Mais velha que a maioria das travestis, Fernanda dava conselhos e cozinhava para as demais. Tinha fama de gritar muito. Voltou para Campo Grande, onde nasceu
Corpos da Lapa
Fotógrafa registra a rotina e a intimidade de uma pensão só de travestis
Ana Carolina Fernandes | Edição 81, Junho 2013
Durante praticamente dois anos, a fotógrafa Ana Carolina Fernandes frequentou a casa número 100 da rua Mem de Sá. Ali, no coração da Lapa carioca, integrada à vida boêmia de bares e restaurantes a seu redor, funciona uma pensão para travestis. Todos a conhecem como Casarão.
A dona do imóvel centenário é Luana Muniz, uma travesti de 54 anos. A menção a seu nome quase sempre vem acompanhada do complemento “a Rainha da Lapa”. Foi em contato com ela que Ana Carolina obteve algo inédito: passe livre para entrar na rotina da casa e fotografar a intimidade das moradoras.
“Ela me disse: ‘As portas estão abertas para você.’ O único trato era respeitar os limites de cada uma. Nunca fui censurada. Mas nunca ‘roubei’ uma foto. Só fotografei quem quis ser fotografada’’, diz Ana Carolina.
A fotógrafa contou mais de cinquenta visitas ao Casarão. Passava lá três, quatro, até sete horas: “Só comecei a fotografar depois que a confiança se estabeleceu e veio a cumplicidade.” Muitas travestis nunca se deixaram registrar pela câmera. Outras a procuravam. “Mas houve um momento em que eu estava quase invisível”, ela diz.
A pensão existe há 17 anos e abriga em torno de 25 travestis, na maioria jovens de outros estados. Ficam distribuídas em 12 aposentos – individuais, para quatro e até para seis pessoas. Dividem quatro pequenos banheiros na área comum. Cada uma paga, em média, de 25 a 30 reais por dia, o que lhes dá também o direito de receber a clientela lá dentro, respeitando-se certas regras. Todas, incluindo a proprietária (a quem as travestis chamam de ‘mãe Luana’), garantem seu sustento, em grande medida, com o dinheiro da prostituição.
Várias das personagens que Ana Carolina fotografou a partir de abril de 2011 já não estão no Casarão. A condição precária e instável de suas vidas – marcadas por acúmulos de exclusão, brigas, uso frequente de drogas e alta incidência de pequenos delitos – faz com que a rotatividade na pensão seja alta.
Ana Carolina conta que, ao iniciar o trabalho, procurou evitar tanto o olhar moralista quanto o apelo do drama social, molduras em que o universo das travestis costuma ser encerrado. “Eu não buscava dar voz às travestis, mas sim dar um corpo”, resume a fotógrafa.
Em nenhum momento ela usou flashes, filtro ou qualquer recurso do Photoshop. Numa das sessões, depois de ser fotografada, Sheila, uma das travestis, olhou as imagens no visor, virou-se para Ana Carolina e comentou: “Amapôa, [1] você também é meio travesti com sua câmera. Você só mostra o que quer e esconde o que te interessa.”
[1] Amapôa é a maneira como as travestis se referem às mulheres. A palavra, de origem africana, pode significar mulher ou vagina.
![Valéria nasceu no Ceará e já morou em Barcelona. Em maio de 2012, tinha 22 anos. O crack a levou a deixar o Casarão e a mendigar nas ruas](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-9.jpg)
![Banho, depilação, maquiagem, cabelos, unhas: as travestis cuidam do corpo na frente das outras; privacidade é um luxo inexistente](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-10.jpg)
![Aline namorava outra travesti. É de Campinas, interior de São Paulo, e não mora mais no Casarão. O quarto em que dormia, serve também para atender clientes: o programa pode custar 50 reais, mas algumas chegam a fazê-lo por 20 ou até 10 reais](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa.jpg)
![A maranhense Nathielle, de 22 anos, anda pela sala ao sair do banho. Como a de muitas outras, sua passagem pelo Casarão foi rápida. Trocou a Lapa por São Paulo](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-2.jpg)
![No final da tarde, as travestis se reúnem no hall em frente aos banheiros, onde fumam e conversam enquanto aguardam a fila para tomar banho; várias delas circulam nuas](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-3.jpg)
![Julia tem 19 anos e temperamento impulsivo. Foi expulsa do Casarão depois de várias brigas. Sonhava em pôr silicone nos peitos, mas gastava seu dinheiro em drogas](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-4.jpg)
![Sheila nasceu na Bahia e passou vários anos na Europa, vivendo da prostituição. Ganhou dinheiro suficiente para virar arrimo de família. Não mora mais no Casarão da Lapa.](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-5.png)
![](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-6.png)
![Gabriela se produz para ganhar a noite. A mineira viveu praticamente um ano no Casarão, antes de se mudar, há quatro meses, para Copacabana, onde hoje mora e trabalha](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-7.png)
![Baiana com traços orientais, Tiazinha passa pelo corredor do Casarão antes de descer a escada rumo à rua; o quarto iluminado indica que alguém trabalhava lá dentro](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-8.jpg)
![Hoje com 20 anos, Shaw nasceu em Fortaleza e escolheu seu nome inspirada na ex-ginasta Shawn Jhonson, a quem conheceu nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio. Para fazer a foto na sala do Casarão, prendeu o cabelo longo numa touca e passou uma ``máscara prateada`` (expressão dela) no rosto: ``Quando estou triste, uso mais maquiagem``](https://piaui.folha.uol.com.br/wp-content/uploads/2013/05/corpos-lapa-12.jpg)
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