ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Os papa-hóstias
As bolachinhas sagradas caem no gosto dos gourmets
Júnior Milério | Edição 80, Maio 2013
As mexicanas podem ter cores de Frida Kahlo. Na Colômbia, são lambrecadas com doce de leite. Em São Paulo, viram docinhos de batizado, casamento, aniversário. Nas igrejas, as sobras engrossam sopa. Na mão de criadores, viram ração para peixe, vaca e porco. Como se vê, nem toda hóstia nasceu para corpo de Cristo. Aquelas que não são consagradas por um padre podem virar quitutes que fariam cristãos e pagãos se entregarem ao pecado da gula.
Que o diga o chef confeiteiro Lucas Corazza, habituado a preparar doces à base de hóstias. As iguarias feitas por ele têm a aparência de um pequeno sanduíche, no qual as bolachinhas usadas na comunhão fazem as vezes de pão. O recheio fica a gosto do freguês – pode ser doce de leite, mel, geleia. “Os que têm mais saída são os de brigadeiro – puro, de rosas, de pistache”, enumerou o chef, na ampla cozinha que lhe serve de quartel-general no Alto da Lapa, em São Paulo.
Corazza explicou que o doce ideal deve conciliar texturas cremosas, macias e crocantes. A hóstia entra na receita com a função de provocar o “estalo na mordida” que se experimenta em iguarias como o macaron francês ou o whoopie pie americano. “Hóstia para mim é waffle”, resumiu, enquanto mordiscava unidades que ia tirando de um pacote de plástico. “Parece aperitivo que comemos assistindo a um jogo de futebol”, comparou.
O chef viu o “pão da vida” se tornar doce pela primeira vez numa receita ensinada por Ana Maria Braga no Note e Anote, extinto programa de variedades da Record. Curioso para experimentar a novidade, visitou uma loja de produtos religiosos e providenciou uma provisão de hóstias. Corazza lembrou-se do estranhamento inicial quando provou a primeira. “Secava a boca um pouco, mas era crocante e gostosa”, disse o chef, ele próprio apresentador de um programa de receitas na tevê. “Foi surpreendente ter o primeiro contato com a hóstia na cozinha, e não na igreja.”
Corazza vende por encomenda os doces que faz com hóstias – geralmente, para recepções após alguma celebração religiosa. Cada unidade sai por até 3 reais – o preço varia com o recheio. Na avaliação do chef, os pedidos vêm sempre acompanhados de uma aura solene, como se os doces fossem abençoar quem os consumisse, mesmo feitos com hóstias não consagradas. O mistério que envolve o ingrediente, considerado por muitos um produto inacessível, também alavanca as encomendas. Muitos fiéis não sabem que qualquer um pode comprar pacotes de diversos tamanhos em lojas especializadas e livrarias religiosas.
O item ainda está longe de ser tão popular entre nós como é na Colômbia, onde é possível comprar no supermercado pacotes que já vêm acompanhados de um pote de doce de leite. O chef colombiano Dagoberto Torres se recorda de abocanhar diversas hóstias durante a infância, quando acompanhava a avó em visitas ao vigário. Hoje morando em São Paulo, ele incorporou o ingrediente a receitas que prepara no recém-inaugurado Sabores de Mi Tierra. Clientes podem escolher entre obleas recheadas com framboesa, brigadeiro e outros sabores, e comer como um frade. Torres cogita criar uma versão com cocada.
Na missa católica, a hóstia – termo que em latim significa “vítima de sacrifício” – é oferecida aos fiéis na eucaristia como um símbolo do corpo de Jesus. Tem a forma arredondada desde o século III, numa alusão à coroa de Cristo. A exigência para a confecção da obreia, massa de farinha de trigo da qual é feita a hóstia, caberia num versículo. A especificação está no artigo 924 do Código de Direito Canônico: “O pão deve ser de trigo puro e recentemente confeccionado.”
A massa lembra a de panqueca de liquidificador. Para cada quilo de trigo, acrescenta-se 1,2 litro de água. Em tempos de catolicismo fordista, porém, o preparo é feito em grandes máquinas, e a matéria-prima é usada em quantidades industriais.
Na fábrica de João Tadeu Benatti, em Mococa, a produção mensal emprega 20 toneladas de farinha, o suficiente para fazer 15 milhões de hóstias. Benatti é um católico fervoroso de 62 anos que fabrica o item há quase duas décadas. A produção da Fábrica de Hóstias São Francisco, empresa da qual é sócio, chega a capelas do Amazonas, paróquias do Rio de Janeiro e catedrais como a da Sé, em São Paulo. O negócio é afetado pelas flutuações mundanas do mercado de commodities. “A Cristina barrou o trigo”, lamentou Benatti, referindo-se à presidente Kirchner e ao cenário instável de produção do cereal na Argentina. “Agora estou comprando farinha brasileira, mas feita com a parte nobre, o miolo do grão.”
O fabricante está familiarizado com as aplicações gastronômicas de seu produto. “Já fiz hóstia com sabor de bacon, queijo, cebola, pimenta. Mas tem que passar o patê na hora de comer, porque ela umedece rápido”, advertiu. Para um chef, a hóstia perfeita é fina e crocante, de forma a absorver menos líquido em contato com a boca. Mas a maioria dos clérigos as prefere mais grossas e firmes, para não fragmentar depois de consagrada – um pré-requisito que Benatti observa na sua fábrica. “Minha hóstia é bonita, não esfarela”, afirmou, imodesto. “Mas perfeito só Jesus Cristo.”
A linha de produção não para de segunda a sábado, entre seis da manhã e dez da noite. Ainda assim, não dá conta de atender, simultaneamente, à demanda de religiosos e gourmets – a prioridade é para a Igreja Católica. Benatti está animado com a perspectiva de ter suas hóstias consumidas pelo papa Francisco. “Três milhões de unidades foram encomendadas para a Jornada Mundial da Juventude”, anunciou, orgulhoso.