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questões cinematográficas

Eu, Daniel Blake – corações despedaçados e revolta

“Eu, Daniel Blake, sou um cidadão, nada mais, nada menos.” Essa é a frase final de Eu, Daniel Blake, filme de Ken Loach vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado. É um arremate tão apelativo quanto eficaz – eficácia dramática atestada pelo impacto que causa, deixando o espectador meio aturdido sob efeito da autodefinição lapidar

Eduardo Escorel | 20 jan 2017_14h09
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“Eu, Daniel Blake, sou um cidadão, nada mais, nada menos.” Essa é a frase final de Eu, Daniel Blake, filme de Ken Loach vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado. É um arremate tão apelativo quanto eficaz – eficácia dramática atestada pelo impacto que causa, deixando o espectador meio aturdido sob efeito da autodefinição lapidar.

Hoje com 80 anos, já premiado antes com a Palma de Ouro por seu filme Ventos da Liberdade, de 2006, o veterano Loach foi claro na conferência de imprensa, em Cannes, a respeito do estilo de Eu, Daniel Blake:

“Encontrar o tom certo para um filme é realmente importante. Para esse, nós sentimos que a história era tão forte que tínhamos que ser muito simples, muito claros, muito econômicos, e que o filme não precisava de qualquer embelezamento. Então, Robbie [Robbie Ryan, diretor de fotografia]…nós procuramos encontrar um estilo que fosse absolutamente claro, e simples, e sem adornos, sem qualquer movimento estranho ou com qualquer coisa que distraísse, impedindo de captar a essência das pessoas em frente à câmera, e de descrever a situação delas com economia e simplicidade. Há uma citação de Bertold Brecht que eu creio ser muito boa e nos guiou em mais de uma ocasião e …, em inglês as palavras são: ‘And I always thought the simplest of words must suffice. When I say what things are like it will break the hearts of all.’ [‘E eu sempre pensei que as palavras mais simples devem bastar. Quando eu digo como são as coisas, partirá o coração de todos.’] E creio ter sido isso que nós tentamos fazer. Dizer como são as coisas, por que não apenas parte seu coração, mas deveria lhe fazer sentir raiva.”

<i>Eu, Daniel Blake</i>
Eu, Daniel Blake

A citação é longa, mas descreve de forma precisa o pressuposto neorrealista do cinema de Loach – clareza, simplicidade, economia e ausência de adornos, além do elenco de atores não-profissionais, filmagem feita em ordem cronológica e em locações reais, tudo a serviço do propósito deliberado de comover o espectador e conscientizá-lo das iniquidades do mundo.

Não é por acaso que Loach se considera devedor de Ladrões de bicicleta (1948), de Vittorio de Sica, Amores de uma loira (1965), de Milos Forman e A batalha de Argel (1965), de Gillo Pontecorvo. Sua extensa filmografia atesta, de fato, a marca deixada em Loach por esses filmes, notória desde Cathy Come Home (1966), famoso tele-filme sobre a falta de moradia, visto por 25% da população da Grã-Bretanha, e o extraordinário Kes (1969), seu segundo longa-metragem, sobre a relação de um adolescente com um falcão (kestrel, em inglês. Daí o título.). Cinquenta anos antes, o desespero da jovem noiva de Cathy Come Home (Carol White) prefigura o de Dan (Dave Johns), o marceneiro desempregado de Eu, Daniel Blake.

<i>Cathy Come Home</i>
Cathy Come Home

Foi com Ladrões de bicicleta que Loach diz ter entendido “que cinema podia ser sobre pessoas comuns e seus dilemas. Não era um filme sobre estrelas, ou riquezas ou aventuras absurdas. Eu consegui ver o cinema de outra forma, fora da tolice de Hollywood.” (entrevista completa disponível aqui). É também à linhagem de Ladrões de bicicleta que se pode atribuir o sentimentalismo latente, prestes a se manifestar, de Eu, Daniel Blake e outros filme de Loach.

<i>Kes</i>
Kes

Na conferência de imprensa, em Cannes, ao citar de memória o poema E eu sempre pensei, de Brecht, Loach deixou de fora os dois versos finais e fez sutis, mas significativas alterações no original, ao menos tomando como referência versões publicadas em inglês. Enquanto Loach sugere a intenção de “partir o coração de todos” ao dizer “como são as coisas”, os primeiros versos de Brecht são peremptórios – descrevem um fato: “[…] When I say what things are like/Everyone’s heart must be torn to shreds. […]” (“[…] Quando digo como são as coisas/ o coração de todos deve ser despedaçado.”) Para Loach, “dizer como são as coisas”, além de partir o coração, “deveria enraivecer”, o que soa pueril frente à palavra de ordem contida nos versos finais de Brecht, omitidos por Loach: “[…]When I say what things are like/ Everyone’s heart must be torn to shreds./ That you’ll go down if you don’t stand up for yourself/Surely you see that.” (“[…] Quando digo como são as coisas/O coração de todos deve ser despedaçado./ Que você afundará se não se defender/Com certeza você enxerga isso.”). Entre a raiva mansa, de Loach, e a reação de defesa para não afundar, em Brecht, há uma diferença considerável.

Loach valoriza a força da história, acima de tudo, em Eu, Daniel Blake. Para ele, a linguagem deve ser transparente e não deve interferir no enredo – postura que resulta em privilegiar o assunto do filme, em detrimento da forma. Cineasta engajado em defesa dos humilhados e ofendidos, Loach professa o ideal de fazer filmes a serviço de causas meritórias sem problematizar o fundamento ilusório do cinema que é a sua própria linguagem.

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