ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Falta dinheiro para lavar
Thérèse espera investimento na reciclagem de cédulas
Clara Becker | Edição 72, Setembro 2012
Numa manhã de julho, Thérèse saiu do Laboratório Experimental de Materiais Expressivos, passou pelas salas de processamento, cutelaria, marcenaria, olhou para os lados e destrancou a última portinhola do corredor da Oficina de Maquetes e Protótipos da Universidade de Brasília. Lá dentro – uma espécie de almoxarifado escuro com entulhos empoeirados –, abriu outras duas portas ao fundo, também trancadas à chave. As portas davam para quartinhos minúsculos, usados para guardar sacos e mais sacos transbordando de dinheiro. Havia milhões de reais em cédulas. Todas trituradas. “Viu, dinheiro picado eu tenho. O que me falta é dinheiro inteiro”, disse Thérèse.
Thérèse Hofmann Gatti é professora do Instituto de Artes da UnB, doutora em desenvolvimento sustentável e uma das donas da patente de lavagem de dinheiro. Em 1994, ainda no embalo pró-meio ambiente da Eco-92, Thérèse foi convidada pelo Banco Central a dar palestras sobre a importância da coleta seletiva de lixo. Nas visitas à instituição, ocorreu-lhe que, nos dez anos anteriores, o Brasil havia mudado de moeda cinco vezes. A cada troca de cruzeiro para cruzado, para cruzado novo, de volta para cruzeiro, para cruzeiro real e finalmente para real, as cédulas do dinheiro velho viravam lixo e eram queimadas, soltando uma fumaça tóxica.
Ainda que tais mudanças drásticas deixassem de ser rotina – como ocorreu –, a cada ano bilhões de notas continuariam a ser consideradas inservíveis e descartadas. A pedido do Banco Central, Thérèse começou a investigar como fazer com que essa fortuna, reduzida a menos que caraminguás, voltasse a ser papel e pudesse ser reutilizada.
Apesar de ganhar um salário minguado de professora universitária, para Thérèse o maior problema do dinheiro é que ele não molha (o papel só pode ser reciclado se impregnado de água). “Todo mundo já colocou uma calça jeans com dinheiro no bolso na máquina de lavar e viu que a nota sobreviveu”, explicou ela. “As cédulas são revestidas com uma resina à base de formol-melamina para ganhar resistência à umidade.”
Durante dois anos, Thérèse e dois químicos do Senai, com quem fez uma parceria por falta de estrutura na universidade, testaram substâncias que agissem como sabão para limpar a resina das cédulas. Em 1996, chegaram ao produto que lava dinheiro. O Instituto Nacional de Propriedade Industrial levou outros doze anos para conceder a patente. Em 2008, Thérèse finalmente conseguiu registrar sua invenção do processo de reciclagem de dinheiro.
No Laboratório de Materiais Expressivos, onde Thérèse dá aulas, veem-se os frutos de sua pesquisa: pastas, agendas, blocos, álbuns de fotografia, cúpulas de abajur, envelopes e até mesmo obras de arte, tudo feito com dinheiro reaproveitado. Por vezes, apreciadores mais atentos podem descobrir nesses objetos vestígios daquela fitinha plástica inserida em todas as notas, na posição vertical (e que pode ser bem observada quando se coloca uma cédula intacta contra a luz).
Thérèse recebe remessas de notas trituradas do Banco Central, sob demanda. Sempre que precisa liga e pede o dinheiro por quilo e cor. Quando lhe falta azul, pede notas de 2 e 100. Amarelo, 50 e 20. A encomenda chega em tijolos de 1 quilo de uma determinada nota.
A professora da UnB é uma das raras pessoas que já tiveram acesso à sala de segurança máxima no 6º subsolo do BC, onde fica o “sistema automático de fragmentação de cédulas inservíveis”. O sistema se resume a uma máquina, alimentada com 550 quilos de notas por vez. O equipamento é então fechado (possui lacres e alarmes que são acionados em caso de tentativa de abertura não autorizada) e opera automaticamente triturando as notas em dois estágios: no primeiro, “quebra” as cédulas em pedaços pequenos e, no segundo,as transforma em fiapos de cerca de 8 milímetros de comprimento. Reduzido a uma espécie de confete, o dinheiro é compactado em tijolos de 1 quilo.
Dali os tijolos saem para o “aterro sanitário” da Cidade Estrutural, localizada a 10 quilômetros de Brasília. Como a sede do BC na capital federal é responsável por recolher notas desgastadas de todo o Centro-Oeste e de Manaus, 25 toneladas de grana triturada são despejadas todo mês no lixão da Estrutural. “Infelizmente eu não tenho espaço físico nem estrutura para receber todo esse dinheiro”, lamenta Thérèse.
João Sidney Figueiredo Filho, um homem sério, alto, calvo e de terno bem alinhado, é o diretor do Departamento do Meio Circulante do Banco Central. Na sede da instituição em Brasília, ele disse que há hoje 4,8 bilhões de notas de reais em circulação no Brasil. “Substituímos em média 40% do dinheiro em circulação por ano”, contou. Em seguida, pôs-se a fazer contas com a calculadora que trouxe a tiracolo: “Isso quer dizer que a cada dois anos e meio todas as notas são trocadas; destruiremos em torno de 2 bilhões de notas neste ano.” Mil notas pesam aproximadamente 1 quilo. Figueiredo fez novo cálculo e sentenciou: “São 2 mil toneladas de dinheiro jogadas no lixo por ano.” O suficiente para encher 65 piscinas olímpicas.
Cada cédula é impressa ao custo médio de 21 centavos. As notas de baixo valor, como as de 2 e 5 reais, duram em média um ano. As de 50 e 100 duram três. As notas de plástico duravam 2,4 vezes mais do que as de papel, mas não caíram no gosto do povo, que gosta da textura do papel. Ano passado, o Banco Central gastou 472 milhões de reais para imprimir novas notas. “O custo da reciclagem tem que ser incluído no valor da cédula. Mas o Banco Central não tem dinheiro. Ainda falta financiamento para o projeto”, disse Thérèse.
As cédulas manchadas, sujas, desgastadas ou rasgadas são substituídas por razões de segurança. As marcas em alto-relevo e microimpressões devem estar preservadas, para dificultar a vida de falsários. Até a década de 90, as cédulas velhas eram recolhidas pelas sedes do Banco Central e enviadas para a sede do Rio de Janeiro (o dinheiro era previamente perfurado para não haver roubo), onde tudo era incinerado. Hoje, cada uma das dez unidades tem que dar conta das notas da sua região.
Com a Política Nacional de Resíduos Sólidos entrando plenamente em vigor em 2014, o Banco Central não poderá mais jogar as notas fora. Estuda-se o que fazer com toneladas de papel-moeda picado. Além da reciclagem de Thérèse, a Universidade Federal Rural da Amazônia e o governo do Pará estudam transformar dinheiro em adubo. No Paraná, o dinheiro é usado para recuperar solos degradados. Ele vira uma pasta que é besuntada nas encostas. Artistas fazem móveis com dinheiro compactado e colagens com seus pedacinhos.
“O meu papel eu já fiz”, disse Thérèse, que ainda sonha com o dia em que todas as cédulas inservíveis serão recicladas. “Mas falta dinheiro.”