ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Entre quatro paredes
Peça teatral inspirada no affair Strauss-Kahn não cativa o público
Rafael Cariello | Edição 76, Janeiro 2013
Em primeiro plano, um sofá e uma poltrona. Pela janela ao fundo, avistam-se arranha-céus nova-iorquinos. Reproduções do expressionismo abstrato norte-americano e uma tevê de tela plana compõem o ambiente. Antes que o relógio marque 19h01, a camareira negra entra e fecha a porta da suíte 2806.
Vestindo apenas um roupão branco, com os pés descalços e as canelas à mostra, o homem de cabelos brancos surge de um quarto ao fundo e surpreende a serviçal em seu amplo e luxuoso apartamento de hotel. A camareira aparenta surpresa.
“Você me assustou”, ela diz.
Ele a observa em silêncio. Caminha até a porta com calma. Gira a chave. (Mais tarde ele dirá que é francês, judeu, homem público importante.)
“Você não pode fazer isso”, ela reage.
“Sou eu que dou as ordens por aqui”, responde o homem de sobrancelhas grossas e estatura mediana. O fato de estar um pouco acima do peso contribui para a impressão geral de poder e riqueza que ele transmite.
Suas intenções sexuais são óbvias. Ele a segura pela cintura. Ela resiste, mas não tenta fugir do quarto. Nos minutos seguintes, não se verá nenhuma cena picante. Tudo a partir daí se resume a um longo diálogo entre hóspede e camareira. Os interlocutores improváveis discutem assuntos improváveis: a condição feminina, suas próprias origens étnicas, a natureza do poder.
Por volta das 19h30, numa reação enfática ao que se passa no palco, um grupo se retira do balcão superior do teatro, fazendo barulho. Um casal na quinta fila da plateia se inquieta. Ela cochicha algo no ouvido do marido. Os dois também se levantam e abandonam o espetáculo. Suas risadas nervosas lá fora, logo depois de baterem a porta, ainda podem ser ouvidas dentro da sala onde se encena, numa quinta-feira fria de outono cinzento em Paris, a peça Suite 2806.
O título do espetáculo, que dias antes ganhara as páginas dos jornais franceses, do New York Times e do Financial Times, faz referência ao número do quarto em que Dominique Strauss-Kahn, à época dirigente do Fundo Monetário Internacional, se hospedou no Sofitel de Manhattan, em sua malfadada estadia nos Estados Unidos, em 2011. No dia 14 de maio, data prevista para a volta à Europa, Strauss-Kahn foi detido pela polícia local quando já se encontrava acomodado na primeira classe do voo da Air France que partiria para Paris.
Um dos políticos mais poderosos do mundo, tido como candidato certo do Partido Socialista francês para a eleição presidencial no ano seguinte – e favorito na disputa –, Strauss-Kahn fora impedido pela Justiça de deixar o território americano. Pesava contra ele a acusação de uma imigrante da Guiné, Nafissatou Diallo, funcionária do hotel onde o dirigente do FMI se hospedara.
A camareira de 32 anos afirmava ter sido atacada sexualmente. Dizia ter entrado na suíte 2806, pouco depois do meio-dia, para realizar seu trabalho. Acreditava que o apartamento estivesse vazio. Para sua surpresa, disse Diallo no depoimento à polícia, Strauss-Kahn surgiu na sala de estar, já completamente nu, e tentou abraçá-la à força. “Ela lutou e ele a arrastou até o banheiro, onde a atacou sexualmente”, narrou um porta-voz da polícia dias depois.
Ao ser retirado do avião, Strauss-Kahn reclamou que as algemas estavam apertadas. Para não ter que permanecer numa cela comum, pagou 1 milhão de dólares como fiança e passou a ser mantido em prisão domiciliar, monitorado por uma tornozeleira eletrônica. As circunstâncias o obrigaram a renunciar ao cargo de diretor-geral do Fundo e jogaram pelo ar suas chances de ser o próximo ocupante do Eliseu, o palácio presidencial francês.
Os planos políticos de DSK, como é conhecido na França, não puderam ser refeitos quando, semanas depois, a promotoria de Nova York desistiu do caso. O depoimento de Diallo era contraditório, e seu passado, suspeito. Ao pedir asilo nos Estados Unidos, uma década antes, ela havia mentido sobre uma tentativa de estupro que teria sofrido na Guiné. Exames periciais mostraram que houve, de fato, relação sexual entre Strauss-Kahn e Diallo, mas o francês afirmou que o encontro havia sido consensual. Nunca ficou claro o que houve exatamente nos poucos minutos em que estiveram juntos.
“O que poderia ter acontecido?” é o subtítulo da peça que teve curta temporada, de pouco mais de um mês, no ensebado teatro Daunou, nas cercanias do imponente edifício neobarroco do Opéra Garnier.
Na noite de 28 de novembro, ao final da segunda semana em cartaz, não mais que sessenta pessoas se acomodavam na plateia com capacidade para 400 espectadores. Outras tentativas de abordar o “affair DSK” não chegaram a tanto.
Um filme que teria Gérard Depardieu no papel principal soçobrou antes de começar a ser filmado, por falta de patrocinadores. Nos jornais parisienses, a notícia da montagem teatral encontrou reações adversas dos leitores. A tradição de preservar a vida privada de seus homens públicos é motivo de orgulho no país. “O que leva os espectadores a essa peça?”, escreveu uma leitora do Figaro. A crítica do diário considerou o texto de Suite 2806 ruim e mal encenado.
No palco, a camareira se chama Evangeline. O homem de cabelos brancos é Daniel Weissberg. A certa altura, ela o interpela: “Você se toma por Deus?” E ele: “Você me corrompe como um escravo a seu senhor. Sou um homem poderoso e é por isso que queria que você resistisse. Entenda, Evangeline, eu devo cair; essa é uma necessidade vital. Eu quero cair.”
Ao final do espetáculo, as palmas são burocráticas. Ninguém na plateia se levanta. Ainda assim os atores voltam três vezes ao proscênio. Na terceira, não mais que uma dúzia de pessoas insiste em aplaudi-los.
Na saída, pergunto a um dos espectadores o que ele achou da peça. O sujeito, alto e de cabelos claros, responde, em inglês, que “não é lá essas coisas”. Pergunta o que eu achei e o que faço ali. Digo que sou jornalista. “Eu também, do Sunday Times”, ele diz. “Mas acho melhor nós não citarmos um ao outro, não é?”