ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Ficção no cárcere
Leituras sob segurança máxima
Nina Rahe | Edição 89, Fevereiro 2014
A tarde avançava calorenta em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, mas Márcio Akira continuava recostado em sua cama de concreto. Suas pernas repousavam em cima do colchão à prova de fogo e as costas se acomodavam sobre travesseiros. De calça comprida e camiseta – um uniforme de cor azul-bebê –, o músico de 40 anos terminava as 448 páginas de Inferno, sexto romance de Dan Brown. “É entretenimento”, disse, antes que alguém pudesse pensar em alguma metáfora ou pôr em dúvida seu refinamento estético. Ele definiu o autor de O Código Da Vinci como “um Sidney Sheldon melhorado”. Brown nunca figuraria em sua lista de futuras releituras, no momento com mais de sessenta títulos.
Naquela semana de outubro, Akira abriu mão por dois dias do banho de sol. Preso ao Inferno, abdicou do contato social e da dose de vitamina D. Levar o romance para o pátio da Penitenciária Federal de Campo Grande estava fora de cogitação; a conversa dos colegas atrapalharia sua concentração.
Os livros só costumam escapar das celas individuais quando provocam debate, como aconteceu com o romance místico A Cabana, do canadense William P. Young. No banho de sol, os presos se dividiram. Uns achavam que a história do pai chamado a conversar com Deus depois do assassinato da filha representava um sonho do protagonista; outros apostavam que o encontro de fato tinha acontecido. Akira jogou no primeiro time. Estava convicto de que o evento transcendental não passou de delírio.
Magro, Akira usa óculos de aros finos e quadrados sobre os olhos discretamente puxados. Está há quatro anos e nove meses no presídio de segurança máxima, onde cumpre pena por homicídio e espera um julgamento por tráfico de drogas. Nesse período, leu quase 500 livros, pouco menos de dois por semana. Sempre que a leitura agrada, tenta voltar ao romance. “Gosto de reler, aprendi com Nelson Rodrigues”, disse. Em outubro, esperava pela releitura de Os Miseráveis, que conta a história do ex-presidiário Jean Valjean.
A cada três meses, os detentos conferem a lista atualizada do acervo e anotam em uma ficha tudo o que desejam ler. O rol, eclético, mistura clássicos literários com destaques das listas de mais vendidos. Os presos recebem três exemplares por semana. Nem sempre aquilo que gostariam de ler primeiro chega antes, uma vez que, por alguma idiossincrasia burocrática, o pedido e a entrega devem seguir a ordem dos números atribuídos a cada livro na listagem.
Akira esperou semanas por Guerra e Paz. Sabia que é o melhor romance de Tolstói, “acima de Anna Kariênina e tudo”. Quando colocou as mãos no clássico, acabou frustrado. O texto era condensado, “um livrinho de apenas 300 páginas, que empobreceu muito o enredo”. Assim que for libertado – o que ele calcula que deve acontecer daqui a três anos, ou antes, caso seu pedido de condicional seja aprovado –, o calhamaço sem cortes será sua primeira aquisição.
Márcio Akira foi preso em 1998 pelo assassinato da mãe adotiva, um crime que chocou Campo Grande. Antes, chegou a cursar um ano da faculdade de letras. A música, no entanto, tomava quase todo o seu tempo. Ele tocava na banda O Cabelo e As Moscas, que apresentava canções dos Beatles e composições próprias. “Nada que valha a pena lembrar”, desconversou o detento, que não gosta de falar do passado.
Condenado a dezoito anos de prisão, Akira tinha cumprido oito anos em regime fechado e quase dois em semiaberto quando fugiu para a Bahia. Foragido, fazia apresentações em bares. Não demorou a ser capturado de novo, em Belém, agora sob a acusação de narcotráfico.
O músico é o único dos mais de 150 detentos da penitenciária federal que participou das treze rodadas do projeto Remição pela Leitura, lançado em 2010 pelo Ministério da Justiça. O número de participantes por rodada costuma variar entre 50 e 60. A cada livro lido e resenhado em até trinta dias, os presos ganham uma redução de quatro dias na pena, desde que o relatório de leitura ganhe no mínimo a nota seis.
Entre as obras que avaliou, ele considerou Vidas Secas e O Pequeno Príncipe excelentes. Descobriu que autoajuda não é o seu forte, dando nota apenas regular para O Vendedor de Sonhos e O Futuro da Humanidade, de Augusto Cury. O humor de Verissimo também não fez sua cabeça – ele tachou de “péssimo” Os Espiões. Apesar de preferir narrativas em terceira pessoa, aprovou O Apanhador no Campo de Centeio. “Eu e John Lennon gostamos muito do livro”, disse, sem mencionar que o assassino do beatle foi encontrado com o romance de J. D. Salinger nas mãos.
Quando começou a escrever sobre O Caçador de Pipas, do afegão Khaled Hosseini, Akira já o havia lido duas vezes. Talvez passasse no teste sem a terceira leitura, mas o resultado não ficaria do seu agrado. “Soaria falso, artificial”, explicou. Seu boletim é repleto de notas nove. Ganhou um dez ao avaliar O Menino do Pijama Listrado, do irlandês John Boyne. Na resenha, ele comparou a cerca que separa o garoto judeu do menino filho de nazista com as ideologias que dividem a sociedade atual.
O presidiário disse que tinha vontade de escrever textos parecidos com os das revistas. Começar criando uma atmosfera, destrinchando aos poucos o enredo, na espera de um momento oportuno para citar o nome do livro. Não pode. O projeto exige que a referência bibliográfica, com título, autor e ano, venha no início da resenha. A imposição, desculpou-se, o impede de desenvolver um estilo.
Akira faz planos de ler ao menos um livro por mês quando estiver fora da prisão. Além de Guerra e Paz, quer comprar 1Q84, do japonês Haruki Murakami. Ele leu sobre a trilogia e ficou curioso com o tom “psicodélico” do encontro entre um professor de matemática aspirante a escritor e uma assassina profissional que acredita viver num universo paralelo.