ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Pela honra da rainha
Uma estrangeira brilha no críquete em Brasília
Clara Becker | Edição 71, Agosto 2012
“Alguma chance de conseguirmos um passaporte britânico para ela?”, perguntou um inglês a um colega diplomata. “Onde será que ela aprendeu a jogar? No Brasil é que não foi”, indagavam-se, perplexos. “Ela é incrivelmente boa, tem que ter tido algum contato com estrangeiros”, concluíram.
Os dois britânicos tinham reforçado a camada de protetor solar para assistir a uma partida de críquete num sábado de sol escaldante em Brasília. Integravam a escassa plateia do tradicional jogo anual que opõe os times dos embaixadores do Reino Unido e da Austrália. Era a décima edição da contenda – a Austrália levara a melhor em seis ocasiões e buscava o tri. No ano do sexagésimo aniversário de reinado de Elizabeth II, seus súditos estavam determinados a impedir a terceira derrota consecutiva.
A atleta que chamou a atenção da dupla era uma brasiliense de 27 anos que defendia as cores da Austrália. Com tipo mignon, pele morena e cabelos de trancinhas afro, Juliana Brito destoava dos atletas altos e louros que predominavam em campo. Era a única mulher, mas não a única estrangeira do jogo. Por falta de quórum, as duas equipes recorreram a funcionários das embaixadas da Nova Zelândia, Sri Lanka, Índia, Malásia e África do Sul para completar onze jogadores de cada lado.
Praticado principalmente no Reino Unido e em ex-colônias britânicas, o críquete está entre os esportes mais populares do mundo. Na Copa do Mundo de 2011, estima-se que 1 bilhão de pessoas tenham visto a semifinal entre Índia e Paquistão. No Brasil, porém, nunca caiu no gosto do povo. Poucos sabem distingui-lo do croqué, do tacobol ou de outros jogos de rua que, em comum com o críquete, só têm o taco e a bolinha.
Ao contrário do que os ingleses supunham, Juliana nunca pisou em terras da rainha. Entrou em contato com o críquete na Universidade de Brasília, numa disciplina optativa oferecida pelo australiano Rudy Hartmann, que pretendia difundir o esporte no Brasil. Em maio de 2007, ele recrutou Juliana, sua aluna mais promissora, para formar a primeira Seleção Brasileira feminina do esporte. O escrete foi armado com amigas dos dois, muitas das quais jamais haviam ouvido falar no jogo. “O críquete feminino é o único esporte que você começa a treinar e imediatamente entra para a Seleção Brasileira”, costuma brincar Juliana.
No primeiro jogo da Seleção feminina, um amistoso contra a Argentina em Curitiba, nenhuma atleta sabia o que o juiz estava marcando. A equipe foi aprendendo as regras durante a partida e se beneficiou da paciência das adversárias. “Elas foram muito compreensivas”, reconheceu Juliana. A equipe nacional treina às terças e quintas no campo de beisebol do Clube Nippo, improvisado para a prática do críquete. Aos sábados, elas aproveitam o gramado da Esplanada dos Ministérios. Como o uniforme é todo branco, não é raro que sejam confundidas com dentistas em protesto.
“Alguém aqui não pode se sujar hoje?”, perguntou Juliana num treino recente. Nesse dia, ela fazia as vezes de técnica, porque tomara vacina antirrábica e não podia jogar. A notícia foi recebida com alívio pelo resto do time. “Elas têm medo do meu lançamento”, explicou. “É muito forte.” O medo é justificado: já houve casos de costelas e maçã do rosto quebradas durante treinos.
Para não deixar a equipe na mão, a capitã do time – Erika Reinehr, dona de uma clínica de nutrição esportiva – treinou até os sete meses de gravidez, quandoa proteção que usava deixou de cobrir toda a circunferência da barriga. “Minha médica falou que eu podia continuar a vida normal”, contou. “Mas não me perguntou o que eu fazia.” Uma das primeiras palavras que sua filha falou foi “quíquete”.
Em 2009, a equipe brasileira foi à Copa América, em Miami, com o ambicioso objetivo de não ficar em último. Fracassou. “Na equipe Sub-15 de Trinidad e Tobago tinha uma jogadora canhota e não sabíamos como armar a defesa”, justificou-se Juliana. “A partir desse dia resolvemos forjar umas canhotas só para atrapalhar as adversárias”, contou.
Apesar da lanterna, Juliana considerou o resultado um sucesso. “Fomos mais para mostrar para o ICC que nossa equipe feminina existia”, disse ela, referindo-se ao Conselho Internacional de Críquete. Nesse particular, a Seleção feminina logrou êxito. Seus uniformes mais justos chamaram a atenção. Depois da competição, só havia fotos das brasileiras no site do ICC. “Pena que não deu para trocar de uniforme com as outras jogadoras”, lastimou Juliana. “Elas achavam apertado demais.”
Três horas após o início do jogo dos embaixadores em Brasília, a repórter de piauí continuava sem entender nada. Pediu então a um dos torcedores que lhe explicasse as regras. “O críquete não tem regras, tem leis”, corrigiu o inglês, com a devida pompa. Elas são impenetráveis, e isso é motivo de orgulho para os britânicos. Há normas até para a torcida, a quem é vedado aplaudir o erro do adversário, por exemplo. Juliana Brito disse que levou um ano para entender as regras e anda sempre com o livrinho The Laws of Cricket na bolsa, para estudá-lo nas horas vagas.
As partidas de críquete existem em diferentes formatos com duração de algumas horas até cinco dias. As equipes se revezam na defesa e no ataque por um determinado número de overs (séries de seis arremessos), a depender da duração da partida. O time que lança a bolinha tenta derrubar os wickets – conjuntos de três varinhas fincadas no solo – do adversário. A outra equipe pode, assim como no beisebol, ganhar território fazendo corridas (runs) sempre que rebater a bolinha. O time que marcar mais runs vence.
A partida realizada em Brasília teve 35 overs e se estendeu por um dia. O Reino Unido ganhou por 198 a 175 e honrou o Jubileu de Diamante de sua monarca. “O críquete é como a vida”, comparou um torcedor inglês, ao expressar sua felicidade de forma contida. “Há períodos intensos de tédio, regras que você não entende muito bem e poucos, muito poucos momentos de pura alegria.”