ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2012
Cristina de negro
O estilo da presidente argentina depois da viuvez
Marcia Carmo | Edição 74, Novembro 2012
A plateia já sabe. Quando Cristina Kirchner ergue a mão direita, é hora de fazer silêncio. Hora de parar de aplaudir, de levantar bandeiras e cartazes. “Um momento”, diz ela. E o público escuta, compenetrado. Foi assim no dia 13 de setembro, quando Cristina inaugurou a fábrica da Lacoste, em San Juan, nos Andes. Seus seguidores fizeram silêncio até que ela se emocionou ao lembrar que o antecessor e marido, Néstor Kirchner, esteve na província quando era presidente. Aí reagiram em coro: “Força Cristina, força.”
Viúva, mãe de dois filhos, ela continua de luto. Veste negro desde a morte súbita de Kirchner, em 27 de outubro de 2010. Deu adeus aos estampados, ao vermelho e ao rosa. Do guarda-roupa público, sobreviveram os cinturões, os sapatos pretos altos, o colar de pérolas e o relógio de ouro.
A viuvez não afetou seus cuidados com a beleza. “Sou coqueta, sempre fui”, disse certa vez. Cristina capricha no lápis preto nos olhos, no blush e no batom, ultimamente em tom mais suave. As sobrancelhas seguem a moda, marcadas e pintadas com o castanho acaju dos cabelos – agora centímetros mais curtos e ondulados nas pontas. “Lisos com movimentos”, como definem os salões de beleza de Buenos Aires. A chapinha ficou para trás, em sua época de senadora (cargo que ocupava quando foi eleita presidente, em 2007). Curvilínea, a presidente de 59 anos mantém a forma comendo saladas e bebendo só água mineral sem gás (tem sempre uma garrafinha por perto). Faz uma hora diária de esteira.
O figurino da viúva Cristina está longe do tubinho preto básico. Ela prefere as blusas de renda e os vestidos de saia rodada, acompanhados de meias negras grossas. As unhas pintadas na cor Via Láctea são impecáveis. Cabelos e maquiagem deixam quase sempre a impressão de que foram retocados minutos antes de ela entrar no ar em mais uma rede nacional. Cristina convocou dezessete redes de rádio e tevê neste ano. No período, Dilma fez quatro pronunciamentos em cadeia nacional.
Em seus discursos, Cristina ri, chora, distribui broncas e alguns elogios. Cita nome e sobrenome de quem criticou o governo na imprensa. Faz declarações politicamente incorretas – disse que o cabelo de Hugo Chávez é “mota” (duro) e que o “Estado não é mongo” (portador de síndrome de Down). E quase sempre se refere a el (ele), Néstor Kirchner. Sem dizer seu nome. “O senhor tem 62 anos, idade que ele teria hoje”, disse a um eleitor em 15 de outubro, ao inaugurar a pavimentação da estrada Néstor Kirchner. Quarenta e oito horas depois, ela discursou no Dia do Peronismo. “Lembro que ele entrou aqui ferido na posse, em maio de 2003. Foi quase uma metáfora porque ele foi machucado por uma câmera (de televisão)”, disse. E continuou: “Ele construiu uma Argentina na qual voltamos a ter autoestima. Entrou ferido, mas partiu triunfante.”
Cristina faz dois ou três discursos semanais, em rede ou não. “Sem ler nada. Tudo de memória”, admiram-se os apoiadores. Ela anuncia o resultado da balança comercial e os números de entrada e saída de dólares. Fala de política externa. “Minha amiga Dilma e eu pensamos da mesma forma, que os países ricos querem resolver seus problemas despejando dinheiro nos nossos”, disse.
Com o Irã e com os Estados Unidos, a retórica é de zigue-zague. A Justiça argentina acusou dirigentes iranianos de responsabilidade pelo atentado contra uma associação judaica que deixou 85 mortos em Buenos Aires, em 1994. Cristina respaldou essa versão. Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, em setembro, anunciou diálogo sobre o caso com os iranianos. Ela acusou os Estados Unidos de “efeito jazz” por tentarem transferir a crise de 2008 para os demais países (o raciocínio é o mesmo do “tsunami monetário” do ministro Guido Mantega). No mês passado, duvidou das estatísticas da economia americana. Dias depois, para criticar o grupo de mídia Clarín, disse: “Admiro a democracia americana. Lá não permitem que um grupo que tenha jornal possua televisão.”
A presidente também se lançou à reforma da Casa Rosada, sede do governo. Em outubro, o palácio estava com cheiro de tinta (cor marfim em quase todos os salões). Operários de uniforme azul e capacete amarelo andavam de um lado para o outro no prédio inaugurado em 1886. A escadaria interna de mármore agora tem uma luz dicroica a cada dois degraus. À noite, o palácio se destaca com iluminação rosa que reforça a cor original. Pink house, dizem artistas.
A presidente criou o Salão das Mulheres e o Salão dos Heróis Latino-Americanos. Ao lado dos quadros de Ernesto Che Guevara e de Perón, está o de Tiradentes. A imagem de Evita Perón é o pano de fundo dos discursos presidenciais. A sala de imprensa está com o assoalho de parquet brilhando e cadeiras novas de couro cinza. Mas Cristina não dá entrevistas coletivas desde 2008. Quando fala com jornalistas é sobre temas específicos, sem direito a perguntas. A Presidência até informa que será (ou foi) uma entrevista, mas se trata de pronunciamentos. Além dos discursos, a presidente se comunica pelo Twitter. “Acabo de falar com o presidente da Venezuela. Quanta emoção”, tuitou no dia da reeleição de Chávez.
Os argentinos deram a Cristina o maior apoio após o enterro do ex-presidente. Sua imagem positiva passou de 60%, segundo levantamentos das consultorias Management & Fit (MyF) e Giacobbe e Associados. Hoje não é mais assim. “Pela primeira vez a imagem negativa dela supera a positiva”, disse Mariel Fornoni, da MyF. “São quase dez anos do projeto político que ela representa, o kirchnerismo. E os argentinos estão cansados das restrições e do monólogo”, afirmou Jorge Giacobbe. “Monólogo” é como analistas definem os discursos de Cristina.
As medidas de controle das importações e as limitações para a compra de dólar, incluindo para quem vai viajar, abalaram a solidariedade dos argentinos. Por causa da hiperinflação e da subsequente equiparação entre a moeda americana e o peso, no passado, os argentinos ainda pensam em dólar, mas agora ele só é vendido aos que podem comprovar renda. Giacobbe informou que a imagem positiva da presidente é de 33%. O percentual chega a 37% na pesquisa do instituto Poliarquía. Já a MyF apurou que 43% dos argentinos têm uma imagem negativa de Cristina (24,3% têm uma boa imagem, e 22%, uma imagem regular). “Fui reeleita com 54%, e os que não estão satisfeitos que esperem a próxima eleição”, disse a presidente neste ano, mais de uma vez.