ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
O homem-celular
O conceito colombiano de orelhão
Cristina Tardáguila | Edição 88, Janeiro 2014
Todos os dias, por volta das oito da manhã, Carlos Alberto Rivas López monta uma barraquinha de madeira azul em frente à Prefeitura de Medellín e por lá permanece até que o sol se ponha (ou que a chuva o afugente). Quatro anos atrás, sua mãe, Argemis López Murillo, foi às compras: adquiriu aparelhos celulares ordinários, inseriu neles chips pré-pagos das três operadoras da Colômbia, e cantou a pedra: dali em diante, Carlos passaria a trabalhar na rua revendendo minutos de celular.
O jovem mestiço de apenas 15 anos e dentes assustadoramente espaçados engrossou assim o contingente colombiano de homens-celulares, releitura local dessa espécie em extinção, o telefone público. Apesar da concorrência ferrenha das empresas de telefonia e do fato de existirem no país 47 milhões de celulares para 47 milhões de habitantes, o meninote é capaz de oferecer ligações a um precinho mais camarada por saber operar como ninguém pequenas discrepâncias entre tarifas de diferentes operadoras. É o tipo de coisa que deixaria qualquer economista de Chicago salivando.
Numa quinta-feira de novembro, o vaivém em frente à Plaza de la Libertad, onde está a Prefeitura de Medellín, era frenético. Burocratas engravatados corriam para reuniões; jornalistas, agoniados, esperavam por políticos famosos; e cidadãos comuns suando em bicas buscavam regulamentar toda sorte de documentos, de carteiras de identidade a títulos de propriedade. Eram todos clientes potenciais de Carlos.
O sol açoitava a calçada de cimento da carrera – ou rua – 53A, e Carlos tinha aberto uma sombrinha de plástico para se proteger do calor. Vestia um bermudão de tactel vermelho e camiseta regata. Não fosse por seu espanhol de vogais abertas – típico da região do Caribe –, se pareceria com um menino de rua do Rio de Janeiro, desses que vendem bala no sinal.
Colado a um cartaz em que se lia “Minuto celular: 200 pesos”, Carlos fisgou quatro clientes em quinze minutos. Juan Llangareate, um descendente de equatorianos com cabelos esculpidos a gel, foi o primeiro deles. Falou por dois minutos e um segundo, mas teve que desembolsar o valor de três. “A fração do minuto custa o mesmo que um minuto inteiro”, explicou Carlos, com certa empáfia. “Son 600 pesos, señor.”
Llangareate não se queixou. Havia marcado um encontro com um companheiro de trabalho às 11h30 e ainda estava a quilômetros do local aprazado. O trânsito caótico o impediria de chegar na hora. “Eu tenho dois celulares”, disse ele, arrancando da mochila abarrotada os aparelhos numa tentativa de explicar por que recorrera a Carlos. “Um deles é da Claro, que eu nunca uso porque me cobram 380 pesos por minuto, e o outro é da Tigo, que me custa 190 pesos o minuto, mas que hoje está fora de combate porque não tenho os mil pesos necessários para comprar o cartão de recarga mínima.”
Depois dele, foi a vez do auxiliar administrativo Daniel Ospín, um homem de nariz pontudo e fala apressada, lançar mão dos serviços de Carlos. Sua urgência era contatar um advogado, assunto compreensivelmente delicado sobre o qual não quis se estender. Preferiu explicar a razão pela qual recorria aos serviços telefônicos em pauta. “Isso aqui é Medellín, señora. Até tem orelhão por aí, mas as moedas são engolidas sem completar a chamada. Deve ter uma máfia especializada nisso”, praguejou.
Afora aparelhos, chips e paciência, é necessária certa delicadeza de modos para trabalhar como homem-celular. A quem duvidasse, bastava acompanhar a terceira transação comercial do dia. Uma senhora chamada María Dolores se aproximou da barraquinha com olhos vermelhos, marejados. Carlos estendeu-lhe o telefone e logo cobriu as orelhas com monumentais fones de ouvido.
María Dolores falou por três minutos e dezessete segundos. Pagou por quatro. Tratou de uma briga de herança que a colocava em pé de guerra com a irmã. Isolado do mundo, Carlos nada ouviu. “O cliente tem que ter privacidade!”, explicou. “Quando vejo que o assunto é sensível, ligo meu reggaeton, meu rap, minha salsa ou meu vallenato e me afasto para deixar que a pessoa fale em paz.”
Nas calçadas que circundam a Prefeitura de Medellín, pelo menos outros dois homens-celulares ofereciam seus serviços. Haviam dividido o território, tal como flanelinhas nas grandes cidades brasileiras. A área de atuação de um terminava numa esquina, a partir da qual o negócio era do outro. Desentendimentos acontecem. Dois meses antes, a senhora que ficava na carrera 57 tentou fazer dumping, reduzindo a tarifa de seu minuto para 150 pesos (18 centavos de real). Os demais não gostaram. “Só baixamos o preço juntos”, disse Carlos, soberbamente alheio ao conceito de cartel. “Mas, como cada dia tem mais celulares na Colômbia, o preço está caindo. Me lembro de quando cobrávamos 400 pesos (48 centavos de real).” Naquela tarde de quinta-feira, Carlos vendeu 31 ligações ou 202 minutos. Levou para casa 40 400 pesos, em torno de 48 reais.
Como todo prestador de serviço atilado, ele tem agudo senso crítico em relação às fragilidades de sua operação. Primeiro, seus clientes não podem mandar torpedos (“Minha mãe não entende como funciona e não me deixa vendê-los”). Depois, “e-mail também não pode”, já que ele não trabalha com smartphones. Em terceiro lugar, não faz ideia se alguém já abusou fazendo ligações para o exterior – em nome da privacidade, Carlos permite ao cliente que disque o número desejado –, o que sem dúvida roeria a sua margem de lucro. E, por fim, o maior de seus temores: entregar o aparelho a um desconhecido e vê-lo sair em desabalada carreira com o dito-cujo na mão.
“Tem gente que usa correntes de metal para amarrar os celulares às barraquinhas ou ao próprio corpo. Se for preciso eu faço, mas não gosto da ideia. Vou ficar estranho, né? Parecendo um polvo…”