ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
O barato de Hannah
Pela legalização da maconha, jovem americana se muda para Montevidéu
Claudia Antunes | Edição 84, Setembro 2013
Se tudo der certo, no ano que vem os uruguaios interessados terão quatro opções para obter seu cigarro de maconha dentro da lei. Os que dispuserem de espaço em casa poderão plantar até seis pés de cannabis para consumo próprio. Clubes de cultivo, com no mínimo quinze e no máximo 45 pessoas, também terão autorização para o plantio, em quantidade proporcional à de sócios. A terceira possibilidade será a compra em farmácias de no máximo 40 gramas mensais por usuário, que deverá ser maior de 18 anos e se registrar num cadastro nacional. Finalmente, quem precisar da erva por razões de saúde poderá adquiri-la com receita médica.
Aprovado no fim de julho pela Câmara dos Deputados e prestes a ser votado pelo Senado, o projeto de lei que legaliza e regulamenta a produção, o comércio e o consumo da maconha no Uruguai é o primeiro a reunir num só pacote, e em nível nacional, inovações que até agora haviam sido adotadas isoladamente por alguns estados americanos e países europeus. Com vinte páginas e 44 artigos, ele cria o Instituto de Regulação e Controle de Cannabis, IRCCA, e é detalhista a ponto de especificar que as “extremidades floridas com ou sem frutos” – a marijuana propriamente dita – da planta não poderão ser prensadas.
Por sua ousadia, o projeto uruguaio virou a menina dos olhos dos militantes de um movimento transnacional cada vez mais articulado que aponta os efeitos perversos da “guerra às drogas”. Entre esses ativistas está Hannah Hetzer, da ONG americana Drug Policy Alliance. Uma moça de cabelos louros, olhos azuis e ar bem-comportado, ela trocou a agitada Nova York pela sonolenta Montevidéu para zelar pelo sucesso da cria do presidente José Pepe Mujica.
Aos 78 anos, Mujica já disse que nunca experimentou um baseado, mas não precisou de aditivos para concluir que havia uma incoerência na legislação uruguaia, que não pune o consumo de drogas, mas mantém a produção e a venda ilegais. No ano passado, seu governo organizou uma série de conferências sobre o tema. Hannah, de 26 anos, foi convidada a falar da experiência do uso médico da maconha nos Estados Unidos (a erva é eficaz, por exemplo, contra as náuseas causadas por quimioterapia). Àquela altura, ela também estava envolvida nos referendos que legalizaram o uso recreativo da cannabis nos estados do Colorado e de Washington.
As conferências serviram de base para que os congressistas da Frente Ampla, a coalizão de esquerda que governa o Uruguai desde 2005, redigissem o projeto agora em votação. Hannah voltou a Montevidéu em fevereiro, desta vez para ficar. Dois meses depois, ela ajudou a criar o grupo Regulación Responsable, reunindo associações e personalidades locais em apoio à nova legislação. O grupo tem feito campanha na internet e na tevê, coisa que o governo não podia legalmente fazer.
Ainda assim, a pesquisa mais recente constatou que só 26% dos uruguaios apoiam o projeto de lei, com 63% contra e 11% de indecisos. Contrariando o senso de autopreservação atribuído aos políticos, esses números não impediram que todos os cinquenta deputados governistas votassem a favor da proposta. “O Uruguai é bastante excepcional, sempre esteve na vanguarda de políticas progressistas”, explicou Hannah. Mais objetivamente, o estoicismo dos frenteamplistas pode ser atribuído à tradição local de fidelidade partidária e ao sistema de votação em lista fechada (no qual o eleitor tende a endossar o partido de sua preferência mesmo que divirja de políticas pontuais).
Filha de um austríaco e de uma americana, Hannah Hetzer viveu até os 23 anos na Europa, e estudou economia e política na Universidade de Warwick, no Reino Unido. Ela conta que descobriu a verdade sobre os narcóticos quando estagiou no Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. “Vi como é injusto punir agricultores sul-americanos por produzirem uma substância que é consumida principalmente em outros países”, disse, pedindo desculpas por seu entusiasmo ao desfiar uma longa lista de danos colaterais do proibicionismo, da violência no México à superpopulação carcerária nos Estados Unidos.
“Ninguém tem a ilusão de que legalizar a maconha resolverá todos os problemas ligados ao tráfico. Além das outras drogas, ainda haverá um pequeno mercado paralelo da cannabis, só que, em vez de controlar 100%, controlará 10% ou 20%”, continuou Hannah. Pela estimativa do governo uruguaio, o consumo anual no país chega a 22 toneladas. O projeto de lei prevê que o dinheiro do licenciamento da produção e da venda será usado em programas de prevenção do “uso problemático” da cannabis.
Discreta, Hannah não é o rosto visível do Regulación Responsable. Mas políticos de oposição falam em “ingerência externa” no país, citando também o financiamento da Fundação Open Society, criada pelo megainvestidor George Soros, à campanha pró-legalização. “O próprio presidente reconheceu que o Uruguai está se oferecendo como um laboratório para a comunidade internacional”, disse o deputado Gerardo Amarilla, do Partido Nacional, para em seguida lamentar: “Infelizmente não tem havido muita reação a isso. Para mim é um problema, mas o uruguaio é muito cosmopolita.”
O experimento do pequeno Uruguai (3,3 milhões de habitantes, pouco mais da metade da população do Rio de Janeiro) deverá ter mesmo grande influência na reunião convocada pela ONU para rediscutir, em 2016, as convenções internacionais sobre drogas, marcadas pela ênfase na repressão. É por esse e por outros motivos (como se verá logo) que Hannah planeja continuar em Montevidéu até pelo menos o fim de 2014. “Vou ficar até a implementação da lei, que é até mais importante do que a aprovação.”
Ela sente falta da diversidade de Nova York, perto da qual Montevidéu é um pouco “calma demais”. Mas elogia a hospitalidade dos uruguaios e já namora um local. “É alguém com quem trabalho, e dividir isso tem sido muito divertido. Não há maneira melhor de conhecer um país do que ter um namorado nacional.”