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Violência ancestral
As origens do comportamento agressivo do homem
Steven Pinker | Edição 78, Março 2013
Thomas Hobbes e Charles Darwin foram homens simpáticos cujos nomes se tornaram adjetivos detestáveis. Ninguém quer viver num mundo hobbesiano ou darwiniano (para não falar malthusiano, maquiavélico ou orwelliano). Os dois homens foram imortalizados no léxico por terem feito uma síntese cínica da vida em estado natural – Darwin, com a “sobrevivência do mais apto” (frase que ele usou, embora não a tenha cunhado), e Hobbes, com a “vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta do homem”. No entanto, ambos nos deram percepções da violência que são mais profundas, mais sutis e, no fim das contas, mais humanas do que fazem crer seus adjetivos epônimos. Hoje, qualquer tentativa de compreensão da violência humana tem de começar pelas análises que eles nos legaram.
Vou tratar aqui das origens da violência em dois sentidos: o lógico e o cronológico. Com a ajuda de Darwin e Hobbes, refletiremos sobre a lógica adaptativa da violência e o que ela permite predizer sobre os tipos de impulso violento que podem ter evoluído como parte da natureza humana. Abordaremos então a pré-história da violência, examinando quando ela apareceu em nossa linhagem evolutiva, em que medida era comum nos milênios anteriores à história escrita e que tipos de desenvolvimento histórico começaram a reduzi-la.
Darwin nos deu uma teoria para explicar por que os seres vivos têm as características que têm, não apenas fisicamente, mas também no plano das disposições mentais e motivações básicas que impelem seu comportamento. Um século e meio depois da publicação de A Origem das Espécies, a teoria da seleção natural está solidamente comprovada em laboratório e em campo e foi ampliada com ideias de novas áreas da ciência e da matemática, ensejando uma compreensão coerente do mundo vivo. Essas novas áreas incluem a genética, que explica os replicadores que possibilitam a seleção natural, e a teoria dos jogos, que lança luz sobre a sina de agentes que perseguem metas num mundo onde há outros agentes perseguidores de metas.
Por que razão evoluiriam organismos que visam fazer mal a outros organismos? A resposta não é tão direta quanto sugeriria a expressão “sobrevivência dos mais aptos”. Em seu livro O Gene Egoísta, no qual explica a síntese moderna da biologia evolutiva recorrendo à genética e à teoria dos jogos, Richard Dawkins tenta subtrair aos leitores a familiaridade irrefletida com o mundo vivo. Pede-lhes que imaginem os animais como “máquinas de sobrevivência” projetadas pelos genes (as únicas entidades que se propagam religiosamente ao longo de toda a evolução) e que então reflitam sobre como evoluiriam tais máquinas de sobrevivência:
Para uma máquina de sobrevivência, outra máquina de sobrevivência (que não seja seu filho ou parente próximo) é parte do ambiente, como uma rocha, um rio ou uma porção de alimento. É algo que estorva ou algo a ser explorado. Difere de uma rocha ou de um rio em um aspecto importante: ela tende a reagir. Pois também ela é uma máquina que administra seus genes imortais com vistas ao futuro e também ela fará de tudo para preservá-los. A seleção natural favorece os genes que controlam as máquinas de sobrevivência de modo que elas usem o ambiente da melhor forma possível. Isso inclui fazer o melhor uso possível de outras máquinas de sobrevivência, tanto da mesma espécie como de espécies diferentes.
Quem já viu um falcão dilacerar um estorninho, um enxame de insetos torturar um cavalo com suas ferroadas ou o vírus da Aids matar um homem lentamente tem conhecimento, em primeira mão, das maneiras com que as máquinas de sobrevivência exploram impiedosamente outras máquinas de sobrevivência. Em boa parte do mundo vivo, a violência é simplesmente a norma, algo que dispensa maiores explicações. Quando as vítimas pertencem a outra espécie, chamamos os agressores de predadores ou parasitas. Mas elas podem também ser membros da mesma espécie. Infanticídio, fratricídio, canibalismo, estupro e combate letal já foram documentados em muitos tipos de animais.
A passagem cuidadosamente formulada de Dawkins também explica por que a natureza não consiste em uma grande escaramuça sangrenta. Para começar, os animais são menos inclinados a fazer mal aos parentes próximos, pois qualquer gene que levasse um animal a prejudicar um parente teria uma boa chance de prejudicar uma cópia de si mesmo existente nesse parente, e a seleção natural tenderia a erradicá-lo. Acima de tudo, salienta Dawkins, um outro organismo difere de uma rocha ou de um rio porque tende a reagir. Qualquer organismo que tenha evoluído para ser violento é membro de uma espécie cujos outros membros, em média, evoluíram para ser igualmente violentos. Se ele atacar alguém da própria espécie, o adversário poderá ser igualmente forte e combativo e terá as mesmas armas e defesas. A probabilidade de que, ao atacar um membro da mesma espécie, o atacante sofra danos é uma poderosa pressão seletiva que desfavorece a investida ou o bote indiscriminados. Isso também descarta a metáfora hidráulica da pressão psíquica que se acumula e por fim extravasa, bem como a maioria das teorias populares sobre a violência, tais como a sede de sangue, o desejo de matar, o instinto assassino e outras comichões, impulsos e ânsias destrutivas. Quando uma tendência à violência evolui, ela é sempre estratégica. Os organismos são selecionados para mobilizar a violência somente em circunstâncias nas quais os benefícios esperados superam os custos previstos. Esse discernimento é especialmente válido para as espécies inteligentes, cujo cérebro grande as torna sensíveis à expectativa de custo e benefício em uma situação dada e não apenas à média eventualmente computada ao longo do tempo evolutivo.
A lógica da violência, quando aplicada a membros de uma espécie inteligente em confronto com outros membros dessa espécie, vai nos levar a Hobbes. Numa passagem notável do Leviatã, de 1651, ele não precisou nem de 100 palavras para traçar uma análise dos estímulos à violência que não deixa nada a dever às de hoje:
Assim, na natureza do homem, encontramos três causas principais de contenda. Primeiro, a competição; segundo, a difidência; terceiro, a glória. A primeira leva o homem a invadir pelo ganho; a segunda, pela segurança; a terceira, pela reputação. O primeiro usa a violência para se assenhorear da pessoa de outros homens, de esposas, filhos e rebanhos; o segundo, para defendê-los; o terceiro, por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente e qualquer outro sinal de desapreço, ou à sua pessoa diretamente, ou, por reflexo, a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.
Hobbes considerava a competição uma consequência inevitável do empenho do agente em perseguir seus interesses. Vemos hoje que ela é parte integrante do processo evolutivo. Máquinas de sobrevivência capazes de chutar os competidores para longe de recursos finitos como comida, água e território desejável conseguirão se reproduzir mais do que os concorrentes, deixando o mundo com as máquinas de sobrevivência mais aptas a esse tipo de competição.
Também sabemos hoje por que “esposas” são um dos recursos pelos quais os homens devem competir. Na maioria das espécies animais, a fêmea faz um investimento maior do que o macho na prole. Isso se aplica em especial aos mamíferos, pois a mãe gesta a cria dentro do corpo e depois do parto a amamenta. Um macho pode multiplicar o número de filhos acasalando-se com várias fêmeas – o que privará outros machos de filhos –, enquanto uma fêmea não pode multiplicar o número de filhos acasalando-se com vários machos. Isso faz da capacidade reprodutiva da fêmea um recurso escasso pelo qual competem os machos de muitas espécies, inclusive a humana. Nada disso, a propósito, implica que os homens sejam robôs controlados por seus genes, que eles possam ser moralmente desculpados por estuprar ou lutar, que as mulheres sejam prêmios sexuais passivos, que as pessoas tentem gerar o maior número possível de bebês ou que sejam impermeáveis às influências de sua cultura, para citar alguns dos equívocos comuns a respeito da teoria da seleção sexual.
A segunda causa de contenda é a difidência, palavra que na época de Hobbes significava sobretudo “medo”, e não “desconfiança”. A segunda causa é consequência da primeira: competição gera medo. Se você tem motivo para suspeitar que seu vizinho está propenso a eliminá-lo da competição, digamos, matando-o, então estará propenso a se proteger eliminando-o primeiro, num ataque preventivo. A tentação pode aparecer, ainda que em condições normais você não seja capaz de matar nem uma mosca – basta não estar disposto a cruzar os braços e se deixar matar. A tragédia é que seu competidor tem todos os motivos para maquinar o mesmo cálculo, ainda que ele próprio seja o tipo de pessoa que não mataria uma mosca. De fato, mesmo se souber que você não partiria para cima dele com intenções agressivas, ele pode legitimamente recear que você esteja tentado a neutralizá-lo por medo de que ele o neutralize primeiro, o que dará a você o incentivo para neutralizá-lo antes, ad infinitum. O cientista político Thomas Schelling apresenta a analogia do homem armado que surpreende em sua casa um assaltante também armado, e cada um deles é tentado a atirar no outro para não ser baleado primeiro. Esse paradoxo às vezes é chamado de armadilha hobbesiana, ou, na arena das relações internacionais, de dilema da segurança.
De que maneira os agentes inteligentes podem se desvencilhar da armadilha hobbesiana? A forma mais óbvia é uma política de dissuasão: não ataque primeiro, seja forte o bastante para sobreviver a um primeiro ataque e retalie na mesma moeda qualquer agressão. Uma política de dissuasão digna de crédito pode retirar do competidor o incentivo para invadir pelo ganho, pois o custo imposto pela retaliação anularia para ele o espólio previsto. E elimina o incentivo para invadir por medo, em virtude da decisão de não invadir primeiro e, acima de tudo, do menor incentivo para ser o primeiro a atacar, visto que a dissuasão reduz a necessidade de um ataque preventivo. A chave da política de dissuasão, no entanto, é a credibilidade da ameaça de que haverá retaliação. Se seu adversário pensa que você é vulnerável a ponto de ser aniquilado em um primeiro ataque, não tem por que temer a retaliação. E se pensa que, uma vez atacado, você pode racionalmente se abster de retaliar, pois a essa altura é tarde demais para ter algum benefício com a retaliação, ele poderá explorar essa racionalidade e atacá-lo impunemente. Sua política de dissuasão só merecerá crédito se você se mostrar categórico no compromisso de refutar a menor suspeita de fraqueza, de vingar todo avanço sobre seu território e de dar o troco a qualquer ofensa. Está explicado, assim, o incentivo para invadir por ninharias: uma palavra, um sorriso ou qualquer outro sinal de desapreço. Hobbes o chamou “glória”; mais comumente, chamam-no “honra”; o termo que o descreve com maior precisão é “credibilidade”.
A política da dissuasão também é conhecida como o equilíbrio do terror e, durante a Guerra Fria, foi chamada de destruição mútua assegurada [MAD, na sigla em inglês]. A paz eventualmente prometida por uma política de dissuasão é sempre frágil, pois a dissuasão só reduz a violência mediante a ameaça de violência. Cada lado deve reagir a qualquer sinal não violento de desrespeito com uma violenta demonstração de vigor; em consequência, um ato de violência pode levar a outro, num ciclo interminável de retaliação. Uma importante característica da natureza humana – o viés do interesse próprio – pode levar cada lado a acreditar que sua própria violência foi um ato de retaliação justificada, enquanto o ato do outro foi uma agressão imotivada.
A análise de Hobbes diz respeito à vida em estado de anarquia. O título de sua obra-prima identificou um modo de escapar dela: o Leviatã, uma monarquia ou outra autoridade governamental que incorpora a vontade do povo e tem o monopólio do uso da força. Aplicando penalidades aos agressores, o Leviatã pode eliminar o incentivo para a agressão, o que, por sua vez, desativa a ansiedade geral sobre ataques preventivos e a necessidade de que todos mantenham o dedo no gatilho para retaliar à menor provocação e provar que são determinados. E, sendo o Leviatã uma terceira parte desinteressada, não se deixa sugestionar pelo chauvinismo que leva cada lado a pensar que o oponente tem um coração das trevas, enquanto o seu próprio é puro como um cristal.
A lógica do Leviatã pode ser resumida com um triângulo. Em cada ato de violência há três partes interessadas: o agressor, a vítima e um observador. Cada um tem um motivo para a violência: o agressor, predar a vítima; a vítima, retaliar; o observador, minimizar os danos colaterais da luta dos dois. A violência entre os combatentes pode ser chamada guerra; a violência do observador contra os combatentes pode ser chamada lei. A teoria do Leviatã, em suma, diz que a lei é melhor do que a guerra. A teoria de Hobbes delineia um prognóstico verificável sobre a história da violência. O Leviatã fez sua primeira entrada num ato tardio da encenação humana. Os arqueólogos nos dizem que os seres humanos viveram em estado de anarquia até o surgimento da civilização, há cerca de 5 mil anos, quando agricultores sedentários se aglutinaram pela primeira vez em cidades e Estados e criaram os primeiros governos. Se a teoria de Hobbes for correta, essa transição deve também ter prenunciado o primeiro grande declínio histórico da violência. Antes do advento da civilização, quando os homens viviam sem “um poder comum capaz de manter a todos em temor reverente”, a vida devia ser mais sórdida, mais brutal e mais curta do que quando a paz lhes foi imposta por autoridades armadas, desenvolvimento que chamarei de “processo de pacificação”. Hobbes afirma que “povos selvagens em muitos lugares da América” viviam em estado de anarquia violenta, mas não dá nenhuma especificação sobre o que tinha em mente.
Nesse vácuo de dados, qualquer um poderia ter vez nas especulações sobre os povos primitivos, e não demorou a que uma teoria oposta viesse à tona. O contrário de Hobbes foi o filósofo nascido na Suíça Jean-Jacques Rousseau [1712–78], que era da seguinte opinião:
[…] nada é mais dócil do que [o homem] em seu estado primitivo. […] O exemplo dos selvagens […] parece confirmar que o gênero humano era feito para nele permanecer sempre, […] e que todos os progressos ulteriores foram outros tantos passos […] em direção à decrepitude da espécie.
Embora as filosofias de Hobbes e Rousseau sejam muito mais refinadas do que “vida sórdida, brutal e curta” versus “o bom selvagem”, seus estereótipos concorrentes da vida em estado de natureza alimentaram uma controvérsia que perdura até os nossos dias. Em Tábula Rasa [2002], examinei como a questão acumulou uma pesada bagagem emocional, moral e política. Na segunda metade do século XX, a romântica teoria de Rousseau se tornou a doutrina politicamente correta da natureza humana, tanto como reação a doutrinas racistas anteriores sobre povos “primitivos” como pela convicção de que se tratava de uma visão mais elevada da condição humana. Muitos antropólogos acreditam que, se Hobbes estivesse certo, a guerra seria inevitável ou mesmo desejável; logo, qualquer um que seja a favor da paz deve insistir que Hobbes está errado. Esses “antropólogos da paz” (que na verdade são acadêmicos bem agressivos – o etologista Johan van der Dennen os chama de “máfia da paz e harmonia”) sustentam que os humanos e outros animais têm inibições severas quanto a matar os da própria espécie, que a guerra é uma invenção recente e que as lutas entre povos nativos foram ritualísticas e inofensivas até eles encontrarem o colonizador europeu.
A meu ver, a ideia de que as teorias biológicas da violência são fatalistas e de que as teorias românticas são otimistas põe as coisas de cabeça para baixo, mas não é esse o meu assunto aqui. Quando se trata de violência em povos antes do advento do Estado, Hobbes e Rousseau estão falando do alto de suas respectivas poltronas: nenhum deles conhecia coisa alguma sobre a vida antes da civilização. Hoje podemos fazer melhor. Estamos examinando aqui os fatos sobre a violência nos primeiros estágios da carreira humana. A história começa antes de sermos humanos, e analisaremos a agressão em nossos parentes primatas para ver o que ela revela sobre o surgimento da violência em nossa linhagem evolutiva.
A partir de que ponto temos como rastrear a história da violência? Embora os ancestrais primatas da linhagem humana tenham sido extintos há muito tempo, eles nos deixaram no mínimo um tipo de evidência de como podem ter sido: os chimpanzés, seus outros descendentes. Não evoluímos de chimpanzés, é claro, e, como veremos, é uma questão em aberto se os chimpanzés preservaram ou não as características do nosso ancestral comum ou se enveredaram por uma direção exclusiva deles. Seja como for, a agressão entre os chimpanzés contém uma lição para nós, pois mostra como a violência pode evoluir numa espécie primata com a qual compartilhamos certas características. E põe à prova o prognóstico evolutivo de que as tendências violentas não são hidráulicas, e sim estratégicas, mobilizadas apenas em circunstâncias nas quais os ganhos potenciais são altos e os riscos são baixos.
Os chimpanzés comuns vivem em comunidades de até 150 indivíduos que ocupam um território separado. Enquanto vagueiam em busca de frutas e nozes, que se distribuem de maneira não uniforme pela floresta, eles com frequência se dividem e se aglutinam em grupos menores de um a quinze indivíduos. Se um grupo encontra outro grupo de uma comunidade diferente na fronteira dos territórios, a interação é sempre hostil. Quando os bandos estão em equilíbrio de forças, disputam a fronteira em uma batalha ruidosa. Os dois lados dão gritos curtos e repetidos ou emitem sons graves, sacodem galhos, atiram objetos e arremetem uns contra os outros por meia hora ou mais, até que um lado, geralmente o menos numeroso, bate em retirada.
Essas batalhas exemplificam as demonstrações de agressividade que são comuns entre animais. Supunha-se antes que fossem rituais para decidir contendas sem derramamento de sangue, pelo bem da espécie, mas hoje elas são entendidas como exibições de força e determinação que permitem ao lado mais fraco ceder, nos casos em que o resultado da luta é previsível e insistir nela significaria apenas risco de dano para ambas as partes. Quando dois animais estão em condições de igualdade, a exibição de força às vezes vai num crescendo até o combate sério, um deles ou ambos terminando feridos ou mortos. As batalhas entre grupos de chimpanzés, contudo, não descambam para a luta séria, e antes os antropólogos acreditavam que a espécie era essencialmente pacífica.
Jane Goodall, a primatóloga que pela primeira vez observou chimpanzés na natureza por longos períodos, acabou fazendo uma descoberta estarrecedora. Quando um grupo de chimpanzés machos encontra um grupo menor ou um indivíduo solitário de outra comunidade, eles não gritam nem se eriçam, mas tiram vantagem de estar em maior número. Se é uma fêmea adolescente sexualmente receptiva, podem catar piolhos entre os pelos da estranha e tentar acasalar. Se ela carrega um filhote, eles em geral a atacam e depois matam e comem o bebê. E, se encontram um macho solitário, ou isolado de um grupo pequeno, perseguem-no com selvageria assassina. Dois atacantes imobilizam a vítima e os demais o espancam, arrancam-lhe os dedos e a genitália a mordidas, dilaceram-lhe a carne, torcem seus membros, bebem seu sangue ou lhe arrancam a traqueia. Os chimpanzés de determinada comunidade pegaram todos os machos de uma comunidade vizinha e os mataram um por um, evento que, se ocorresse entre humanos, chamaríamos de genocídio. Muitos ataques não são desencadeados por encontros fortuitos; resultam de patrulhamentos de fronteira durante os quais um grupo de machos faz buscas sorrateiras e transforma em alvo todo macho solitário que localiza. Mata-se também dentro da própria comunidade. Uma gangue de machos pode matar um rival, e uma fêmea forte, ajudada por um macho ou outra fêmea, pode matar a cria de uma fêmea mais fraca.
Quando Goodall apresentou o primeiro relato dessas matanças, outros cientistas conjecturaram se não seriam explosões anômalas ou sintomas de patologia, ou se não decorreriam do fato de os primatólogos abastecerem os chimpanzés com comida para facilitar a observação. Três décadas depois, não resta praticamente nenhuma dúvida de que a agressão letal integra o repertório de comportamentos normais dos chimpanzés. Os primatólogos observaram ou inferiram o extermínio de quase cinquenta indivíduos em ataques intercomunitários e de mais de 25 em ataques dentro da mesma comunidade. Os relatos provêm de no mínimo nove comunidades, incluindo algumas que nunca haviam recebido provisões. Em certas comunidades, mais de um terço dos machos morre vitimado por violência.
O chimpancídio tem fundamento darwiniano? O primatólogo Richard Wrangham, ex-aluno de Goodall, testou várias hipóteses com os numerosos dados coligidos sobre a demografia e a ecologia dos chimpanzés. Conseguiu documentar uma vantagem darwiniana de peso e outra vantagem menor. Quando os chimpanzés eliminam machos rivais e a respectiva prole, expandem seu território, seja transferindo-se para lá imediatamente, seja vencendo batalhas subsequentes com a ajuda da vantagem numérica recém-fortalecida. Isso lhes permite monopolizar o acesso ao alimento no território para si mesmos, suas crias e as fêmeas com as quais acasalam, o que resulta, por sua vez, no aumento da taxa de natalidade entre as fêmeas. Às vezes a comunidade também absorve as fêmeas do grupo derrotado, proporcionando aos machos uma segunda vantagem reprodutiva. Não é que os chimpanzés lutem diretamente por comida ou por fêmeas. Eles só se dispõem a dominar o território e a eliminar os rivais se puderem fazê-lo com risco mínimo para si mesmos. Os benefícios evolutivos ocorrem indiretamente e em longo prazo.
Quanto aos riscos, os chimpanzés os minimizam provocando brigas desiguais, em que superam o número de vítimas na proporção de pelo menos três para um. O padrão forrageiro dos chimpanzés costuma mandar a infeliz vítima direto para suas garras porque as árvores frutíferas se distribuem por trechos descontínuos na floresta. Chimpanzés famintos veem-se obrigados a procurar comida em pequenos grupos ou individualmente, e às vezes se aventuram em terras de ninguém à cata do jantar.
O que isso tem a ver com a violência em seres humanos? A partir daí, levanta-se a possibilidade de que a linhagem humana tenha praticado assaltos letais desde a época de suas raízes comuns com os chimpanzés, por volta de 6 milhões de anos atrás. Existe, contudo, uma possibilidade alternativa. O ancestral compartilhado pelos humanos e pelos chimpanzés comuns (Pan troglodytes) legou ao mundo uma terceira espécie – o bonobo ou chimpanzé-pigmeu (Pan paniscus) –, que se separou de seus primos comuns há cerca de 2 milhões de anos. Nosso parentesco com os bonobos é tão próximo quanto com os chimpanzés comuns, e os bonobos nunca praticam ataques letais. Na verdade, a diferença entre bonobos e chimpanzés comuns é um dos fatos mais conhecidos da primatologia popular. Os bonobos ganharam fama como pacíficos, matriarcais, concupiscentes e herbívoros “chimpanzés hippies”. Deram nome a um restaurante vegetariano em Nova York, inspiraram a sexóloga Susan Block a criar “o caminho da paz dos bonobos através do prazer” e, se dependesse de Maureen Dowd, colunista do New York Times, seriam um modelo para os homens de hoje.
O primatólogo Frans de Waal salienta que, em teoria, o ancestral em comum de seres humanos, chimpanzés e bonobos possivelmente se assemelhava aos bonobos, e não aos chimpanzés. Nesse caso, a violência entre coalizões de machos teria raízes menos profundas na história evolutiva humana. Os chimpanzés comuns e os humanos teriam desenvolvido independentemente os ataques letais, e a prática humana do ataque pode ter se desenvolvido historicamente em culturas específicas, e não no plano da evolução da espécie. Nesse caso, os humanos não teriam predisposições inatas à violência física e não precisariam de um Leviatã ou de qualquer outra instituição para se manter longe dela.
Há dois problemas na ideia de que o homem evoluiu de um ancestral pacífico semelhante ao bonobo. Primeiro, é fácil se deixar empolgar por essa história de um primata hippie. Os bonobos são uma espécie ameaçada que vive em florestas inacessíveis, em regiões perigosas do Congo, e muito do que sabemos sobre eles vem da observação de pequenos grupos em cativeiro, compostos de adolescentes ou jovens adultos bem nutridos. Muitos primatólogos suspeitam que estudos sistemáticos de grupos de bonobos mais velhos, mais famintos, mais populosos e mais livres pintariam um quadro bem mais sinistro. Na selva, descobriu-se, os bonobos caçam, confrontam-se belicosamente e ferem uns aos outros em lutas às vezes fatais. Assim, embora os bonobos sejam inquestionavelmente menos agressivos do que os chimpanzés comuns – nunca fazem incursões de ataque e suas comunidades podem se misturar pacificamente –, 100% pacíficos eles com certeza não são.
O segundo e principal problema é que, muito provavelmente, o ancestral comum das duas espécies de chimpanzé e do homem era mais parecido com um chimpanzé do que com um bonobo. Os bonobos são primatas muito estranhos, não só no comportamento, mas também na anatomia. A cabeça pequena e de formato infantil, o corpo mais leve, as diferenças menos acentuadas entre os sexos e outras características juvenis os distinguem não só dos chimpanzés comuns, mas também dos outros grandes primatas (gorilas e orangotangos), assim como dos fósseis de australopitecos, que foram ancestrais dos humanos. Encaixada na grande árvore filogenética dos primatas, a anatomia peculiar dos bonobos sugere que eles foram afastados do esboço genérico dos grandes primatas pela neotenia, processo que ressintoniza o programa de crescimento de um animal para preservar certas características juvenis na fase adulta (no caso dos bonobos, características do crânio e do cérebro). A neotenia costuma ocorrer em espécies que foram domesticadas (como no caso do cão, que se desviou do lobo) e é um caminho pelo qual a seleção pode tornar os animais menos agressivos. Wrangham afirma que o principal motor na evolução dos bonobos foi a seleção para menor agressividade nos machos, talvez porque os bonobos busquem alimento sempre em grandes grupos, sem indivíduos solitários vulneráveis, não se criando, assim, oportunidades para que a agressão física seja compensadora. Essas considerações sugerem que os bonobos desafinam no coro dos grandes primatas e que nós descendemos de um animal que se assemelhava mais com o chimpanzé comum.
Mesmo se chimpanzés e humanos tiverem descoberto independentemente a violência grupal, a coincidência seria informativa. Sugeriria que as incursões letais podem ser evolucionariamente vantajosas numa espécie inteligente que se divide em grupos de vários tamanhos e na qual machos aparentados formam coalizões e são capazes de avaliar a força relativa uns dos outros. (Quando examinamos a violência em seres humanos, descobrimos alguns paralelos inquietantemente próximos.)
Seria ótimo se a lacuna entre o ancestral comum e os humanos modernos pudesse ser preenchida pelo registro fóssil. Mas os ancestrais dos chimpanzés não deixaram fósseis, e não dispomos de fósseis e artefatos de hominídeos em quantidade suficiente para fornecer evidências diretas de agressão, como armas ou marcas de ferimentos.
Alguns paleoantropólogos buscam sinais de temperamento violento em espécies fósseis medindo o tamanho dos dentes caninos nos machos (pois encontramos caninos pontiagudos em espécies agressivas) e verificando as diferenças de tamanho entre machos e fêmeas (pois nas espécies políginas os machos tendem a ser maiores, para lutar melhor contra outros machos).
Infelizmente as mandíbulas pequenas dos hominídeos, ao contrário do focinho dos outros primatas, não se abrem o suficiente para que caninos grandes se mostrem práticos, independentemente de essas criaturas terem sido agressivas ou pacíficas. E, a menos que uma espécie tenha tido a consideração de nos deixar um bom número de esqueletos completos, é difícil determinar com segurança o sexo deles e comparar o tamanho de machos e fêmeas. (Por essas razões, muitos antropólogos veem com ceticismo a recente afirmação de que o Ardipithecus ramidus, uma espécie de 4,4 milhões de anos que é provavelmente ancestral do Homo, tinha caninos igualmente pequenos em machos e fêmeas e que, portanto, era uma espécie monógama e pacífica.)
Os fósseis mais recentes e abundantes de Homo mostram que os machos foram maiores do que as fêmeas por no mínimo 2 milhões de anos e numa proporção não inferior à encontrada nos humanos modernos. Isso reforça a suspeita de que a competição violenta entre homens tem uma longa história em nossa linhagem evolutiva.