ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Filé com letras
O açougueiro que se tornou agitador cultural em Brasília
Clara Becker | Edição 77, Fevereiro 2013
Aproximava-se de uma da madrugada quando ligou a mulher de um amigo do açougueiro Luiz Amorim. O marido atendeu, foi logo se desculpando e inventou que estava com amigos em um restaurante. Amorim, sem entender a necessidade da mentira, perguntou: “Por que você não disse que está aqui com a gente?” Ao que o amigo retrucou: “E você acha que minha mulher vai acreditar se eu disser que estou num açougue a uma hora dessas?”
Outra convidada deu razão ao rapaz. O filho não quis acreditar ao vê-la sair de casa toda perequeté para ir ao açougue. Ela tentou explicar que se tratava do lançamento de um livro, um evento cultural. Palavras em vão. O menino, cético, achou mais provável que a mãe estivesse de caso com o açougueiro.
Era o ano de 1996 e Amorim promovia a primeira Noite Cultural em seu açougue na Asa Norte, no Plano Piloto de Brasília. O falecido escritor Fafão de Azevedo lançava o livro Mesa de Bar. “No início as pessoas chegavam ao açougue e estranhavam porque tinha livros”, contou Amorim. “Agora é o contrário, levam um susto ao ver o balcão de carnes. Acham que Açougue Cultural T-Bone é só o nome de um espaço, não uma casa de carnes de verdade.”
Do lado de fora do estabelecimento, há uma estante repleta de livros onde é possível encontrar as obras completas de Machado de Assis, volumes de Camilo Castelo Branco, Artur Azevedo e Lima Barreto, além de Goethe, Balzac, Flaubert e outros clássicos da literatura. “Esse é o único açougue que vegetarianos frequentam”, brincou o dono.
Do lado de dentro, opções de cortes que vão das tradicionais fraldinha e chã aos argentinos ancho e chorizo, além de produtos semiprontos e temperados. No cardápio com os preços, entre a costela de acém e o peitinho, ambos a 15,90 reais o quilo, está escrito: “Livro grátis.” Por mês, Amorim vende 1 tonelada de carne e diz que empresta até 2 mil livros. “O cliente pede um bife e eu pergunto: ‘Não quer levar um Machado de Assis também?’”
Luiz Amorim dos Santos corta carnes das 8 às 18 horas, todo dia útil, há 35 anos, trajando habitualmente jaleco branco, calça jeans e sandálias Crocs. Nascido na Bahia, foi para a capital federal aos 12. Chegou a trabalhar como engraxate e vigia antes de ser contratado por um açougue na 312 Norte. Alfabetizou-se aos 16 anos. A partir daí, desenvolveu compulsão pela leitura. Como morava nos fundos da loja, assim que fechava o açougue punha-se a ler para passar o tempo.
A estreia de Amorim foi com um volume de filosofia em quadrinhos. “Não entendi nada, mas fiquei intrigado”, disse. Aquele virou o assunto preferido das leituras do açougueiro. A ponto de ele citar Platão para explicar por que não tem um corte preferido: “É como na República: cada carne tem a sua finalidade e todo corte é importante, só depende do que você vai fazer. O rosbife tem que ser com filé-mignon. Nada melhor do que uma costela num cozido.”
Em 1994, os donos do açougue venderam-lhe o ponto. Ele mudou o nome do estabelecimento e pôs na porta uma estante de livros para emprestar. O acervo foi crescendo com doações e novas aquisições. Chegou a ter mais de 10 mil livros, quando a vigilância sanitária interditou o Açougue Cultural T-Bone. “Eles não acharam higiênico ter livros e carnes no mesmo ambiente”, lamentou. “Não entenderam a mais pura expressão da antropofagia.” O caso ganhou repercussão e a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou uma lei regulamentando atividades culturais em estabelecimentos comerciais: os livros nas estantes do T-Bone agora estão legalizados.
O açougue de Amorim virou um point literário. O espaço sedia uma bienal de poesia e promove encontros com escritores, músicos e críticos. A Noite Cultural criada por ele atrai milhares de pessoas todo ano e entrou para o calendário oficial de eventos do Distrito Federal, poupando mentiras e constrangimentos a quem passa a madrugada no açougue. Artistas como Lenine, Chico César, Zé Ramalho e até a Orquestra Sinfônica de Viena já usaram o T-Bone como camarim.
Quando os livros foram proibidos no açougue, Amorim montou uma biblioteca comunitária com atividades culturais e um acervo com mais de 45 mil volumes – na maioria doações e também livros comprados por ele de segunda mão. Em 2008, lançou o projeto de bibliotecas nos pontos de ônibus de Brasília, com patrocínio da Petrobras e da Fundação Banco do Brasil. Na W3 Norte, movimentada avenida que corta a Asa Norte, já são 37 paradas de ônibus com acervo de 600 livros que ele abastece diariamente. Não é preciso qualquer tipo de cadastro: basta pegar o exemplar desejado e devolver depois. “Ninguém jamais vandalizou uma estante”, contou o açougueiro. “As pessoas que não devolvem não chegam a 10% do total.” O projeto ganhou um prêmio da Unesco de incentivo à leitura e foi copiado em outros países.
O açougueiro acredita que suas ações culturais não são motivadas por marketing, e sim por convicção. “Como diz Marx, não interessa interpretar o mundo, mas transformá-lo. As pessoas têm que participar da construção do coletivo.” Ele afirma ter lido as “obras completas” do filósofo alemão, mas não se considera marxista. É lacônico ao explicar sua relação com o autor de O Capital. “Não vejo na teoria marxista uma fórmula a ser seguida, mas uma ferramenta para se pensar e questionar a sociedade”, disse.
Em relação a seus empregados, Amorim adota técnicas de reforço cultural: cada um recebe um bônus mensal de 200 reais se ler um livro e entregar um resumo por escrito. O açougueiro não julga a qualidade da obra escolhida. “O importante é que leiam e manuseiem livros, não só carnes”, disse.
O funcionário Joel Mendes da Silva, de 27 anos, contou que nunca havia lido um livro antes de trabalhar no T-Bone. Em um ano e meio, já leu quinze – e embolsou 3 mil reais. Mas frisou que não é só pelo estímulo do patrão. “No início lia pelo bônus, agora leio porque gosto.” O último foi uma biografia de Zico. “Agora estou lendo a história do goleiro Marcos. O próximo vai ser um sobre bebês, porque minha mulher está grávida.”
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