Vestido de batalha
Viva a sopa de lentilhas, sem ela não há poetas
Fabrício Corsaletti | Edição 82, Julho 2013
IMITAÇÃO DE CUMMINGS
eu amo você
por sua boca e por seu canino direito
pelo seu modo de morder as
palavras enquanto fala
eu amo você
por suas mãos grandes, independentes
por sua camiseta de renda emprestada
e pela maravilha dos seus olhos sem drama
eu amo você –
a flor adivinha o seu dia de vida?
a nuvem se agarra a uma ilusão?
prefiro uma rosa a viver para sempre
HOMENZINHOS DE CHAPÉU FEDORA
eu acredito que meus erros
formam um beco sem saída
onde fui dar fugindo dos gângsters
do meu desespero e antes que eu possa
retornar à avenida onde passeiam
as mulheres de saia
surgem os homenzinhos de chapéu fedora
com metralhadoras
apontadas para mim
o suor me encharca a camisa
e mal consigo respirar
eu levo a insônia a sério
FOTO
Inacinha em vestido de batalha
mostra como a perneira
casava com a alpercata –
grávida de oito meses
foi alvejada na nádega direita
por um soldado da volante
de João Bezerra
Gato com quem vivia
tentou carregá-la nas costas
mas abandonou-a e fugiu com medo
de também ser preso
na tentativa de resgatá-la
matou treze no caminho
–
chegou a cogitar a hipótese
de sequestrar a mulher do sargento
para fazer uma troca
–
um tiro na coluna vertebral
deixou Gato paralítico
da cintura para baixo
três dias depois ele morreu
Inacinha casou com um policial
apelidado Pé na Tábua
porque tinha o hábito de dirigir
em alta velocidade
na prisão deu à luz
um bebê que não resistiu
como era menor de idade
não enfrentou nenhum processo
judicial
Inacinha em seu vestido de batalha
tem me dado forças
para ser o que eu quiser
ODE À SOPA DE LENTILHA
1
viva a sopa de lentilha
sem ela não há poetas
viva a sopa de lentilha
que tem sustentado a mim
e a Angélica Freitas
viva a sopa de lentilha
que nos mantém longe dos vícios
que o dinheiro traz
viva a sopa de lentilha
que mostra que todo poeta
é um monge em potencial
viva a sopa de lentilha
que já me valeu um prêmio literário
recebido com terno emprestado
e a barriga cheia de sopa
de lentilha
2
em outros tempos vivi dias mastroianni
bebi dois carros na Vila Madalena
estive em Londres com Maria Flor
e em Paris com Mariana Rocha
mas agora que não trabalho fora
que pago as contas com o que a poesia dá
não posso mais sair de casa
senão a sopa queima
3
seguindo a moda Emily Dickinson
comprei um avental com bolso
onde os poemas aguardam
enquanto pico a cebola
4
é a sopa de lentilha
e não a leitura dos jornais
que me faz sonhar
com um mundo melhor
isto é, livre da sopa de lentilha
é a sopa de lentilha
e não a vontade de chegar aos cem anos
que me afasta do álcool
dos arrastões nos restaurantes
e da gordura trans
etc.
por isso disse e repito
viva a sopa de lentilha
viva o macarrão sem molho
e viva a sopa de lentilha