ILUSTRAÇÃO: CLAUDIUS CECCON_2013
Sobrou para o PSTU
Agremiação trotskista com apenas dois vereadores não escapou da fúria contra os partidos, mas já faz planos para o pós-revolução
Nonato Viegas | Edição 82, Julho 2013
O saldo foi de catorze militantes feridos, três com gravidade. Dois deles tiveram fraturas no braço esquerdo. O terceiro, atingido sob o olho direito, teve que ser submetido a uma cirurgia plástica. As baixas da manifestação de 20 de junho no Rio de Janeiro foram contabilizadas no dia seguinte por Cyro Garcia, presidente estadual do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, o PSTU. “Vamos assistir a essa violência parados? Não vamos! Lamentavelmente, a linha editorial dos grandes veículos tem alimentado esse sentimento antipartido, manipulado por gente que não quer a democracia”, discursou Garcia com a eloquência dos indignados, tendo diante dele um aglomerado de repórteres da imprensa burguesa.
Garcia, formado em direito, é professor de história numa universidade privada. Aos 58 anos, já foi candidato a vereador, deputado, prefeito e governador pelo PSTU. Nunca se elegeu pedindo votos “contra burguês”. O único mandato que exerceu, por dez meses, foi o de deputado federal, graças a uma suplência no PT – partido que ajudou a fundar e que deixou há 21 anos.
Nas eleições municipais de 2012, o PSTU teve 0,17% dos votos válidos no país. O partido só tem dois parlamentares eleitos: um vereador em Natal e outro em Belém. Sua prioridade, em todo caso, não são as migalhas de um sistema eleitoral que seu presidente nacional, o ex-metalúrgico José Maria de Almeida, considera enviesado em favor dos “partidos ligados a empreiteiras e grandes bancos”. É nas ruas que se faz a revolução, dizem seus filiados.
Nada disso, porém, serviu de argumento na passeata do dia 20, a maior no Rio desde a campanha das Diretas Já, há vinte anos. Naquela quinta-feira, 1 200 militantes de partidos de esquerda e movimentos sociais chegaram à avenida Presidente Vargas no fim da tarde. Participantes do Fórum de Lutas contra o Aumento da Passagem, que convocou o protesto, eles usavam camisetas vermelhas e tomaram um lugar à frente da multidão que, mais tarde, somaria mais de 300 mil pessoas.
As vaias não demoraram. Gritos de “sem partido” e “oportunistas” ecoaram de todos os lados. Na manifestação de três dias antes, que reunira 100 mil pessoas na avenida Rio Branco, os militantes já tinham enfrentado a hostilidade de manifestantes que bradavam que “o povo unido não precisa de partidos” – partidos, aliás, até hoje inspirados na primeira legenda organizada a partir de núcleos populares, a Social Democracia alemã.
Na Presidente Vargas, filiados do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e dos minúsculos PCB (Partido Comunista Brasileiro) e PCO (Partido da Causa Operária) optaram por não provocar o gigante com estandartes ou faixas. Mas o PSTU se recusou a abrir mão das bandeiras, e formou um cordão humano em torno do carro de som e dos militantes. “Em alguns contextos a violência contra o patrimônio é aceitável. Contra pessoas, nunca!”, disse um deles.
Quando a marcha rumava para a prefeitura, o bloco foi cercado por uma turma de jovens com bíceps pronunciados e cabeças raspadas. Estes eram incentivados por manifestantes que em tempos remotos seriam chamados de “massa atrasada”. Ao microfone do carro de som, Julio Anselmo, da Juventude do PSTU, pedia: “Sem fascismo.” À sua volta, os militantes tentavam argumentar que o partido era “diferente dos outros”, que todos estavam “do mesmo lado”, que lutavam “pelas mesmas coisas”, que vetar bandeiras era antidemocrático.
Não funcionou. A vanguarda corpulenta do grupo antipartidário partiu para cima dos camisetas-vermelhas com socos, pedras e morteiros. Os feridos tiveram que ser carregados, enquanto a polícia, que até então guardava a entrada da prefeitura, investia contra a multidão. Depois de quase dezoito anos de protestos nanicos contra a exploração, a adesão do Partido dos Trabalhadores à direita, a privatização e a especulação financeira, justamente agora que o povo lotou as ruas, o PSTU foi convidado a depor suas bandeiras.
Sensibilizado, um pequeno burguês desabafou no Facebook: “Não há protesto sem que um pobre diabo do PSTU esteja lá com sua bandeira, faça chuva ou faça sol. E agora, um monte de gente que nunca se preocupou com porra nenhuma, que nunca levantou a bunda (me incluo), vai vaiar e escorraçar os caras?”
Os diabos já não são tão miseráveis, na verdade. No Rio, o PSTU ainda ocupa uma sobreloja num prédio da Lapa, com seis salas pequenas e um salão maior decorado com um pôster de Karl Marx, uma mesa, cadeiras de plástico – algumas quebradas –, um bebedouro e uma geladeira. Mas as instalações modestas logo serão trocadas por um casarão em frente, e o partido até ajuda outras legendas da Liga Internacional dos Trabalhadores, uma das organizações formadas pelos sucessivos rachas dos seguidores de Leon Trotsky desde que ele foi assassinado por um agente de Josef Stálin. “Sabemos administrar o que temos”, disse Cyro Garcia.
Mesmo sem sucesso eleitoral, o PSTU passou a fazer mais barulho depois da criação da Central Sindical e Popular – Coordenação Nacional de Lutas, a Conlutas. Costela extraída em 2004 da Central Única dos Trabalhadores petista – como o próprio PSTU, formado por dirigentes da Convergência Socialista expulsos do PT –, a Conlutas reúne cerca de 200 sindicatos e movimentos sociais, incluindo de professores universitários e metalúrgicos a operários da construção. O partido também fundou a Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre, Anel, para competir com a UNE dirigida há anos pelo PCdoB (Partido Comunista do Brasil).
“Cara, Marx descreveu todo esse processo!”, entusiasmou-se Julio Anselmo, o comandante do carro de som na passeata fatídica, sentado à mesa da sede na Lapa. Diante de expressões de ceticismo, ele sorriu com condescendência, e citou Trotsky: “Todas as revoluções são impossíveis até que elas se tornem inevitáveis.”
Com 23 anos, Anselmo é estudante de filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e trabalha como estoquista de uma papelaria (o PSTU informa que não paga salário aos dirigentes, embora dê a alguns uma ajuda de custo). Foi criado no subúrbio carioca. Está no partido desde que cursava o ensino médio no Colégio Pedro II, uma escola federal. Ele contou que sua disposição política redobrou depois da morte do pai no chão de um hospital público, de infarto, em 2008.
Anselmo está convencido de que os protestos de junho são a prova de uma insatisfação generalizada, que põe o país às portas da revolução. Já faz planos para o dia seguinte, dizendo que a queda do socialismo soviético mostra que é preciso evitar a burocratização do poder. A democracia direta, ele afirma, é a chave contra o fracasso.
Não haverá riscos também, garantiu, de algo parecido com uma ditadura do proletariado. “Quando você rompe com o paradigma da competição selvagem, resta às pessoas a solidariedade, respeitando, inclusive, o direito à individualidade.”
Julio Anselmo representa o PSTU no Fórum de Lutas Contra o Aumento da Passagem, que em outubro de 2012 criou uma página no Facebook para organizar protestos contra o reajuste das tarifas de transporte no Rio. Programado na época para janeiro deste ano, o aumento acabou adiado na cidade e em São Paulo a pedido do governo Dilma, interessado em segurar a inflação.
Sete jovens de 16 a 23 anos estão à frente do Fórum. Além do PSTU, há representantes do PSOL e ativistas sem partido. Numa comunidade virtual fechada, eles se articulam com movimentos correlatos de outros estados. Para a comunicação com o público nacional, criaram uma página da Frente Nacional de Lutas em Defesa do Transporte Público.
A disputa entre os militantes partidários e os sem partido contamina a rotina do Fórum, que adotou como quartel-general o IFCS, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. As reuniões acontecem no Salão Nobre do edifício histórico no Largo de São Francisco, no Centro do Rio, construído no início do século XIX para sediar a Academia Real Militar.
Numa plenária em meados de junho, ainda antes da passeata na avenida Rio Branco, os sem partido reclamavam das pretensões político-partidárias de quem falava à imprensa em nome do Fórum. O recado era para um estudante de história, filiado ao PSOL, que havia se tornado fonte preferencial da TV Globo. Os com partido, do seu lado, reivindicavam o know-how de quem está há anos no ramo dos protestos, e se diziam injustiçados pelos ataques.
Depois que os primeiros sintomas da rejeição popular aos partidos se manifestaram, outra assembleia no IFCS reuniu 500 pessoas, no dia 18. O objetivo era aparar as arestas e firmar posições diante da imprensa – que na avaliação geral queria empurrar o movimento para a direita –, do prefeito Eduardo Paes e do governador Sérgio Cabral.
Compareceram, além de estudantes e manifestantes anônimos, representantes da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil e de sindicatos, incluindo o dos motoristas e cobradores de ônibus. A entidade dos arqueólogos ofereceu sua ajuda nos protestos – quando sua presença foi anunciada, os participantes da plenária se entreolharam, espantados.
Cento e vinte pessoas se inscreveram para falar. Ao microfone, elas se revezaram em críticas ao “governo ditatorial” de Cabral, ataques à violência da Polícia Militar e congratulações pelo sucesso da marcha. Entre um “Mostramos a eles a nossa força” e outro “Não vamos deixar a mídia burguesa nos dividir”, um rapaz gritou do fundo: “Vamos pedir o impeachment de Dilma!” A maioria respondeu com vaias.
Nada passou sem votação. Depois de uma questão de ordem sobre a falta de conforto, foram necessários 25 minutos para que saísse a decisão de que a reunião seria realizada ali mesmo no salão, com a retirada de cadeiras para ampliar o espaço. Quando a presença da mídia foi detectada, se discutiu se os repórteres poderiam ou não gravar o encontro (não poderiam) e se deveriam ou não ser convidados a retirar-se (não foi o caso).
Foram seis horas e meia de discussão. A assembleia concluiu que a preocupação dos sem partido era pertinente, mas que seria antidemocrático proibir símbolos partidários. Também entendeu que “grupos organizados” tramavam uma possível ofensiva contra a “liberdade de manifestação das esquerdas”. Foi aí que se decidiu formar o cordão humano para proteger os militantes.
No dia seguinte ao episódio da agressão na Presidente Vargas, seguida de uma investida policial que obrigou manifestantes a se refugiarem no prédio do IFCS, o Fórum convocou a imprensa para uma entrevista. Os jornalistas esperaram quatro horas, enquanto os dirigentes se reuniam a portas fechadas. Gabriela Machado, 17 anos, sem partido, finalmente saiu para falar pelo grupo.
Ao lado de uma moça cuja blusa trazia a inscrição “A Globo apoiou a ditadura”, Gabriela leu a nota olhando para a câmera da emissora. Disse que “o povo provou que quem luta conquista” depois que várias cidades suspenderam o reajuste do transporte. Ela listou as próximas reivindicações do Fórum: transporte 100% público; a não privatização do Maracanã; o fim das remoções nas obras para a Copa; mais investimentos em saúde e educação e menos nos estádios; e a democratização dos meios de comunicação.
O clima de mal-estar entre os sem partido e os militantes partidários foi então dado como superado. Era necessária a união “diante das circunstâncias, como o risco de golpe contra a presidente Dilma Rousseff e o conluio, mesmo que não deliberado, entre a polícia e os grupos radicais de direita”. José Maria de Almeida identificou-os como skinheads e neonazistas. No Rio também havia milicianos infiltrados, acusou.
No dia 25, a última terça-feira de junho, o encontro no IFCS atraiu mais de 1 mil pessoas, que se espalharam pelo Largo de São Francisco. No meio da massa, militantes de legendas da base governista – PT, PDT e PCdoB – distribuíam panfletos. Uma representante da UNE, ausente no início dos protestos, conseguiu um lugar à mesa da assembleia. Quando um sem partido questionou sua presença, foi vaiado e ouviu gritos de “democracia”. Dois sem partido anunciaram que estavam dando um tempo na liderança do movimento, alegando “desgaste e estresse”.
Na sede do PSTU, Julio Anselmo, confiante, via os contratempos como as dores do parto de uma nova época. Seus planos para o futuro foram interrompidos quando o iPhone sobre a mesa tocou. Pediu desculpas, não atendeu e prosseguiu. Pouco depois, interrompeu a conversa para perguntar se incomodaria caso fumasse perto da janela. Diante da resposta negativa, puxou o maço de Hollywood.
Haverá produtos da Apple no Brasil pós-revolução? Sim, claro, respondeu. “Nós vamos produzir. Temos as melhores cabeças do mundo e tecnologia para fazer melhor ainda. Não precisaremos importar nada. O que não houver aqui, criamos. O que houver, expropriamos.” Mas o celular, explicou, não foi ele quem comprou. “Ganhei do meu irmão.”
Os cigarros serão distribuídos pelo Estado, Anselmo continuou, rindo. Fez uma pausa, olhou para o assessor de imprensa, voltou a fitar o repórter e corrigiu-se: “Racionado, mas distribuído.” Ele não esmoreceu diante da hostilidade contra o PSTU nas ruas. O partido está mais forte do que nunca, disse. “Verei a revolução. Acredite.”
Depois de duas horas de conversa, Julio Anselmo se levantou, tirou uns trocados da carteira, foi até a geladeira, colocou o dinheiro na caixinha sobre ela e apanhou uma Coca-Cola. Sim, até os revolucionários sentem sede.
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