Pesquisador do CERN que mostrou o caminho para a descoberta do bóson de Higgs, John Ellis espera que o acelerador de partículas desvende outro mistério da física. "Há uma chance realista de que se possa descobrir ali a ciência por trás da matéria escura. Seria muito empolgante." FOTO: MAXIMILIEN BRICE_CERN_2012
Cidade do átomo
Na fronteira entre França e Suíça, milhares de pesquisadores trabalham juntos em busca da nova física
Bernardo Esteves | Edição 74, Novembro 2012
Não há superfície horizontal livre no escritório de John Ellis. Sobre mesas, estantes e móveis, cada espaço da sala ampla é tomado por pilhas de papel. São artigos, teses, relatórios e toda sorte de documentos que ele acumulou em quatro décadas de trabalho no CERN, a Organização Europeia para Pesquisa Nuclear. Algumas pilhas passam de 1 metro de altura. No ano passado, o britânico se aposentou pelo laboratório europeu e assumiu uma cadeira de física teórica no vetusto King’s College, em Londres, mas segue ligado ao centro na condição de professor convidado. Aos 66 anos, com olhos azuis, barba e longos cabelos brancos, ele passaria facilmente por um bruxo se usasse um chapéu pontudo. Vestindo uma camiseta preta com estampa de medusas numa tarde de setembro, Ellis disse que desistiu de arrumar a papelada caótica em seu gabinete – “Já virou um ponto de referência no CERN”, brincou. Também chama a atenção em sua sala um esqueleto humano de cartolina em tamanho natural encostado numa estante de metal. Pendurado em seu pescoço, há um cartaz manuscrito em que se lê: “Falei mal de SUSY.”
Susy é o apelido que os físicos deram à supersimetria, um modelo teórico que ainda não foi confirmado. A teoria postula que cada partícula elementar conhecida – os blocos fundamentais de que é composta a matéria – teria uma correspondente simétrica bem mais pesada, que não existe vagando por aí, mas talvez possa ser produzida em laboratório. Os simpatizantes dessa teoria esperam que seja possível observar evidências em seu favor no LHC, o acelerador de partículas subterrâneo de 27 quilômetros que o CERN opera na fronteira entre a França e a Suíça e que passa a poucas centenas de metros do escritório de John Ellis.
Num saguão adjacente ao restaurante do CERN, estão pregadas as primeiras páginas da edição de 5 de julho de jornais em várias línguas e alfabetos. Relatam a descoberta anunciada na véspera de uma nova partícula detectada no LHC. É incomum que os jornais reservem a manchete para notícias da ciência. Mas a observação pioneira de uma partícula que vinha sendo procurada havia décadas justificava a exceção.
O feito foi descrito como a descoberta da última peça de um quebra-cabeça – o “modelo padrão”, nome da teoria que descreve o conjunto de partículas subatômicas que formam o universo que conhecemos e o modo como elas interagem entre si. As outras partículas do modelo já haviam sido observadas, mas faltava flagrar o bóson de Higgs, peça essencial para manter a teoria de pé.
John Ellis e muitos de seus colegas prefeririam que o bóson de Higgs fosse não a última figurinha da página, mas aquela que vai mostrar como será o próximo álbum. Eles estão ávidos para encontrar sinais daquilo que chamam de “nova física” – uma teoria mais abrangente, capaz de explicar mistérios deixados sem solução pelo modelo padrão. Os cientistas dão conta de descrever com precisão a matéria que compõe o mundo visível, mas acreditam que isso corresponda a apenas 4% de tudo o que há. Um quarto do universo seria composto por uma substância pouco conhecida batizada de matéria escura, que não interage com a luz, mas exerce gravidade sobre outros corpos. Sabe-se menos ainda sobre o componente mais abundante do cosmos, a energia escura, conceito proposto para explicar a expansão acelerada do universo. Para consternação dos físicos, o modelo padrão é incapaz de explicar 96% do que existe.
Construir e operar grandes aceleradores de partículas e gerenciar as equipes de cientistas envolvidos na coleta e análise dos dados há muito não é uma tarefa ao alcance de um único centro de pesquisa ou mesmo de um só país. A busca pelo bóson de Higgs no LHC foi feita por duas das maiores colaborações científicas já montadas, reunindo grupos de centenas de instituições. Em outubro, o experimento CMS contava com quase 3 500 pesquisadores de 42 países; o Atlas tinha pouco mais de 3 mil integrantes de 38 nações. Outros dois grandes experimentos do LHC, Alice e LHCb, têm cerca de 1 200 e 800 participantes, respectivamente.
Nenhuma instituição encarna melhor o caráter supranacional da física de partículas que o CERN, organização europeia que abriga o LHC e outros aceleradores e experimentos nos arredores de Genebra, ao pé das montanhas do Jura. O centro foi criado por onze países em 1954, três anos depois do estabelecimento da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, embrião da União Europeia. Com a iniciativa, queriam evitar a fuga de cérebros para os Estados Unidos no pós-guerra.
O CERN é custeado pelo governo dos seus países-membros, que hoje são vinte. Seu orçamento para 2011 foi de 1 bilhão de francos suíços, ou 2,2 bilhões de reais. As contribuições são proporcionais ao PIB de cada país – as maiores fatias vêm da Alemanha (19 % do total), França e Reino Unido (15%) e Itália (11%).
O centro é habitado por uma população flutuante de 10 mil cientistas, engenheiros e técnicos, dos quais só uma minoria pertence ao staff próprio. O resto é composto por equipes ligadas às instituições envolvidas nos experimentos, passando ali temporadas de duração variada. Sua sede tem mais de 500 prédios distribuídos por dois terrenos com área total de 200 hectares. Não há unidade arquitetônica ou ordem aparente na numeração dos edifícios. No caminho que leva da recepção até o restaurante principal, atravessam-se os prédios 33, 5, 4, 50 e 500. Para que novatos e visitantes não se percam, a rota é sinalizada com uma faixa no solo. Enquanto fazia esse caminho, o físico Ignacio Bediaga brincou: “É a coisa mais parecida que já vi com uma favela carioca urbanizada.”
Bediaga tem 58 anos e trabalha no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o CBPF, no Rio de Janeiro. No início de setembro, estava em Genebra para participar de uma reunião do LHCb, colaboração que ele integra. Ficou hospedado no CERN. Enquanto almoçava numa mesa ao ar livre, Bediaga disse achar admirável que tantos pesquisadores conseguissem trabalhar em conjunto. Comparou a reunião de pesquisadores no CERN ao ideal da Escola de Sagres, que teria reunido especialistas europeus de diversas disciplinas para viabilizar as grandes navegações portuguesas (sua existência é contestada por historiadores). “É um coletivo muito saudável, que junta várias culturas e tenta convergir para uma mesma linguagem”, avaliou Bediaga. “Parece uma Torre de Babel ao contrário.”
Não seria exagero comparar o CERN a uma Meca da física de partículas, pela qual muitos pesquisadores da área almejam passar em algum momento da carreira. Para Flávia Dias, estudante de 25 anos da Unesp, a oportunidade surgiu durante o doutorado, quando passou um ano no laboratório europeu. Numa conversa na movimentada cantina da instituição, ela disse que o maior benefício da temporada para sua formação foi trabalhar ao lado dos melhores cientistas da sua área. “O CERN aglomera experts em qualquer coisa que eu pense em usar na minha análise”, disse ela. “Como estudante em São Paulo, posso mandar um e-mail para um especialista, mas ele terá 500 outras mensagens na caixa de entrada. Aqui eu bato na porta do cara e digo: ‘Oi, você pode me ajudar?’”
Como muitos pesquisadores de passagem pelo CERN, Flávia morava no lado francês da fronteira, onde a vida é mais barata. Entre seus amigos, havia vários estudantes e pesquisadores ligados ao centro. Em murais nos corredores do CERN, há anúncios de academias, aulas de tango, clube de xadrez e outras tantas iniciativas. Sinalizam que os laços entre os pesquisadores de passagem por ali vão além da ciência.
Flávia interrompeu o que estava dizendo para cumprimentar um colega oriental que passava. Disse a ele que estava em busca de um lugar para fazer pós-doutorado. “E em que você está trabalhando? Susy?”, quis saber o rapaz. “Não, com exótica.” Flávia estuda uma possibilidade aventada por alguns físicos teóricos, segundo a qual a realidade comporta mais dimensões do que as quatro que somos capazes de perceber (as três do espaço e o tempo). Nas colisões produzidas no LHC, ela procura sinais compatíveis com a existência dessas dimensões extras. Não encontrou nada até agora, mas nem por isso parece frustrada.
As vias de circulação do CERN têm o nome de grandes figuras da história da física. Paralela à rua Einstein, corre a rua Demócrito, em homenagem ao filósofo grego pré-socrático adepto do atomismo, a doutrina para a qual tudo o que existe é composto de pequenas unidades indivisíveis – a-tomos.
Mais de dois milênios depois, no começo do século XIX, o cientista inglês John Dalton mostrou que Demócrito tinha razão: as coisas pareciam mesmo feitas de partículas elementares minúsculas. Quase um século se passou até que se descobrisse que o átomo de Dalton não era tão indivisível assim: ele era na verdade composto por elétrons girando em órbita de um núcleo formado por prótons e nêutrons. Décadas depois se constatou que mesmo as partículas do núcleo podiam ser quebradas em componentes menores, os quarks.
O que chamamos de átomo já não é mais a porção indivisível da matéria, mas os princípios atomistas continuam a nortear a física. Só que as partículas elementares tais como a física as entende hoje são muito mais estranhas do que os gregos jamais imaginaram. Temos a tendência intuitiva de pensar nas partículas como esferas, mas essa representação está longe de ser fiel à maneira como elas se comportam, sujeitas que estão às leis da mecânica quântica que vigoram na escala subatômica.
A galeria de partículas hoje consideradas elementares – os físicos não excluem que se descubra um dia que também elas são divisíveis – foi constituída a partir dos anos 60, com a elaboração do modelo padrão. Em sua versão mais enxuta, o álbum de família conta com doze tipos de partículas que formam a matéria, outras quatro que transmitem as forças que regem as interações entre elas, mais o bóson de Higgs. Nem todas ocorrem naturalmente no mundo em que vivemos. Os átomos são formados essencialmente por apenas três delas – elétrons e dois tipos de quarks. Partículas mais pesadas são muito instáveis e rapidamente se transformam em outras partículas mais leves (os físicos dizem que elas “decaem”).
O americano Robert Wilson certa vez comparou aceleradores de partículas a catedrais da Idade Contemporânea. Estão entre as maiores e mais sofisticadas máquinas já construídas, com o paradoxal propósito de sondar a matéria na sua escala mais diminuta. Nessas máquinas, feixes de partículas são acelerados a velocidades inimagináveis para objetos de escala macroscópica até bater de frente violentamente, deixando como rastro uma infinidade de partículas subatômicas. Os choques de grande energia permitem produzir partículas pesadas e instáveis. São detectadas de forma indireta, a partir do estudo dos seus subprodutos.
A Basílica de São Pedro dos aceleradores é o LHC, ou Grande Colisor de Hádrons, uma máquina circular construída ao longo de dez anos ao custo de 11 bilhões de reais, duas vezes o orçamento do governo brasileiro para a ciência e tecnologia em 2012. O LHC é capaz de produzir choques de 8 trilhões de elétrons-volts, energia quatro vezes mais intensa que a maior já obtida noutro acelerador. Para isso, os feixes de prótons precisam ser acelerados a 99,9999991% da velocidade da luz. Foi preciso desenvolver ímãs supercondutores capazes de criar os poderosíssimos campos magnéticos necessários para acelerar os prótons e guiá-los com precisão de bilionésimos de milímetros em seu trajeto. Para funcionar com o rendimento desejado, os magnetos operam a menos de dois graus do zero absoluto (ou -271°C) – para tanto, são gelados com nitrogênio líquido e hélio em estado superfluido.
No dia 13 de setembro, um monitor com tipos brancos sobre fundo preto no restaurante do CERN informava que, 100 metros abaixo da terra, estava acontecendo no LHC um tipo pouco comum de colisão. Pela primeira vez, o acelerador estava sendo usado para o choque de feixes de prótons e íons de chumbo. Colisões desse tipo permitem criar uma sopa de partículas extremamente densa e quente. Os cientistas acreditam que essas eram as condições que havia instantes após o Big Bang. Essas colisões são estudadas no detector Alice, concebido para investigar questões ligadas à origem do universo.
O acelerador tem ainda outro detector de finalidade específica – o LHCb, desenvolvido para estudar a antimatéria – e dois detectores ditos de “propósito geral”, o Atlas e o CMS. Ambos foram desenhados com sensores capazes de identificar sinais da nova física, aquela que desvendaria o funcionamento dos 96% do universo que não conhecemos. É sobre eles que estava depositada a esperança de detecção do bóson de Higgs.
O Atlas tem a forma aproximada de uma grande estrutura cilíndrica de quase 50 metros de comprimento com 25 de diâmetro – é o maior detector já construído. Situado na outra extremidade do LHC, já sob solo francês, fica o CMS, mais compacto, que mede 21 metros, mas pesa 14 mil toneladas, o dobro do seu concorrente. Tanto um quanto o outro contam com uma rede sofisticada de sensores usados para medir propriedades como a direção em que se movem as partículas geradas na colisão, sua massa ou velocidade.
Muitos componentes são empregados também na seleção dos dados para análise. Centenas de milhões de colisões de prótons são registradas por segundo dentro dos detectores, mas só um punhado delas contém eventos de interesse para os físicos. Ajudar a filtrar esses eventos e descartar a montanha de dados inúteis que tornaria a análise inviável é a tarefa à qual se dedica o engenheiro eletricista Denis Oliveira Damazio, de 37 anos, integrante da colaboração Atlas. “Temos que correr atrás dos eventos bons e jogar fora o que não interessa. É um desafio constante”, disse Damazio, que se formou na UFRJ e trabalha no CERN a serviço do Laboratório Nacional Brookhaven, nos Estados Unidos. Ele desenvolve algoritmos para monitorar um dos calorímetros do Atlas, que medem a energia das partículas geradas a cada choque.
Grupos de pesquisa brasileiros integram as quatro grandes colaborações do LHC. De São Paulo, há equipes da USP, Unesp e Unicamp; do Rio, times do CBPF, da UFRJ e da PUC; de Minas, pesquisadores das Federais de Juiz de Fora e de São João del-Rei. O Brasil contribuiu também com um pequeno componente de hardware no detector Atlas – a placa de um calorímetro que ajuda a fazer a seleção de eventos de interesse, desenvolvida na UFRJ.
Nas salas de controle dos aceleradores do CERN e dos experimentos do LHC, é de costume guardar as garrafas de champanhe abertas para comemorar ocasiões especiais como a descoberta anunciada em 4 de julho. A detecção do bóson representou o triunfo de um mecanismo teórico proposto para justificar a origem da massa das partículas elementares. O modelo padrão não conseguia explicar por que algumas delas são mais pesadas que outras. Em 1964, o escocês Peter Higgs e outros dois grupos de cientistas postularam, de forma independente, hipóteses parecidas para explicar essa lacuna. O problema deixaria de existir caso o universo fosse preenchido por um campo invisível, com o qual cada partícula interagiria de forma diferente. Partículas sem massa, como o fóton, o atravessariam sem resistência. As mais pesadas seriam aquelas com maior resistência ao campo.
Caso esse campo existisse, deveria ser possível observar em laboratório a partícula associada a ele – o bóson de Higgs. John Ellis foi dos primeiros a levar a ideia a sério. Num artigo de 1976 assinado com dois colaboradores, ele abriu a temporada de caça ao bóson ao indicar de que forma ele podia aparecer nas colisões que ocorrem nos aceleradores e prever as partículas nas quais decairia. Esse trabalho deu um norte aos físicos experimentais, mas foi preciso esperar a construção do LHC para que fossem produzidos choques com energia suficiente para detectar o bóson de Higgs.
Em julho, os caçadores de Higgs anunciaram que o tipo de poeira subatômica detectado por eles após analisar um grande número de colisões só poderia ter sido produzido por uma partícula com as características previstas para esse bóson. As colaborações Atlas e CMS relataram a descoberta de uma nova partícula de massa praticamente idêntica, recorrendo a instrumentos e estratégias distintos para analisar os subprodutos das colisões (a redundância é comum nos aceleradores, para afastar dúvidas no caso de alguma descoberta).
Se o bóson tem as mesmas propriedades que o modelo padrão previa para a partícula de Higgs ou se reserva alguma surpresa, é algo que só poderá ser determinado após a análise de um número maior de ocorrências. Mas o anúncio de julho já deixou na boca dos físicos o gosto de uma vitória. Parece que o campo invisível que preenche o universo e explica a massa das partículas é mais que um artifício teórico engenhoso. Os resultados obtidos no LHC indicam que o campo de Higgs tem de fato uma contrapartida física cujas manifestações são mensuráveis.
Sentado em meio às pilhas de papel, John Ellis pareceu assombrado com essa perspectiva. “É notável que alguém possa ter tido essa ideia num escritório 48 anos atrás e agora, tantas décadas e bilhões de dólares depois, você descobre o fenômeno físico que corresponde àquele pequeno termo na equação.”
Em conversas informais, integrantes dos grupos Atlas e CMS não têm pudor de se referir à nova partícula como “o Higgs”. Foram mais conservadores no registro acadêmico, no qual anunciaram a descoberta de uma partícula “compatível com o bóson de Higgs do modelo padrão”. O físico Luiz Mundim, professor da Uerj que está passando uma temporada no CERN, ironizou a prudência: “Tem orelha de gato, cara de gato, rabo de gato, mas ainda não podemos chamar de gato.”
Para entender a que espécie de felino pertence a nova partícula, os dois grupos vão continuar coletando dados para observar como ela se comporta, por quanto tempo existe antes de decair e em que outras partículas se transforma. Um dos objetivos é determinar o valor de uma importante propriedade quântica das partículas chamada de spin. Será uma surpresa se o valor for diferente de zero, como estipula a teoria. Os físicos querem entender também a maneira como o novo bóson interage com outras partículas e com si próprio. Outra questão a investigar é se o Higgs é, de fato, uma partícula elementar ou se é composto de outras menores, conhecidas ou não.
Os mais otimistas esperam que seja possível determinar ao menos o valor do spin do novo bóson até março, quando o LHC fechará para manutenção por quase dois anos. O acelerador terá a segurança reforçada, o que permitirá aumentar a energia dos feixes de prótons e produzir colisões com a capacidade máxima projetada, de 14 trilhões de elétrons-volts. Com o acelerador operando com energia total, os cientistas apostam que será possível encontrar sinais da nova física.
A supersimetria – a teoria difamada pelo esqueleto no gabinete de John Ellis – é uma das mais populares candidatas à nova física. Assim como o campo de Higgs, ela foi proposta como solução hipotética para outra inconsistência teórica importante do modelo padrão. Seus proponentes acreditam que ela seria resolvida se todas as partículas conhecidas tivessem uma irmã supersimétrica de massa maior, mas de uma classe diferente. É como se, para cada espécie conhecida de animal vertebrado, houvesse um invertebrado que nunca foi avistado, e vice-versa. Se a supersimetria estiver correta, subitamente o bestiário das partículas elementares dobrará de tamanho e ganhará habitantes de nomes curiosos como fotinos, gluínos, selétrons ou squarks.
Não seria a primeira ideia contraintuitiva emplacada por físicos teóricos (nem a mais estranha). Há quem critique a supersimetria alegando que ela prevê uma natureza complexa demais para ser verdade. Seus simpatizantes rebatem com outro argumento estético, evocando a elegância matemática da teoria. E acrescentam ainda que, se ela estiver correta, resolveria de quebra o enigma da matéria escura.
John Ellis é coautor de um trabalho que mostrou que, caso as partículas supersimétricas existam de fato, a mais leve delas poderia ser um componente da substância invisível que escapa ao entendimento dos cientistas. Sabe-se qual tipo de rastro uma partícula como essa deixaria no LHC, e o britânico acredita que sua detecção esteja ao alcance do acelerador. “Há uma chance realista de que o LHC possa descobrir a física por trás da matéria escura, e isso seria muito empolgante”, disse ele.
A confirmação da supersimetria colocaria os físicos nos trilhos para realizar um velho anseio: oferecer uma explicação unificada para todos os fenômenos naturais. A física do século XX foi marcada por duas teorias revolucionárias muito bem-sucedidas, mas incompatíveis entre si. De um lado, a relatividade geral de Albert Einstein, que descreve astros, galáxias e fenômenos na escala cosmológica. Do outro, a mecânica quântica, que rege o mundo subatômico (e que Einstein nunca engoliu). No domínio desta última, o modelo padrão é capaz de explicar todas as forças conhecidas, menos a gravidade. Descrever o muito grande e o muito pequeno nos mesmos termos é o objetivo da explicação unificada que os físicos chamam de Teoria de Tudo.
Até aqui, porém, não há sinais de nova física. Mal se terminou de beber o champanhe para festejar a descoberta do bóson de Higgs, já era possível ouvir manifestações de apreensão de alguns cientistas. Em entrevista à Science, o americano Steven Weinberg, ganhador do Nobel em 1979, manifestou o temor de que a nova física não esteja ao alcance dos aceleradores que somos capazes de construir. “Meu pesadelo e o de muitos colegas é que o LHC descubra o bóson de Higgs e nada mais”, disse ele. “Seria como fechar uma porta.”
Diante da ausência de sinais da nova física, alguns pesquisadores falam em “depressão pós-Higgs” – ou pHd, na sigla em inglês. “Essa descoberta era aguardada havia quarenta anos e foi histórica, mas deixou algo a desejar”, explicou o teórico Rogério Rosenfeld, pesquisador da Unesp que terminou em setembro um ano sabático passado no CERN. Como outros colegas, ele está à espera de alguma pista para atacar os problemas que o modelo padrão deixa em aberto. “Tudo o que a gente quer é um fenômeno que não seja explicado pelo modelo padrão no LHC. Isso daria uma direção para os teóricos seguirem, mas essa direção não veio com a descoberta do bóson de Higgs.”
A falta de um norte tem deixado exasperados também os partidários da supersimetria. À medida que as observações experimentais se acumulam, alguns dos modelos supersimétricos – muitas alternativas já foram propostas – vão sendo descartados. Numa conferência no ano passado, o italiano Guido Altarelli comentou que ainda era cedo para ficar desesperado com a falta de evidência de Susy, mas já havia motivo para se deprimir.
Caso os indícios da supersimetria insistam em não aparecer, John Ellis já sabe o que fazer com o esqueleto em seu gabinete: “Se ela demorar a ser encontrada eu posso trocar a placa para ‘Continuo à espera de SUSY.’”
Os sinais mais prováveis de nova física que apareceram até agora no acelerador surgiram no LHCb, um experimento criado para tentar responder a outro enigma que intriga os físicos: Onde foi parar a antimatéria do universo? Acredita-se que, no Big Bang, tenha sido criada uma quantidade equivalente de partículas e antipartículas, idênticas em vários aspectos, mas com carga elétrica oposta. Instantes depois, por um evento que ninguém sabe explicar, a antimatéria parece ter sumido e sobraram apenas as partículas que conhecemos hoje. Não fosse por isso, partículas e antipartículas teriam se aniquilado e o universo seria feito apenas de energia.
No LHCb, os físicos estudam pequenas assimetrias no modo como decaem as partículas e suas equivalentes de carga oposta. O estudo dessas discrepâncias – um fenômeno que eles chamam de “violação de CP” – pode apontar uma solução para o mistério do sumiço da antimatéria. Ignacio Bediaga, do CBPF, contou que o grupo está analisando dados coletados no ano passado. Ele qualificou de espetaculares alguns dos resultados já obtidos. “Estamos vendo muito mais violação de CP do que esperávamos”, contou. “Ainda não podemos dizer que sejam uma nova física além do modelo padrão, mas são números que estão deixando os teóricos meio perplexos.”
O coordenador do LHCb, o italiano Pierluigi Campana, lembrou que, antes que se tirem conclusões, será preciso analisar mais dados para excluir fatores que possam explicar os resultados inesperados. “Mas, de fato, este é o único resultado anômalo produzido até aqui pelo LHC”, reconheceu. “Todo o resto parece ser canônico.” Campana espera que mais resultados interessantes apareçam durante o ciclo de operação do acelerador, que ele comparou a um banquete. “Ainda estamos na entrada, e não temos a menor ideia do que o chef preparou para o prato principal.”
A primeira partícula elementar do modelo padrão a ser detectada foi o elétron, descoberto por Joseph John Thomson em 1897. O britânico estudava então um fenômeno que intrigava seus contemporâneos: os raios catódicos, nome dado à corrente elétrica que surgia num tubo de vidro com vácuo. Com uma série de experimentos conduzidos em seu laboratório na Universidade de Cambridge, ele concluiu que esses raios eram compostos por partículas subatômicas de carga elétrica negativa. Thomson assinou sozinho o artigo em que comunicou seus resultados na Philosophical Magazine.
No século seguinte, o trabalho de detecção e análise de partículas subatômicas foi se tornando gradualmente mais complexo à medida que passou a depender de aparatos experimentais sofisticados e equipes multidisciplinares. A colaboração de pesquisadores de oito laboratórios para estudar as partículas de raios cósmicos detectados com sensores a bordo de balões no começo dos anos 50 é tida como embrião da cooperação europeia nessa área. O artigo publicado pelo grupo em 1955 na revista Nuovo Cimento é citado como o primeiro a ter a página inicial tomada pelo nome dos autores – foram trinta signatários.
O tamanho das colaborações aumentou consideravelmente nas décadas seguintes. A descoberta mais importante feita no CERN antes da detecção da partícula de Higgs talvez seja a descoberta dos bósons W+, W– e Z0, outras partículas essenciais previstas pelo modelo padrão. O feito foi anunciado em 1983 por duas equipes que, juntas, tinham quase 200 cientistas.
Desde então, a escala das colaborações se multiplicou por trinta. A descoberta do bóson anunciada em julho foi formalizada em dois artigos publicados no fim de agosto na revista Physics Letters B. O trabalho do Atlas foi assinado por 2 932 autores, e o do CMS, por 2 891. Só a relação dos signatários e sua filiação institucional ocupa dezessete das 32 páginas do artigo do CMS e treze das 29 páginas no caso do Atlas.
A relação de autores é exaustiva como podem ser os créditos de um filme, embora não especifique a natureza da contribuição de cada integrante. Todos são um pouco responsáveis pela descoberta, de quem definiu o tipo de medições a serem realizadas a quem preparou e analisou os resultados, passando por aqueles que conceberam e operaram os sistemas de coleta e filtragem de dados e aqueles que programaram as incontáveis linhas de código envolvidas em cada passo do processo.
Apenas um grupo restrito participou da redação propriamente dita, mas o texto esteve disponível para avaliação de toda a equipe durante alguns dias. No caso do CMS, os comentários feitos pelos membros da colaboração durante o período de escrutínio se estenderam por 170 páginas, o que indica que houve de fato um processo de escrita coletiva.
“Incluímos na lista de autores todos aqueles que contribuíram de forma substancial para a operação ou análise do experimento, mesmo que não fossem mais membros ativos da colaboração, incluindo colegas aposentados ou falecidos”, disse o italiano Tiziano Camporesi, coordenador assistente do CMS. Num experimento dessa escala, nenhum membro da colaboração pode reivindicar a descoberta para si. “Quem quer que use a palavra ‘eu’ para se referir à física que fazemos está iludido ou cometendo abuso contra o sistema”, afirmou o italiano.
Camporesi tem 54 anos e passou o último quarto de século buscando o bóson de Higgs. Nos anos 90, ele coordenou uma equipe de 550 cientistas de 22 países que trabalhou no LEP, acelerador que antes ocupou o túnel onde hoje está o LHC – em vez de colisões de prótons, ele promovia choques entre elétrons e seus irmãos gêmeos de carga positiva, os pósitrons. Quando chegou ao fim o período previsto para a operação do LEP, havia sinais de que o bóson de Higgs poderia ser observado ali. Camporesi se mobilizou para que o prazo de funcionamento fosse prorrogado. Não queria que sua geração fosse lembrada como aquela que fracassou na busca por Higgs.
A história deu uma segunda chance à geração de Camporesi. Como muitos de seus colegas, ele se associou a um dos experimentos do LHC. Quando entrou para o CMS em 2001, o italiano preferiu voltar ao trabalho de campo, mas aceitou um novo cargo administrativo no início deste ano. Em seu escritório no prédio 40 do CERN, um edifício arejado de cinco andares e arquitetura contemporânea, Camporesi falou sobre o desafio de gerir o experimento. Negou que a função guardasse analogia com a de um maestro: “Não temos condição de notar quando um violino desafina. Confiamos nas pessoas abaixo de nós para nos avisar que algo pode estar errado”, disse. O trabalho talvez seja mais parecido com o do diretor de uma grande empresa – “com a diferença de que não podemos demitir ninguém”, brincou.
Dois dias antes do anúncio conjunto da descoberta no LHC, as equipes que procuravam o bóson de Higgs no Tevatron, acelerador norte-americano que encerrou suas operações em setembro de 2011, anunciaram os resultados finais de sua busca. Foi na trave: os dados apontavam que deveria haver uma nova partícula com massa parecida com a anunciada pelos experimentos do CERN. No entanto, os resultados não eram robustos o bastante para que se pudesse anunciar com certeza estatística a descoberta.
Por mais de dez anos, o Tevatron representou a esperança americana de ganhar a corrida pelo bóson de Higgs. Operado pelo Fermilab, ponta de lança da física de partículas nos Estados Unidos, esse acelerador, construído num anel de 6 quilômetros, foi o mais poderoso de sua geração. Em 1995, foi detectado ali o quark top, outro peso pesado do modelo padrão que ainda não havia sido observado.
O bóson de Higgs acabou sendo detectado num acelerador europeu, e teve sua descoberta anunciada no Dia da Independência dos Estados Unidos. É complicado descrever a escalada tecnológica dos aceleradores nas últimas décadas nos termos de rivalidades nacionais ou continentais. As fronteiras são permeáveis na física de partículas: os cientistas americanos trabalhando no CERN se contam às centenas, assim como havia vários grupos europeus nos experimentos do Fermilab. Ainda assim, descobertas importantes despertam orgulho de um lado e decepção do outro. Quando o CERN anunciou a detecção dos bósons W+, W– e Z0, em 1983, o jornal The New York Times reagiu com um editorial chamado “Europa 3, EUA nem sequer Z-Zero”.
Os Estados Unidos não têm planos de construir um sucessor para o Tevatron. O país chegou a gastar 2 bilhões de dólares na construção do Supercondutor Supercolisor, um acelerador circular que teria 87 quilômetros e seria quase três vezes mais potente que o LHC, mas o projeto foi cancelado em 1993.
Dos grandes aceleradores que se projetam para o futuro, o que parece mais perto de se concretizar é o Colisor Linear Internacional, ou ILC. Em contraste com as máquinas circulares como o LHC ou o Tevatron, ele aceleraria elétrons e pósitrons em linha reta ao longo de 30 quilômetros – evitando, com isso, a perda de energia na forma de radiação, que ocorre quando os feixes fazem curvas. O Japão é candidato a abrigar a máquina – sua construção foi considerada no âmbito de um pacote de revitalização de áreas destruídas pelo terremoto e tsunami de 2011. Como pode levar alguns anos até que se decida onde será instalado o acelerador – e sobretudo quem vai bancá-lo –, é improvável que ele comece a funcionar antes de meados da próxima década.
Em Genebra, o CERN planeja explorar o LHC até por volta de 2030. Mas já se pensa no tipo de máquina que virá depois. Também se fala em construir ali um acelerador linear, mas a ideia perderia força caso o ILC saia do papel. Outro projeto seria aproveitar o túnel já construído e, sem desmontar o LHC, fazer um novo acelerador de elétrons e pósitrons que funcionaria paralelamente ao atual. Seria uma opção relativamente barata, mas de possibilidades restritas. “Não teríamos como aumentar muito a energia do acelerador dentro do túnel do LHC, e o nosso programa de pesquisa ficaria limitado”, disse o japonês Tatsuya Nakada, físico do CERN que coordenou em setembro um workshop que discutiu prioridades para a física de partículas na Europa.
Nakada mencionou também um projeto mais ambicioso aventado pelo CERN: um colisor circular subterrâneo de 80 quilômetros de circunferência na região de Genebra, passando sob o lago Léman. Como aconteceu com o LHC, a empreitada dependeria de uma tecnologia que ainda não existe. “Se conseguirmos desenvolver magnetos mais fortes para esse acelerador e tivermos um anel de 80 quilômetros, seria possível conseguir colisões de prótons sete vezes mais intensas que as do LHC”, disse.
É preciso aguardar novidades do LHC antes de se escolher o caminho a seguir. “Para construir novos aceleradores, precisamos ter uma noção da escala de energia em que novas partículas serão produzidas”, explicou Nakada. “Dentro de três anos, com mais energia no LHC, teremos medidas mais precisas das propriedades do Higgs e mais informações para tomar essa decisão.”
A descoberta do bóson de Higgs é um passo formidável na compreensão do universo, mas não tem qualquer aplicação prática num horizonte próximo. A perspectiva era a mesma quando o elétron foi descoberto, em 1897: era impossível vislumbrar naquele momento que sua manipulação levaria à revolução eletrônica do século seguinte. O que motivou sua descoberta foi a curiosidade para entender o funcionamento da natureza. Quando estabeleceu a analogia entre as duas realizações num artigo para o New York Times, Steven Weinberg fez uma apologia da ciência básica: “Se os físicos tivessem se limitado aos trabalhos de importância prática evidente, teriam ficado estudando o comportamento das caldeiras a vapor.”
A busca pelo entendimento da estrutura da matéria levou ao desenvolvimento de várias tecnologias, lembradas sempre que os físicos precisam passar o chapéu para o financiamento de novos projetos. Na medicina, aceleradores de partículas de menor escala são usados no diagnóstico e tratamento do câncer. A prospecção de petróleo, o processamento de chips e a esterilização de alimentos e instrumentos médicos também estão entre suas aplicações.
O exemplo mais lembrado de inovação derivada da busca por novas partículas é a world wide web, o ambiente em que navegamos hoje na internet. A web foi desenvolvida no CERN no início dos anos 90, a fim de facilitar a comunicação entre os grupos de pesquisa que trabalhavam na organização e em instituições parceiras.
O CERN desenvolveu também uma complexa rede de computadores para armazenar e processar a profusão de dados gerada pelo LHC – da ordem de 700 megabytes por segundo, o suficiente para encher quase 2 milhões de DVDs de dupla face ao cabo de um ano. A solução para tornar esse volume de informação acessível a todos os colaboradores foi conectar em rede centenas de milhares de computadores distribuídos por 170 centros de pesquisa em 36 países – inclusive o Brasil, que abriga parte da estrutura na Unesp, na Uerj e no CBPF.
Às vésperas de completar 60 anos, num cenário de crise econômica e com o orçamento 20% menor daquele de sete anos atrás, o CERN começou a aceitar membros associados, inclusive de fora da Europa. Israel, Sérvia e Chipre foram recentemente admitidos com esse status, e estão em curso negociações para a entrada do Brasil e de outros países.
A situação dos cientistas brasileiros que participam dos experimentos do LHC mudará pouco caso o país se torne integrante formal do CERN. Por outro lado, a indústria nacional passaria a ter acesso às licitações para o desenvolvimento de equipamentos. “Temos no Brasil uma miríade de empresas de tecnologia média ou avançada que ganhariam experiência, visibilidade e acesso a mercados de exportação”, disse o físico Ronald Shellard, pesquisador do CBPF e interlocutor do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação na negociação com o CERN. A admissão formal, prosseguiu Shellard, permitiria ainda que o Brasil tivesse voz no conselho do CERN e promoveria a capacitação de engenheiros e quadros para a gestão de grandes projetos científicos.
Em outubro, uma missão de seis integrantes do CERN esteve no Brasil para visitar centros de pesquisa e inovação e avaliar a candidatura do país. A partir do relatório produzido pela missão, a direção do centro deve dar ou não o sinal verde para a admissão, que passaria a depender da aprovação do Congresso Nacional.
Como associado, o Brasil contribuiria anualmente com uma quantia menor que a paga pelos membros titulares. Embora esse valor ainda não esteja estabelecido, Ronald Shellard estimou que, num primeiro momento, a contribuição brasileira seria similar à de Portugal – em 2011, a quota do país foi de cerca de 13,8 milhões de francos suíços, ou quase 30 milhões de reais. A quantia representa 0,6% do orçamento para o Ministério da Ciência em 2012, mas os recursos para a pasta vêm sofrendo cortes sucessivos no governo Dilma Rousseff – passaram de 7,8 bilhões de reais em 2010 para 5,2 bilhões este ano.
Poucos se espantariam se o Nobel de Física fosse dado aos trabalhos teóricos que propuseram a existência do campo responsável pela massa das partículas. O belga François Englert, coautor do primeiro artigo publicado em 1964 postulando a existência do campo, é candidato à láurea (como seria também seu colaborador Robert Brout se não tivesse morrido no ano passado). O nome mais lembrado é o de Peter Higgs, que propôs um mecanismo similar em dois trabalhos publicados semanas depois do artigo de Brout e Englert. O escocês foi o primeiro a especular que o campo em questão teria uma partícula associada, que ele acabou batizando sozinho, para constrangimento velado dos outros. A lista de pais da criança se completa com dois americanos (Gerald Guralnik e Carl Richard Hagen) e um britânico (Thomas Kibble) que publicaram no mês seguinte um artigo teórico com uma explicação similar para o mesmo problema teórico.
No entanto, a láurea não pode ser dividida por mais de três pesquisadores, de acordo com as regras instituídas por testamento após a morte de Alfred Nobel, em 1895. A ciência sempre foi um empreendimento coletivo. Nenhum pesquisador, por mais solitário que seja seu trabalho, pode prescindir da contribuição de colegas contemporâneos e do passado. Nas últimas décadas, entretanto, uma mudança de escala significativa se operou na prática científica. “Pode ser que a solução de grandes dilemas teóricos venha de muitos indivíduos”, afirmou Luiz Davidovich, líder de um grupo de pesquisadores da UFRJ que estuda óptica quântica. “Como dar o Nobel nesses casos?”
Encrenca mesmo a Real Academia Sueca de Ciências terá se decidir premiar o esforço coletivo que levou à detecção experimental do novo bóson – perspectiva improvável antes que a partícula descoberta seja caracterizada em mais detalhes. A Academia se viu diante de um problema parecido quando contemplou em 1984 a detecção dos bósons W e Z. O prêmio acabou dividido entre o físico Carlo Rubbia, que concebeu o tipo de acelerador usado na descoberta, e o engenheiro Simon van der Meer, que viabilizou a ideia.
Jack Steinberger, um americano nascido na Alemanha, dividiu o Nobel de Física de 1988 com dois colegas pela descoberta de uma nova classe de neutrinos detectada em 1962 em Brookhaven. Ele admitiu que a escolha da Academia Sueca deixou muita gente de fora. “Não fomos os únicos que contribuímos para a descoberta pela qual levamos o prêmio”, disse ele em seu gabinete no CERN, numa manhã de setembro.
Steinberger testemunhou a grande mudança de costumes que a física de partículas conheceu desde os anos de sua formação. Obteve seu doutorado em 1948, com um experimento que ele concebeu e realizou praticamente sozinho para estudar as partículas produzidas quando os raios cósmicos entram na atmosfera. Steinberger é contemporâneo do brasileiro Cesar Lattes, que, usando um método parecido, descobriu com dois colegas uma partícula hoje chamada de píon.
Em 1968, Steinberger se tornou pesquisador do CERN, onde participou de várias colaborações nas décadas seguintes. Aposentou-se quando sentiu que não podia dar mais contribuições relevantes num momento em que a física de partículas dependia cada vez mais do domínio da computação. “Na minha carreira sempre pude fazer mais ou menos o que quis”, afirmou. “É verdade que isso envolvia cada vez mais gente, mas nunca pensei em mim como dependente de outros. E isso é completamente impossível hoje.”
Aos 91 anos, Steinberger continua a frequentar o CERN diariamente. Não faz mais pesquisa, mas nem por isso perdeu o interesse pela ciência. Passa suas manhãs lendo artigos de astrofísica, disciplina pela qual se interessou nos últimos anos. Começa o dia com uma visita ao arXiv, repositório eletrônico de artigos para o qual os físicos enviam seus trabalhos mesmo antes que estejam oficialmente publicados. “Hoje cedo havia 101 novos papers de astrofísica listados”, contou. “Tento ler cinco ou seis e talvez consiga ler um ou meio. É um assunto muito complicado.”
Vestindo um velho moletom cinzento, bermuda verde e meias roxas, Steinberger contou que vai ao CERN de bonde, pela linha 14, e chega às seis da manhã. “Até dois anos atrás eu vinha de bicicleta e levava só meia hora.” O físico disse não ver muito sentido em prêmios como o Nobel, mas admitiu que a láurea lhe trouxe ao menos um benefício. “Sem o Nobel eu não estaria neste gabinete”, afirmou, num tom melancólico e sem qualquer sinal de ironia. “Já teria sido expulso daqui algum tempo atrás.”