ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Mendigo bico fino
O morador de rua que come no restaurante de Claude Troisgros
| Edição 71, Agosto 2012
Na última vez que deu entrada no Hospital Municipal Miguel Couto, Otávio Júnior tinha um abscesso cheio de pus na perna esquerda. Não havia cuidado de uma ferida aberta na rua e, agora, ela apodrecia diante de seus olhos. Mas a bronca do médico veio por outro motivo. “Cento e trinta e seis quilos, 235 de triglicerídeos, Otávio! Diabete nas nuvens!”, esbravejou o clínico geral enquanto analisava o resultado dos exames. “Não pode. Vou te botar numa dieta e é já!”
Dentro de uma bermuda tamanho 66 e de uma camiseta branca com pano o bastante para fazer um lençol de solteiro, o jovem de 32 anos nascido em Nova Iguaçu fez cara feia. “Mas, doutor, como é que eu vou largar o Claude? Me diz”, questionou, apontando para a própria barriga, que vazava por debaixo da camiseta. O médico não se conteve e riu.
Otávio referia-se ao francês Claude Troisgros, chef que há mais de trinta anos faz experimentos culinários misturando ingredientes nacionais e trazidos de sua terra natal. Entre suas criações, estão as terrines de palmito pupunha com foie gras ou os lagostins acompanhados de batata-doce crocante. Iguarias como essas garantem casa cheia quase todas as noites no Olympe, inaugurado em 2003 e recém-eleito o melhor restaurante do Rio pelo Guia Quatro Rodas.
O Olympe fica no Jardim Botânico – o mesmo bairro em cujas ruas Otávio escolheu morar aos oito anos. Num fim de tarde recente, o Mendigo Bola, como é conhecido na vizinhança, calçava Havaianas e carregava a bolsa em que leva tudo o que precisa para viver: duas camisetas, duas bermudas, dois celulares de operadoras diferentes, um carregador universal, um sabonete e os documentos. “Bora pro Olympe?”, convidou, pronunciando a vogal anasalada comme il faut. “Se o Claude estiver lá, pode até rolar um macarrãozinho com camarão, meu prato favorito.”
Um jantar no Olympe pode passar dos 500 reais para um casal. Adotado pela equipe do restaurante, Otávio come ali quase todo dia, de graça. “O Bola faz parte da família Olympe há anos”, reconheceu Troisgros, rindo. “Ele sempre fila a boia dos funcionários, que costuma sair por volta das seis da tarde. Deve ter mais ou menos a mesma idade do Thomas, meu filho, e já usou muita roupa dele”, completou o chef.
Cambaleante por conta da ferida que ainda cicatriza na perna, Bola fez duas paradas para respirar enquanto andava rumo ao Olympe. No caminho, foi surpreendido por um Peugeot 206 que buzinou ao seu lado. “Bola, taí teu remédio. É um por dia, o.k.? Depois do café. Não vai dar mole, moleque”, aconselhou o mauricinho que estava ao volante. Enquanto espremia o jovem de Ray-Ban e Rolex num abraço pegajoso, Bola meteu na bolsa as seis caixinhas de Pioglit, remédio para controlar o diabete. “Pô, cara, ainda bem que tu me ajuda”, agradeceu. “Cada caixinha dessa sai por uns 40 reais na farmácia.”
Há cerca de dois anos, o jovem do Peugeot voltava de uma noitada sem dinheiro para pagar o táxi. Parou no posto de gasolina em que Bola dormia para fazer um saque no caixa automático, mas não conseguiu. Vendo o tumulto, Bola foi lá e pagou os 15 reais da corrida. Ganhou em troca um amigo e a simpatia de sua família.
Falando da vida com lucidez impressionante, o morador de rua disse arrecadar 150 reais por semana com a mendicância e doações dos amigos grã-finos que fez no bairro. O butim fica guardado para as visitas que faz à mãe, em Nova Iguaçu, para visitas eventuais ao barbeiro e para a compra de roupas de tamanho especial (“Se eu fosse mais magro, nem pra isso precisava de dinheiro!”).
Ao retomar a caminhada, lembrou-se de um detalhe logístico importante: “Precisamos descolar uma caixa de sorvete.” Puxando um dos celulares da bolsa, discou para um morador do prédio em frente. Reagiu com serenidade à falta de resposta. “A ansiedade não traz comida”, filosofou. “Daqui a alguns minutos a solução vai aparecer.”
E não deu outra. Logo passou na calçada uma adolescente de iPhone na mão, a quem Bola cumprimentou e pediu: “Sua mãe ou irmã estão em casa? Pode pedir para elas descerem uma caixinha de sorvete para mim?” Em menos de dez minutos, o porteiro espremia a embalagem vazia por entre as grades. Bola estampou na cara o sorriso dos poderosos.
“Vitor! Márcio!”, gritou ele ao chegar enfim à janela da cozinha do Olympe, que dá para a calçada. “O que tem de bom por aí hoje?” Do lado de dentro do restaurante, os cozinheiros acenaram com a cabeça enquanto faziam fila para garantir seu próprio jantar. Bola decidiu aguardar no banco de madeira que, horas mais tarde, seria ocupado pelos clientes que costumam fazer fila por uma mesa.
Apesar da receptividade que encontra no Olympe, Bola gosta de variar e conhece a fundo as opções gastronômicas do Jardim Botânico. Seu roteiro predileto inclui o restaurante Frontera, do qual recomenda a cozinha japonesa (“É a melhor da região”). Também são dignos de nota o pastel de forno de palmito da padaria Le Pain du Lapin, na mesma rua, e o pão de queijo recheado com ricota da Pin Pin Sucos, logo em frente.
“Só não comi mesmo no Mr. Lam, do Eike [Batista]”, admitiu Bola, enquanto voltava à janela do Olympe para entender por que tanta demora (já fazia quinze minutos que ele aguardava). “Me disseram que eles fazem lá um pato com não sei o quê que segue umas tradições meio estranhas”, disse, fazendo cara feia. “Coisas da China. Eu passo”, desdenhou.
Foi interrompido por um jovem chef uniformizado que chegou trazendo o pote de sorvete repleto de comida. Bola estendeu-lhe a mão e, sem abrir para conferir o conteúdo, partiu o mais rápido que pôde rumo ao posto de gasolina. Precisava de talheres de plástico – ele prefere não andar com garfo e faca na bolsa para não ser acusado de portar armas brancas.
Abriu o pote afoito e apaziguou-se diante da visão do arroz branco e de uma carne acebolada que, de tão macia, dispensava faca. “Sente só o cheirinho”, observou, a gula gravada no rosto. “Não vou conseguir largar o Claude nunca!”