ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Unidos pela língua
Uma cidade cosmopolita no Ceará
Bernardo Esteves | Edição 91, Abril 2014
É impossível circular por Redenção sem esbarrar num marco alusivo ao fim da escravidão. Há um busto da princesa Isabel, o Monumento Negra Nua, o Memorial da Liberdade e até o supermercado Abolição. Em 1883, cinco anos antes da assinatura da Lei Áurea, a cidade cearense foi a primeira do país a alforriar os 116 escravos que ainda havia ali. Àquela altura, o número de cativos nas províncias do Nordeste vinha diminuindo rapidamente – grande parte tinha sido vendida para trabalhar nas fazendas de café em São Paulo.
Por causa do simbolismo, Redenção foi escolhida para sediar uma universidade federal concebida para acolher alunos de todos os países falantes da língua portuguesa, em especial os da África. A Unilab – sigla para Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – foi criada por uma lei de 2010. As aulas começaram no ano seguinte e, de uma hora para outra, o município de 27 mil habitantes virou uma cidade universitária de vocação multicultural.
A Unilab tem hoje pouco mais de 1 500 alunos em seus sete cursos presenciais de graduação, dos quais quase 400 são estrangeiros. A maioria vem da África lusófona – Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe –, mas há também estudantes do Timor Leste, na Ásia. A seleção dos alunos de fora é coordenada pelo Itamaraty e prevê um exame feito na embaixada brasileira.
O campus da Liberdade, o principal da Unilab, é um prédio baixo de muro amarelo à beira da estrada que liga Redenção a Fortaleza, 55 quilômetros ao norte. Logo na entrada vê-se um grande pátio e um espaço coberto com mesas ocupadas por alunos em volta de seus laptops, a discutir trabalhos e assuntos menos acadêmicos. Numa tarde de fevereiro, a maioria era de estudantes negros, em contraste com o que se vê nos corredores de outras universidades brasileiras.
A visão dos alunos reunidos no pátio “é de impactar o coração”, segundo a reitora da Unilab, a pedagoga e cientista social Nilma Lino Gomes. Especializada em questões raciais e de gênero, ela é a primeira mulher negra à frente de uma universidade federal. “É muito diferente a cara dessa universidade, mesmo sabendo que somos uma população tão diversa no Brasil”, disse numa entrevista em seu gabinete.
A primeira turma de formandos da Unilab deve concluir o curso em agosto deste ano. São 120 alunos do bacharelado em humanidades, uma formação generalista que compreende os fundamentos das ciências humanas. A maioria pretende estender o curso para se especializar numa disciplina como sociologia, história ou pedagogia. Mas o diploma que receberão este ano já tem valor de mercado, de acordo com o coordenador do curso, Maurilio Machado Lima Junior. “O egresso tem como perspectiva de trabalho instituições culturais, arquivos públicos e ONGs que tratam de questões raciais, de gênero ou de história afro-brasileira, entre outras”, enumerou.
Lima Junior é um jovem carioca que estudou filosofia e está em Redenção desde 2012, numa vaga de professor de estética e história da arte. Às voltas com o planejamento das disciplinas a serem oferecidas no próximo período, ele falou do desafio de construir uma universidade. “Quase tudo está acontecendo pela primeira vez na Unilab”, disse. “Nunca houve o último período, não temos um modelo de diploma. Vamos ter que chamar alguém para fazer a programação visual.”
Parte da turma que vai se formar em agosto está matriculada na disciplina “Representação e dominação”, oferecida nas noites de sexta. O professor é Sebastião André Alves de Lima Filho, um sociólogo que nasceu e mora em Fortaleza – de carro, leva cerca de uma hora até a Unilab. Enquanto comia um salgado antes da aula, ele contou que a universidade está transformando a paisagem da região. “Tem indústrias querendo vir para cá, os aluguéis estão subindo”, disse. “A especulação imobiliária chegou a Redenção.”
Cerca de trinta alunos compareceram a sua aula naquela noite. Sebastião André exibiu para a turma Meu Coronel, um filme de 2006 que mostra cenas de tortura promovida pelo exército francês na Argélia nos anos 50. No debate ao fim da sessão, o professor falou da “legitimação política da violência pelo Estado” e do “estrago fulminante causado pelo colonialismo”. Quando perguntou à turma por que os europeus tinham colonizado a África, uma aluna de Guiné-Bissau no fundo da sala pediu a palavra e mencionou a mão de obra barata e a abundância de matéria-prima.
Era Honorata Dias, uma moça de 20 anos e tranças compridas nascida em Bissau, maior cidade de seu país, com cerca de 400 mil habitantes. Para se formar em humanidades, ela está preparando um trabalho de conclusão de curso sobre a implantação da lei que obriga o ensino da cultura e da história africanas nas escolas brasileiras. Mas não vai parar por aí. “Quero fazer licenciatura em sociologia e talvez mestrado antes de voltar para o meu país”, disse numa conversa antes da aula.
Como a maioria dos estudantes estrangeiros da Unilab, Honorata mora com colegas de seu país e é com eles que é mais enturmada. Entre si, só falam num crioulo que é a língua das ruas em Guiné-Bissau, mas não tem status de idioma oficial. A estudante disse que foi difícil se adaptar ao português do Ceará e que no início não entendia tudo o que era dito nas aulas – só no segundo trimestre se sentiu segura. Foi preciso também se adaptar à cidade pequena, à comida, aos costumes. “Aqui é uma realidade totalmente diferente”, resumiu.
A julgar pela experiência dela, o conhecimento mútuo entre os brasileiros e outros falantes do português começa mesmo do zero. A estudante guineense riu sonoramente ao se lembrar de uma pergunta que lhe fizeram quando chegou. “Queriam saber se a gente dormia com os leões e elefantes”, contou, estupefata. “Por que as pessoas andam a fazer esse tipo de pergunta?” Honorata atribui a ignorância ao estereótipo da África que circula por aqui. “Sou da capital e nunca vi um leão de perto”, fez questão de frisar. “Só na tevê.”