ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
A tinta de melancolia
Onde as esferográficas não têm vez
Malu Delgado | Edição 92, Maio 2014
O preço de uma caneta-tinteiro Harley-Davidson da Waterman é o pomo da discórdia entre as duas recepcionistas. “Trezentos reais por isso aqui?”, protesta uma delas, inconformada. A outra reage indignada: “Mas é uma Harley!” Enquanto as colegas travam o embate entre a pena e a galhofa, uma terceira atendente do Médico das Canetas limpa cuidadosamente as duas vitrines abarrotadas de Parkers, Sheaffers, Watermans, Crowns e Faber-Castells.
Assim que se entra naquele cubículo – localizado num calçadão que sai da Praça da Sé, em São Paulo –, é inevitável dirigir o olhar para as etiquetas de preço. Há peças para todo o tipo de colecionadores e amantes de canetas. Na vitrine, os produtos variam de 20 a 3 400 reais. Os que estão em busca de uma simples esferográfica se tranquilizam ao tomar conhecimento de que por meros 3 reais podem adquirir uma vira-lata, sem marca reconhecida. Roberto Marques, um senhor de 75 anos, é o fundador da loja na rua Barão de Paranapiacaba, conhecida como “rua do ouro”. Para chegar ao Médico das Canetas, é preciso driblar a insistência dos homens-sanduíche que convocam os pedestres ao comércio de ouro e joias.
Seu Roberto não titubeia quando questionado sobre a melhor caneta do mundo. “É a Parker 51, fabricada em 1947.” No site oficial da Parker, é citada como a “melhor caneta do século”, que inovou ao utilizar uma tinta que seca ao primeiro contato com o papel. Além de bonita, é boa e funciona por mais de cinquenta anos. “A empresa parou de fabricar porque dava prejuízo. Quem comprava uma não precisava de outra”, sentencia o proprietário. A peça, feita de resina plástica, era revestida em ouro. Poucos anos depois a Parker lançou a 21. “Os pais compravam a 21 para os filhos porque era mais barata. Quando se formavam, ganhavam a 51”, explica seu Roberto.
O “doutor” faz uma analogia entre seu ofício, iniciado aos 12 anos, e a prática da medicina: “Quando dá muito vazamento, é uma verdadeira hemorragia, tem sangue para todo lado.” Mas as comparações podem ir além. As tinteiro dispõem de um diafragma, que bombeia a tinta. A Parker, a queridinha do “médico”, foi a primeira a empregar borracha em seus diafragmas. Depois, segundo ele, a empresa adaptou-os, utilizando náilon emborrachado.
Ele guarda numa gaveta mais de 100 ferramentas. Em décadas de trabalho, obteve apenas uma chavinha oficial da Montblanc para desmontar as peças. “Consegui essa ferramenta original da Montblanc há cinquenta anos. É para abrir a bomba. As outras todas eu construí. A Montblanc é muito complicada.” A caneta mais cara do planeta “é boa, só não pode cair no chão”. A explicação sobre o preço exorbitante é singela: “É como a Coca-Cola, boa de propaganda.”
Seu Roberto se gaba em se dizer o único especialista no Brasil, mas não é toda cirurgia que cura o doente. “Essa Waterman vale uns 10 mil reais. Não consegui arrumar. Perdi um tempo danado, mas não tem jeito. O dono vai ter que trocar o jogo de pena”, lamenta. Em seguida, ele deplora o fato de “uma mercadoria tão cara ser tão ruim”. O proprietário, se quiser ver a peça funcionando, vai morrer com mais de 2 mil reais pelo conjunto de pena, ele avisa. É isso ou aposentar o objeto.
O perito faz cerca de dez consertos por dia, dos quais raros são aqueles sem êxito. A renda aproximada, só com as reparações, é de 25 mil reais, ele revela. De vida modesta, ele não amealhou fortuna. Em sua loja, além das três atendentes, trabalham sua filha Cristina, bem como Cícero Cristiano Luiz de França. Aos 39 anos, Cícero não é da família, mas é o único que poderá levar adiante o legado de seu Roberto. Há 24 anos trabalhando lá, Cícero tornou-se mestre-caneteiro. As esferográficas são sua especialidade, já que o titular tem afeição especial pelas tinteiro. Aqui, um aparte peremptório do expert: “Nenhuma esferográfica é caneta.”
O aprendiz trabalha calado numa mesinha ao lado do mestre. Os dois podem ficar horas em silêncio, concentrados, montando e desmontando suas penas. “Quando estou aqui, esqueço o resto do mundo. Pode explodir a Rússia ou a Ucrânia”, brinca seu Roberto, que de vez em quando dá “um Google” para se atualizar. Mas e-mail ele nunca escreveu. E o apaixonado por canetas também não é exímio missivista. “Cartas, só mesmo para a namorada.” Coleção de canetas? Nenhuma. E ele aproveita para confessar que “não tolera” colecionador. “Colecionador não entende nada e acha que entende. Me dá até raiva. Não suporto. E eles sempre reclamam do preço do conserto.”
Em outra confidência, o “doutor” revela que era orgulhoso demais e proibia o uso de Bic no balcão. Hoje admite que é a melhor das esferográficas e rendeu-se até às “chinesinhas”.
O negócio vai sobreviver, prevê o especialista, mas o movimento caiu. Ele atribui à política. A vida não anda boa para ninguém no comércio, observa. Além de fazer os reparos, vende peças que ele mesmo reformou, e também cargas, tinteiros, lapiseiras e produtos afins. As vendas ajudam a incrementar o orçamento para pagar o aluguel de aproximadamente 7 mil reais por mês.
O estabelecimento funciona desde 1958, mas seu Roberto começou a trabalhar antes, na relojoaria do tio, em 1952. A primeira loja não tinha um nome muito atraente: Posto Especializado em Conserto de Caneta. Um amigo dele, de Manaus, sugeriu mudar para O Médico das Canetas e se encarregou de fazer as placas. Os médicos que circulavam pelo Centro paulista não gostaram do que viram e o ameaçaram até com um processo por apropriação indevida da profissão. Para encerrar logo a conversa, o Doutor Caneta alegou que nesta vida há quem conserte gente e quem conserte caneta. Coube a ele integrar a segunda categoria.