ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
A jiboia e o bugio
Uma bióloga de Rondônia flagra a natureza em ação
Bernardo Esteves | Edição 85, Outubro 2013
Este ano, a bióloga Erika Patrícia Quintino passou boa parte dos seus dias enfurnada num fragmento de floresta amazônica no município de Rolim de Moura, em Rondônia. Seu objetivo era acompanhar de perto um bando de macacos de pelagem alaranjada e rabo comprido que mora ali. Ela acordava cedo para chegar à floresta por volta das seis da manhã e não arredava o pé até o sol se pôr.
Os animais que ela estuda são bugios-vermelhos da espécie Alouatta puruensis, assim chamados porque vivem na região do rio Purus, que nasce no Peru e deságua na margem direita do Solimões. As fêmeas adultas têm pouco mais de meio metro de altura, e os machos chegam a quase 1 metro. Mas isso é o que os estudiosos supõem: quase não há informações sobre a espécie na literatura científica. Por isso a bióloga passou meses observando o cotidiano desses animais.
Os bugios estudados por Erika vivem em pequenos grupos. Ela estava acompanhando um bando de seis animais – um macho, duas fêmeas, dois adolescentes e um filhote. Quando ia a campo, munida de um binóculo, uma câmera fotográfica e um caderninho de capa preta, a bióloga anotava tudo que lhe parecesse importante: o que os bichos faziam durante o dia, para onde iam, do que se alimentavam. Não podia desgrudar o olho. “Aonde eles iam eu ia atrás”, disse.
Numa manhã de fevereiro, Erika estava sentada no banquinho de alumínio que levava para descansar quando os bugios lhe dessem sossego. O grupo repousava numa árvore próxima da pesquisadora, a 7 metros de altura. As duas fêmeas haviam se afastado um pouco do bando. Era quase meio-dia quando Erika ouviu um grito vindo do alto. Olhou naquela direção e viu uma cobra roliça de uns 2 metros terminando de se enroscar numa das fêmeas do grupo de bugios. Era uma jiboia.
A outra fêmea bem que tentou acudir a companheira. “Ela começou a gritar e bater na cobra, para ver se soltava a presa”, contou Erika. Quando notou que seus protestos não surtiriam efeito, a primata se afastou para assistir do galho de uma árvore vizinha ao destino inelutável da colega. Os outros animais do grupo continuaram dormindo.
Para matar suas presas, as jiboias se enrolam em volta delas e apertam-nas com força. Não soltam as vítimas enquanto sentirem sua respiração. Não chegam a quebrar suas vértebras, mas a compressão da caixa torácica leva à parada respiratória e cardíaca. O bugio provavelmente morreu em questão de minutos, mas a cobra manteve o abraço mortal por mais de meia hora, segurando-o de ponta-cabeça.
No nível do solo, a uns 30 metros da árvore onde a jiboia aguardava para fazer sua refeição, Erika teve tempo de acionar sua câmera semiprofissional com zoom de trinta vezes. Tirou dezenas de fotos do processo e filmou trechos do ataque. Não que fosse uma cena repleta de ação. “Os movimentos da cobra eram muito lentos, então nem precisei filmar o tempo todo”, explicou.
A coisa ficou mais animada depois que ela começou a engolir o bugio pela cabeça. Ainda assim, foi um espetáculo que exigiu contemplação paciente – a cobra levou uma hora e dezesseis minutos para degluti-lo por inteiro. Graças ao maxilar inferior flexível e à ossatura que lhe permite abrir a boca a quase 180 graus, a jiboia é capaz de devorar animais à primeira vista incapazes de passar pela sua boca. Uma foto tirada por Erika mostra um close da serpente no meio do processo, a bocarra envolvendo o macaco já na altura da barriga. Outra imagem, tirada ao final do festim, mostra a cobra com a silhueta abaulada.
A jiboia demoraria alguns dias até digerir uma presa como aquela, com pelo menos 4 quilos. Erika contou que, por certo tempo, a serpente ainda foi vista na árvore onde havia atacado o bugio. “No terceiro dia ela sumiu.”
Erika Quintino nasceu em Rolim de Moura e tem 28 anos. Estudou biologia numa faculdade da cidade vizinha de Cacoal, mas decidiu fazer mestrado em zoologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a 2 300 quilômetros de casa. Foi estudar os bugios por sugestão do seu orientador, o especialista em primatas Júlio César Bicca-Marques.
Na mesma noite em que a cobra devorou o bugio, Erika escreveu para o orientador para relatar o episódio. “Encontrei uma jiboia da pior forma possível, atacando um dos meus bichinhos”, escreveu ela. Bicca-Marques entendeu a comiseração da aluna, mas achou a notícia formidável. Tentou consolá-la, chamando a atenção para a importância do registro que ela havia feito: “Perdeste um objeto de estudo, mas ganhaste uma publicação.”
O orientador sabia que os dois não teriam dificuldade para emplacar um relato do caso numa revista especializada. Nunca antes um pesquisador havia registrado o ataque de uma serpente a um primata de grande porte no continente americano. A jiboia se alimenta de aves, roedores e outros pequenos mamíferos. Os pesquisadores desconfiavam que macacos do porte dos bugios podiam fazer parte do seu cardápio, mas faltava a prova. “É bem raro que eventos como esse sejam registrados, porque a presença do pesquisador afugenta o predador”, explicou Bicca-Marques. “Erika deu uma sorte muito grande.”
A descrição do ataque foi publicada em agosto na revista Primates, num artigo de título sóbrio: “Predação de Alouatta puruensis por Boa constrictor.” O trabalho é o primeiro publicado por Erika – e não deve ser o último. “Não sabemos praticamente nada sobre a ecologia e o comportamento desses bichos”, disse Bicca-Marques. “Qualquer resultado que saia do estudo dela será inédito.”
Assim que viu o bugio atacado pela jiboia, Erika não pôde evitar um sentimento de compaixão. Tinha se afeiçoado aos animais que estava estudando. “Depois pensei que não devemos ter pena”, contou a bióloga. “É a lei da natureza, a cobra também precisa sobreviver.”