que o torna muito sedutor. Para cada 1 real apostado, pode-se ganhar algo entre 16 e 4 mil reais de prêmio, mas os valores variam de cidade em cidade.
Em Anápolis, comenta-se que apenas um dos irmãos de Cachoeira segue no jogo do bicho. É também o único que não é chamado pelo diminutivo. Marquinhos tem uma empresa de factoring. Luizinho tem uma empresa de segurança. Juninho trabalha com distribuição de remédios. Paulinho tem uma loja de material de construção. Julinho foi quem financiou a primeira gravação de Bruno e Marrone, em 1993. Como pagamento, a dupla lhe garantiu 100 shows, valendo 2 mil reais cada. A assessoria da dupla diz que eles só cumpriram cinco e pagaram o restante em dinheiro. Carlinhos tem ainda três irmãs.
Um empresário amigo da família me mostrou um vídeo gravado com o celular, no qual a família de Cachoeira está toda reunida, chorando sua prisão. No vídeo, dois jovens cantam músicas no violão e Andressa, sua mulher, aparece sentada em primeiro plano, com o rosto vermelho. De pé, a mãe dela apoia as mãos nos ombros da filha. Segundo um ex-segurança de Cachoeira, os Ramos “brigam muito” entre si, mas “se alguém de fora ataca um deles, viram um enxame, todos juntos”.
Uma professora do Colégio Galileu, onde estuda parte da elite de Anápolis, passou aos alunos do 2º ano do ensino médio a tarefa de escrever uma carta argumentativa a Cachoeira, tentando convencê-lo de que o crime não compensa. No dia seguinte, uma das alunas chegou à sala com uma de um advogado e pediu que a professora a lesse em voz alta. Ela não leu, mas deixou que a aluna fizesse. A carta discorria sobre a presunção de inocência e os direitos do acusado. A garota era sobrinha de Cachoeira.
Porta-voz da oposição ao PT, mas com bom trânsito entre os governistas, Demóstenes Torres era frequentemente identificado com o “grupo dos éticos”, ao lado de senadores como Pedro Simon e Cristovam Buarque. Sua produtividade também chamava a atenção. Era um dos parlamentares mais assíduos – apresentou 200 projetos, foi relator de 1 295 propostas de outros senadores. Como presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, a mais prestigiosa do Senado, ultrapassou a meta de 2 mil matérias examinadas ao longo do biênio 2009-10 – um ritmo de trabalho três vezes superior ao do presidente anterior.
Em levantamento atualizado em maio deste ano, a ONG Transparência Brasil diz que Demóstenes é um dos dez congressistas com mais projetos importantes para a população. Em 2007, a revista Veja fez uma reportagem sobre ele e outros quatro congressistas, chamando-os de “Os Mosqueteiros da Ética”. De 2007 a 2011, jornalistas apontaram-no todos os anos para concorrer ao prêmio de melhor parlamentar concedido pelo site Congresso em Foco. Em 2009, ele foi escolhido, por repórteres que cobrem o Congresso Nacional, o senador que mais combateu a corrupção no Brasil. Por dois anos – 2009 e 2011 –, a revista Época o colocou na lista das 100 pessoas mais influentes do país, numa das vezes com a seguinte legenda: “Demóstenes não é mais um comerciante no mercado em que se trafica influência em troca de cargos ou privilégios. Ele tem princípios e convicções.” Para arrematar, em 2010 ele foi relator do projeto de maior clamor popular dos últimos anos, o Ficha Limpa. “Vamos colocar os malandros no pau de goiaba”, disse na ocasião.
Espadachim da moral, Demóstenes alimentou ainda a imagem de pessoa cultivada, apreciador de música, comida e bons vinhos. Nos coquetéis que oferecia em casa, cantava acompanhado de uma banda de militares que conheceu em Goiânia. No Empório Piquiras, badalado restaurante da capital goiana, os vinhos favoritos do senador são apontados de pronto: Pingus, espanhol, a 4 500 reais a garrafa, e Château Lafite Rothschild, francês, 6 990 reais.
Seu esforço para emagrecer também foi fartamente noticiado. “Sua paixão por pamonhas teve de ser contida: no lugar de três unidades no lanche, ele hoje come meia como refeição completa. De manhã, malha com personal trainer para ganhar massa muscular. Hoje, 37 quilos mais magro, consegue amarrar os sapatos sem ter de se sentar na cama e passou do manequim 54 para o 46”, diz uma nota publicada na coluna “Spot”, do jornal goiano O Popular, em dezembro de 2009, ano em que o senador se submeteu a uma cirurgia bariátrica. Demóstenes continuava cuidando da silhueta neste ano – pouco antes do escândalo, fez uma cirurgia plástica para retirar o excesso de pele da barriga e da papada.
Cachoeira foi preso no dia 29 de fevereiro, uma quarta-feira. No sábado seguinte, a revista Época publicou que o senador tinha ganhado um fogão e uma geladeira de presente de casamento do contraventor. Ainda assim, os senadores mantiveram o apoio ao colega – 43 deles pediram a palavra no plenário da Casa para se solidarizar e reforçar a confiança em Demóstenes. Só no final de março, quando surgiu uma gravação em que o amigo pedia 3 mil reais a Carlinhos Cachoeira para pagar um táxi-aéreo, o DEM começou a falar em expulsá-lo do partido. Em 3 de abril, Demóstenes se adiantou e pediu a desfiliação. Assessores passaram a resgatar senadores do plenário para evitar que fossem fotografados ao lado daquela má companhia.
São muitos os parlamentares que se esquivam do assunto. “Põe meu nome, não. Esse caso está pegando tão mal que o pessoal lá em Goiás está evitando até nadar na cachoeira”, me disse um deputado goiano, aliado do réu. Em Goiânia, jornalistas e políticos dizem que já sabiam da relação dele com Cachoeira, mas que não tinham provas. Numa edição recente, O Popular, líder de circulação no estado, disse que Demóstenes havia ameaçado processar um repórter que lhe perguntara, anos atrás, sobre a amizade com Cachoeira. Olhando em retrospectiva, hoje adquire sentido o gesto do senador, quando, durante a gravação do programa do DEM que foi ao ar no último 15 de dezembro, pediu para que fosse substituída a fala “bandido tem que ir para a cadeia” por “bandido perigoso tem que ir para a cadeia”.
O senador Humberto Costa, do PT de Pernambuco, é o relator do processo disciplinar contra Demóstenes no Senado. Nas 79 páginas que escreveu a favor da cassação, fez a costura entre a atuação parlamentar do colega e os interesses de Cachoeira. Em 2008, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou um projeto para criminalizar a exploração de jogos de azar. Demóstenes, parlamentar “assíduo e sempre atuante nos debates que envolvem matéria penal”, não participou da votação, observou Costa. O projeto foi para o plenário, mas precisou voltar para ajustes na CCJ. Nos dois anos em que Demóstenes foi presidente da Comissão, a proposição ficou parada, sem nem sequer ter relator designado, continuou o petista.
Costa recuperou o discurso de Demóstenes do dia 18 de junho de 2003, no qual ele defende “a legalização de todas as modalidades de jogos de azar” para financiar o programa Escola em Tempo Integral. “Eu, particularmente, sou avesso a tal conduta, não me agrada o ambiente dos cassinos, mas tenho de reconhecer que uma tremenda hipocrisia domina o tratamento que se dá à matéria no Brasil. Neste país, a jogatina atua em escala industrial, com controle débil, alimenta a corrupção policial, a corrupção judiciária e a corrupção política, causando perdas incomensuráveis de receita tributária.”
Com base nas escutas telefônicas, o relator conclui que, entre março e agosto de 2011, Demóstenes e Cachoeira se encontraram “pelo menos 40 vezes”. Diz ainda que o senador “lidou com interesses de Cachoeira” em contatos com os seguintes órgãos públicos: Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Departamento Nacional de Produção Mineral, Instituto Brasília Ambiental, Ibama, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, Infraero, Receita Federal, Ministério da Educação, Governo de Goiás, prefeituras em Goiás. Humberto Costa conclui que “a vida política do senador Demóstenes, desde 1999, gravita em torno dos interesses de Carlinhos Cachoeira no ramo de jogos de azar” e chama o parlamentar de “despachante de luxo” do contraventor.
Na denúncia que enviou ao STF, por sua vez, o procurador-geral da República Roberto Gurgel diz que o senador “valia-se do seu cargo para viabilizar interesses econômicos comuns com Carlos Cachoeira. “Fica evidente que os vínculos que unem Demóstenes Torres a Carlos Cachoeira extrapolam em muito os limites éticos exigíveis na atuação parlamentar, adentrando a seara penal.” Um relatório interno da Polícia Federal de 2006 apontava o senador como receptor de 30% de todo o valor recebido por Carlinhos Cachoeira na exploração do jogo ilegal. O documento só veio a público este ano, divulgado pela revista Carta Capital. O delegado que assinava o relatório, Deuselino Valadares dos Santos, acabou cooptado por Cachoeira e foi preso pela Operação Monte Carlo.
Demóstenes é um bom orador. A defesa que fez no Conselho de Ética no mês passado lhe garantiu, nos bastidores, alguns votos de misericórdia. Ainda que não tenha explicado o que deveria, voltou a ser atendido com carinho por alguns colegas. De terno azul-marinho e gravata roxa, mais magro, ele reafirmou a amizade com Cachoeira (“Ele tinha vida social, era recebido em todos os lugares”). Confirmou que usava um Nextel pago por Cachoeira e que os fogos de artifício que animaram a celebração da formatura de sua mulher, Flávia, também foram bancados pelo contraventor. Disse que avisou Cachoeira sobre uma operação da Polícia Federal, mas que estava “jogando verde”, para se certificar se ele ainda estava ou não envolvido com o bicho. Por fim, Demóstenes apelou a Deus: “Redescobri Deus, parece um fato pequeno, mas acho que minha atuação era pautada mais pelos homens do que por Deus.”
O senador não soube explicar por que foi verificar na Câmara dos Deputados o andamento de um projeto de interesse de Cachoeira. “Eu vou mandar o texto procê. O que tá aprovado lá é o seguinte: ‘Transforma em crime qualquer jogo que não tenha autorização.’ Qualquer jogo que não tenha autorização! Então, inclusive, te pega, né! Então vou mandar o texto pra você. Se você quiser votar, tudo bem, eu vou atrás…”, disse Demóstenes em 2009, num telefonema gravado pela PF. Ao defender-se no Conselho de Ética, ele recorreu a Ismael Silva: “Nem tudo o que se diz se faz”, disse, citando um verso do samba Nem é Bom Falar.
Foram 416 conversas telefônicas entre Demóstenes e Cachoeira interceptadas pela Polícia Federal desde 2008, sendo 298 delas de 28 de fevereiro a 24 de agosto de 2011 – o que representa 1,67 vez ao dia nesse período. As degravações da polícia excluem banalidades, mas há passagens em que o registro do elo de amizade entre os dois fica nítido. Cachoeira chama Demóstenes de “doutor”; o senador o chama de “professor”. Demóstenes a certa altura pergunta sobre a saúde de Cachoeira, ele responde que está no dentista. A mulher do senador, Flávia, liga para contar a Cachoeira que recebeu a carteira da OAB, fala da pretensão do marido de ser ministro do STF, e eles combinam de tomar champanhe. Ou ainda: Demóstenes pede para Cachoeira viabilizar uma forma de trazer da Argentina uma mesa de jantar de 18 mil dólares que Flávia queria comprar.
No dia seguinte ao casamento do senador, Cachoeira telefona: “Um abraço, viu. E boa viagem. Parabéns aí pelo casamento. Dá os parabéns pra Flávia.” Ele e Andressa presentearam os amigos com eletrodomésticos no valor de 27 mil dólares. Na tribuna, Demóstenes se justificou: “A boa educação recomenda não perguntar o preço de um presente, muito menos recusá-lo.” No inquérito da Monte Carlo, está anotado o teor de uma conversa que derruba o argumento da boa educação. Ali se lê que, no dia 17 de junho do ano passado, um mês antes do casamento, “Carlinhos pede para Demóstenes falar para Flávia mandar o e-mail da geladeira e do fogão”. Deduz-se que foi Flávia quem escolheu o presente. A mulher de Demóstenes se recusou a receber piauí.
Em 3 de maio de 2011, o senador liga para parabenizar Cachoeira pelo aniversário. Três dias depois conversam sobre um jantar com Marconi Perillo na noite anterior: “Cachaçada boa ontem, né?” Em junho, Cachoeira conta que está tomando um vinho:
– Doutor, eu tô tomando aqui um Chateau La Villette Doe Ferrer, é bom?
– Maravilhoso, que ano é?, pergunta Demóstenes.
Ao que Cachoeira responde:
– Aquele que nós tomamos lá no Edivaldo, 2003.
– Maravilhoso, aquele vinho. Aquele vinho é espetacular, atesta Demóstenes.
Em 11 de julho do ano passado, o teor da conversa é bem diferente. “Rapaz, você sabe que eu tô com a sensação ruim de que tem alguém me seguindo. Eu não sei se tô ficando doido… toda hora aquele trem… Tô meio… ficando meio maluco, estressado”, diz Demóstenes ao amigo.
Quatro meses depois da prisão de Cachoeira, o Conselho de Ética decidiu por unanimidade pela cassação do mandato do senador. O relatório ainda precisa ser aprovado pelo plenário da Casa para que ele perca o mandato e fique inelegível até 2027.
É provável que a votação ocorra ainda em julho, antes do recesso parlamentar, que começa no dia 17. O voto é secreto. Ainda assim, o samba que ronda Demóstenes parece ser aquele outro, também de Ismael Silva: “Eu ainda fico triste a lembrar/ Apesar de ter deixado já de ti/ Lamentando aquele dia de azar/ Em que te conheci.”