ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Grafite da discórdia
Um piauiense virou persona non grata entre os artistas de rua baianos
Luiza Miguez | Edição 78, Março 2013
Willyams Martins escalou com agilidade a lateral de um prédio residencial no bairro de Campo Grande, em Salvador. Eram três da tarde de um dia útil de fevereiro, e ele temia chamar atenção. Caso fosse pego tirando um pedaço da superfície do muro, a resposta já estava ensaiada: “Se perguntarem, invento uma desculpa, digo que é um trabalho para a faculdade, ou que faz parte dos preparativos para o Carnaval.” A prefeitura instalava perto dali os camarotes do trajeto por onde passariam os trios. Willyams sacou da mochila um retângulo de tecido transparente e encaixou na parede, em cima do cartaz de um candidato a vereador. Usando um pincel, lambuzou uma grossa camada de resina por cima e marcou a hora com o celular.
Nascido há 53 anos em Teresina, no Piauí, Willyams está em Salvador desde os 22. Já retirou mais de quarenta fragmentos dos muros da cidade com uma técnica que ele desenvolveu durante o mestrado em artes. Pequeno e magricela, ele fala lentamente, quase sempre sorrindo. “Coleto frases que as pessoas escrevem em terrenos baldios, sujeira, refugos, pichações, grafites”, explicou. “Queria remover isso tudo e levar para a galeria, aproximar essas imagens do espectador.”
Willyams chama as películas que tira dos muros de “peles”, fazendo analogia entre a cidade e um “grande organismo vivo”. A resina de poliéster que ele aplica sobre o lençol de voile permite remover a camada superficial do muro e pregá-la no tecido. Quando a cola seca, o artista retira cirurgicamente o voile da parede e deixa para trás o muro exposto em concreto, como uma ferida aberta, sem casca. Depois, ele leva a tela para um marceneiro, que a enquadra numa moldura de madeira. “É para dar o status de obra de arte”, explicou.
O piauiense já havia exposto suas peles na Universidade Federal da Bahia, onde hoje é professor. Mas ganhou projeção quando, em 2007, recebeu 40 mil reais de uma empresa de produtos químicos como incentivo para sua produção artística. Depois, venceu dois salões regionais de artes, ganhando mais 2 mil reais em cada um.
Numa manhã de 2007, Willyams se deparou com seu nome estampado em cartazes. “As ruas estavam repletas desses pôsteres em muros, postes, até em cima de outdoor. Eram muito agressivos”, lembrou-se numa conversa recente. O cartaz vermelho trazia a figura de um cifrão e o seguinte texto: “Willyams Martins, ladrão de grafite. O artista prático, em um ato de extremo egoísmo para com a população, arranca das ruas trabalhos de arte feitos pelos outros, privatiza a obra e assina embaixo. Se não tem talento, não fode com quem tem!”
Na internet, os ânimos estavam ainda mais acirrados. No blog Artista Prático, os grafiteiros questionaram a remoção de suas obras e o lucro de Willyams com a venda das peles contendo o trabalho alheio. As mensagens também traziam ameaças. “Em qualquer lugar que ele andar, pode ser esmurrado e espancado, então, Willyams Martins, é bom tomar cuidado.”
Entre as reações mais exaltadas, estava a da artista Ananda Nahu, que teve um de seus estênceis retirados por Willyams. “Parasita que ganha estuprando obras de arte”, escreveu em seu blog. Procurada para comentar o caso, ela recusou-se a dar entrevista.
O único grafiteiro que se dispôs a falar sobre o conflito é Samuca Santos, que não teve nenhuma obra removida. “Entendo o caráter transgressor da arte de Willyams, mas você precisa pensar na importância de uma parede grafitada”, disse Samuca, um baiano de 26 anos que usa os dreads do cabelo presos para evitar o calor. “Tirar a pintura do ambiente público e levar para a galeria, um ambiente elitista, é interromper uma relação de comunicação na cidade”, argumentou. “Há um código de ética nas ruas. A gente não tem muita grana e fazer grafite é caro. Aí chega o cara e remove, isso é desrespeitoso.”
Remover grafites das ruas não é mais a principal atividade de Willyams. Desde o ano passado, tem se dedicado a retirar as peles de celas de presídios de Salvador – um projeto para o qual recebeu financiamento de 30 mil reais. Mas os ânimos dos grafiteiros não arrefeceram. Samuca conhece muitos que, se cruzarem com o piauiense na rua, não perderiam a oportunidade de tirar satisfação.
Numa atitude conciliatória, Willyams reconheceu que, afinal, talvez não fosse necessário remover grafites. “É mais interessante tirar as imagens anônimas dos muros, as pichações que ninguém vê no dia a dia”, admitiu. “O grafite já é muito potente.” Ele disse que, por trás das películas que retira, encontra novas camadas, restos de frases, cartazes publicitários.“Sou um arqueólogo urbano da memória de um tempo da cidade.”
A resina leva, em média, duas horas para fixar a tinta que cobre o muro no tecido usado por Willyams. Na tarde quente de Salvador, porém, uma hora e meia bastou. Enquanto a cola secava, Willyams aguardou num restaurante próximo, apreensivo. Na volta, topou com dois policiais, o porteiro e uma moradora do prédio olhando atentamente para o local onde ele havia deixado sua pele. Chegou a pensar que a tivessem destruído, mas ela estava camuflada sob o tecido transparente.
Willyams aproximou-se rapidamente e apalpou a película, procurando o melhor local para iniciar a remoção. Com a ajuda de um estilete, fez uma pequena incisão na lateral da pele, puxando com força o restante do tecido. Colocou o voile no chão e admirou a imagem do cartaz do candidato que agora estava em uma de suas telas. Da calçada, a moradora gesticulava com raiva. “Pode ficar tranquila, minha senhora”, contemporizou Willyams. “Não estou colocando nada, estou só tirando.”
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