ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Classe e luta de classes
O que cantam os torcedores britânicos
Felipe Marra | Edição 76, Janeiro 2013
Basta que um time britânico consiga encadear quatro ou cinco passes corretos em sequência, por mais limitado que seja seu plantel, para que a torcida grite: “É como ver o Brasil jogando.” Pode soar estranho, afinal o Brasil já esteve melhor das pernas. A cantoria, mais do que representar um incentivo à equipe ou uma forma de fustigar o adversário, é uma espécie de autoironia. Os fãs cantam para si mesmos, na maioria das vezes incrédulos com um lampejo de técnica mostrado pelo seu time. Ir ao estádio para ver um jogo no Reino Unido é sempre uma experiência divertida, não importa a qualidade do futebol praticado em campo.
“A gente faz isso um pouco para esquecer um eventual show de horrores”, teorizou Tom Patterson, um analista de riscos do mercado financeiro de 29 anos, enquanto andava pelas ruas do bairro de Islington, em Londres. Ele estava a caminho do estádio Emirates, a casa do Arsenal. “Claro que o pessoal também apoia o próprio time com gritos e músicas, mas parte da graça é berrar uns absurdos”, disse.
O dono da casa é um time popular fundado por trabalhadores do arsenal real (que fabricava armamentos para as Forças Armadas britânicas). Fundado ao sul do rio Tâmisa em 1886, o clube foi transplantado posteriormente para o norte de Londres. Naquele sábado de outono, eles receberiam o Fulham pelo primeiro turno do campeonato inglês. O adversário começou como um time dos devotos de uma igreja no bairro homônimo, área nobre e residencial da capital, em 1879. As diferenças de origem das equipes e perfil socioeconômico das torcidas tinham tradução no tom e no conteúdo dos gritos de cada lado durante o jogo.
“Seus mordomos sabem que vocês estão aqui?”, ironizava a torcida do Arsenal no início da partida, surpresa com a quantidade de simpatizantes do adversário. A resposta vinha logo, entre risadas: “Nós pagamos o seu seguro-desemprego!”
O jornalista esportivo Alex Shaw, autor do livro Shall We Sing a Song For You? [Devemos Cantar uma Canção para Você?], escreveu que o futebol “nos dá a oportunidade de humilhar o adversário, homenagear a nova sensação da zaga proveniente do Suriname ou, no caso da torcida do Chelsea, contar para todo mundo da fixação levemente erótica que eles têm com aipos”.
Shaw descreveu a canção cubana Guantanamera como uma presença constante nas arquibancadas britânicas. Os torcedores não cantam os versos originais em espanhol, adaptados de um poema de José Martí. Em vez disso, aproveitam a melodia, de Joseíto Fernández, como base para um sem-número de gritos divertidos e ofensivos.
O atacante Carlos Tévez, quando se transferiu do Corinthians para o West Ham, em 2006, foi agraciado com uma versão própria da música. No ritmo cubano, a torcida do Stoke City saudou o argentino com os gritos de “Maradona balofo! Você é apenas um Maradona balofo”. Não se tratava, exatamente, de uma insinuação sobre a forma física de Tévez. Com o deboche, a arquibancada queria dizer que a técnica do jogador era equivalente à de Dieguito em sua fase mais rechonchuda.
Guantanamera também é usada em grande estilo pela torcida escocesa contra outras seleções. Usam a predileção nacional por frituras como munição contra o adversário. “Fritar sua pizza, nós vamos fritar sua pizza”, cantam quando jogam contra a Itália. Se os rivais são os japoneses, eles prometem “fritar sushis”. Já contra os russos, a vodca é que corre o risco de ir parar na frigideira.
As torcidas também têm o hábito de exaltar seus ídolos, como acontece no Brasil. Os adeptos do Liverpool entoam para seu capitão: “Um Steven Gerrard, só existe um Steven Gerrard.” A fórmula, amplamente usada, foi subvertida quando a torcida do Glasgow Rangers soube, alguns anos atrás, que seu goleiro Andy Goram tinha sido diagnosticado com esquizofrenia. No jogo seguinte, o arqueiro foi efusivamente festejado: “Dois Andy Goram, só existem dois Andy Goram.”
No Emirates, aos 23 minutos do primeiro tempo o Arsenal já vencia por 2 a 0, o que anunciava um passeio tranquilo. A torcida anfitriã resolveu fustigar o desânimo dos adversários, dizendo que eles não estavam mais cantando. Os torcedores do Fulham, que não são propriamente conhecidos pelo seu entusiasmo, admitiram a apatia em coro: “A gente não canta mesmo.”
Na arquibancada, o grego Klimis Voskidis, um professor de piano radicado há dez anos em Londres e torcedor do Arsenal, disse ver graça nas provocações. “Em Tessalônica, a minha cidade, as torcidas costumam se xingar e jurar os adversários de morte, mas aqui a coisa é mais tranquila e bem-humorada”, comparou.
Há uma arte de humilhar com leveza, tipicamente britânica. Quando a equipe adversária não se apresenta bem, os ingleses não gritam “timinho, timinho”, repetidamente. Em vez disso, eles cantam: “Vocês não são muito bons, vocês não são muito bons.” Os rivais não são um desastre completo; são simplesmente insignificantes.
Juízes e técnicos tampouco são poupados, mas não têm suas progenitoras insultadas aos urros. Faltas inexistentes e substituições canhestras são recebidas pelas arquibancadas com um sonoro: “Você não sabe o que está fazendo.” Se o jogo estiver particularmente ruim, os torcedores voltam ao tema de Guantanamera na expectativa do intervalo, cantando que “é hora do lanchinho”.
Para os fãs do Arsenal, o lanchinho foi indigesto: os rivais empataram antes do intervalo. Mas o pior ainda estava por vir, quando o sueco Kačaniklić virou o jogo com um pênalti aos 22 minutos do segundo tempo, deixando o Fulham perto de bater o poderoso Arsenal fora de casa pela primeira vez em 108 anos. Para alívio dos torcedores, o francês Giroud conseguiu novo empate dois minutos depois. Os anfitriões ainda tiveram a seu favor um pênalti no último minuto. Foi desperdiçado pelo espanhol Arteta, para desgosto da torcida. Quem foi ao estádio não pôde reclamar de monotonia, apesar do gostinho de que eles, dessa vez, não foram “tão bons” em campo quanto deveriam.