─ Estranho! Tenho a sensação de que não são eles que estão vindo, mas nós que estamos indo! ILUSTRAÇÃO: ©ANGELI_FOLHA DE S.PAULO_DEZEMBRO DE 2005
Piketty e nós
Livro de economista francês reforça a ideia de que é preciso conhecer melhor o topo da pirâmide social para explicar a dinâmica da desigualdade brasileira
Marcelo Medeiros C. S. | Edição 92, Maio 2014
Thomas Piketty foi catapultado para o mundo das estrelas com a recente tradução para o inglês de seu livro O Capital no Século XXI. Por semanas na lista dos mais procurados da Amazon, atingiu dimensões virais e virou assunto de blogs, tuítes e programas de televisão. Vendeu, em um mês, mais do que qualquer outro livro da Harvard University Press em 101 anos. Nenhuma obra de economia teve um histórico tão explosivo. O Capital original, aquele com K, mudou o mundo, mas Marx já estava morto quando o livro terminou de ser publicado.
Seguramente esse é o livro de economia mais debatido dos últimos anos. Mobilizou comentários públicos e resenhas dos principais especialistas de todo o mundo, incluindo vários ganhadores do prêmio Nobel. O que não deixa de ser surpreendente, pois nenhum dos livros anteriores de Piketty recebeu tamanha atenção, nem mesmo a versão francesa de O Capital no Século XXI, publicada no ano passado.
Para o público americano, Piketty é o francês certo escrevendo o livro certo no momento certo. Com a desigualdade subindo rapidamente nos Estados Unidos, o slogan We are the 99% encontrou eco em seu trabalho: ele mostra que o 1% mais rico responde por uma fração gigantesca da desigualdade de renda e determina sua evolução no tempo. Para a Europa, ele anuncia os ventos que virão caso essa desigualdade não seja controlada. Para os países em desenvolvimento, deixa o aviso de que, se as coisas estão ruins, ainda podem piorar.
É inegável que há algum modismo por trás de todo esse sucesso. Mas achar que o estudo da economia está sendo sacudido dessa forma apenas como resultado de uma conjunção favorável de astros é subestimar o conteúdo do trabalho. Piketty é brilhante. Mas é, sobretudo, um pesquisador incansável. Numa época em que cientistas correm apressadamente em busca de publicações, ele foi um maratonista: determinou um objetivo de longo prazo, manteve a respiração e não perdeu o ritmo. Esse livro foi construído no decorrer de vinte anos.
Todos que chegaram a profeta começaram como hereges. Enquanto muitos economistas acham natural fazer perguntas para as quais já há respostas apenas para exercitar suas habilidades técnicas, Piketty foi tratar do tema mais precioso, espinhoso e incerto da economia política, a distribuição da riqueza. E fez isso cometendo heresias para a maior parte das seitas de economistas: o autor francês abomina a matematização excessiva, a pretensão cientificista e os jargões. Diante das controvérsias entre teorias, a fórmula mais repetida em seu livro é “vejamos os fatos”. Seu trabalho traz a história e a análise de longo prazo para o núcleo da teoria econômica, tal como fizeram os grandes pensadores no passado. Nisso ele não é único, mas está entre os melhores.
O economista mais influente do século XX, John Maynard Keynes, virou as ideias de Jean-Baptiste Say de ponta-cabeça. Ao fazê-lo, mudou a forma como entendemos a dinâmica das economias nacionais. Say argumentava que, em uma fase de depressão da economia, o importante é produzir ainda mais; Keynes inverteu o argumento, defendendo quea solução nesse caso é criar políticas que aumentem o consumo, e não a produção. Com Piketty, a reviravolta partiu das ideias de Simon Kuznets ou, mais exatamente, de uma interpretação posterior dessas ideias, a “curva de Kuznets”.
Em 1954, Simon Kuznets, um dos mais importantes economistas americanos, formulou a tese de que, na história das sociedades em industrialização, a desigualdade tenderia a subir por algum tempo, até atingir um ponto máximo, a partir do qual passaria a diminuir, contínua e naturalmente. Por trás disso estariam dois mecanismos fundamentais. O primeiro deles é a transição de uma economia tradicional para uma economia moderna. Com o início da modernização, a economia tenderia a dividir-se em dois grandes setores, um tradicional, mais pobre, e um moderno, mais rico, e isso aumentaria a desigualdade. À medida que a industrialização se generalizasse, os trabalhadores migrariam, abandonando os setores tradicionais em direção aos modernos, e com isso a desigualdade voltaria a ser reduzida. O segundo é o efeito igualitário da democracia. Para Kuznets, sociedades modernas se organizariam como democracias. A igualdade formal da política democrática se traduziria em políticas de promoção de igualdade econômica, como, por exemplo, o aumento da tributação sobre o capital e sobre as heranças. Combinados a outros efeitos de menor importância, a modernização e a democracia resultariam em menor desigualdade no longo prazo.
Em um gráfico que representasse a evolução da desigualdade no tempo, esse aumento seguido de queda traçaria uma curva em forma de U de cabeça para baixo. Essa imagem ficou conhecida como a “curva de Kuznets”. Embora o próprio autor tivesse reservas sobre a generalização dessa ideia, durante a Guerra Fria seus sucessores trataram-na como uma lei inexorável. Descartaram do esquema original de Kuznets o papel dos mecanismos democráticos de controle da economia e passaram a sustentar que os mecanismos de mercado da modernização eram uma panaceia para a desigualdade. No debate ideológico sobre a dinâmica do capitalismo, a curva de Kuznets fornecia uma visão harmônica e otimista: dias melhores virão. Os brasileiros conhecem bem essa promessa dos tempos da ditadura, quando ouviram que depois que o bolo crescesse ele seria distribuído.
Muitos já haviam avaliado o U invertido e apresentado evidências de que a curva de Kuznets era mais uma profissão de fé, não havendo nada que indicasse que um dia a desigualdade cairia de forma inelutável. Piketty fez mais do que isso. Reuniu, em um trabalho exaustivo de coleta de informações sobre tributos, heranças e registros de salários, uma série histórica mostrando que, em praticamente todos os países do mundo desenvolvido, ocorreu o oposto: a desigualdade, que havia caído entre a primeira e a segunda guerras, voltou a subir a partir da década de 80. E tudo isso com concentração de renda entre os mais ricos, que ocupam o topo da pirâmide. Ou seja, ele reinverteu o U invertido, com todas as implicações disso para a crença de que caminhamos rumo a um mundo mais igualitário.
Em 18 de abril, Piketty lançou seu livro em Harvard. O auditório estava cheio, as pessoas se amontoavam na porta para assistir à apresentação. Em Berkeley, do outro lado dos Estados Unidos, uma equipe de pesquisa longe dos holofotes mantinha seu trabalho de rotina por meio de seminários. Apresentavam seus resultados Olivier Godechot, professor da Sciences Po em Paris, que estuda altos salários no setor financeiro, e Gabriel Zucman, professor da London School of Economics, um dos responsáveis pelos estudos sobre concentração do capital que fundamentam a primeira parte do livro de Piketty. Na plateia, Emmanuel Saez, professor de Berkeley e coautor dos principais estudos de Piketty.
Seminários como esse vêm ocorrendo há anos em vários lugares do mundo. Piketty não trabalhou sozinho. Seu sucesso é resultado de uma nova tendência nas ciências sociais, a produção em grandes grupos de pesquisa substituindo a produção artesanal individual, no rastro do que acontece em outras áreas, como biologia e física. Liderando o grupo esteve sir Anthony Atkinson, um simpático e discreto senhor de 69 anos, grande especialista em desigualdade e precursor do tipo de estudo feito por Piketty. Os tempos do Marx solitário na biblioteca do Museu Britânico se foram. O Capital no Século XXI é derivado do trabalho de mais de vinte cientistas de primeira linha, municiados por um pequeno exército de assistentes. Praticamente todos os dados do livro são produto conjunto dessa equipe, e sem o trabalho dessa elite de pesquisadores seria impossível chegar às generalizações de Piketty.
A edição francesa do livro tem cerca de mil páginas. É mais fácil errar do que acertar quando se tenta condensar algo dessa magnitude, mas eu vou tentar. De forma esquemática, o resumo da teoria é o seguinte: em todo o mundo, o capital é muito concentrado nas mãos de poucas pessoas; tal riqueza gera renda, na forma de aluguéis, dividendos, retornos financeiros – e a concentração aumenta ainda mais toda vez que esse rendimento do capital ultrapassa o crescimento da economia. Quando a concentração aumenta muito, começa a sobrar dinheiro. Algumas pessoas que não são capitalistas, como os executivos das empresas, têm maior facilidade para se apropriar desse dinheiro e fazem isso assim que possível, o que cria os supersalários dos trabalhadores ricos. Mas esses trabalhadores ricos não consomem tudo o que ganham, investem o que poupam e tornam-se também capitalistas. Como apenas uma parte do dinheiro que ganham vira consumo, a parte que chega aos trabalhadores mais pobres é ainda menor. Os mecanismos de acumulação são tão fortes, e os mecanismos de redistribuição tão fracos, que esse ciclo se repete indefinidamente se não houver algum tipo de intervenção.
Quando Piketty fala em “capital”, está se referindo à riqueza que gera mais riqueza, capaz de se reproduzir. A palavra, na origem, se referia às cabeças de gado, quando esse era um dos principais investimentos que as pessoas podiam fazer. Hoje o capital é investido de muitas outras maneiras, e se reproduz na forma de rendimentos de aplicações financeiras, de poupança, lucros comerciais e industriais e até mesmo aluguéis e provisões de fundo de pensão privados. Capitalista não é apenas o multimilionário que vive de rendas, mas todas as pessoas que em maior ou menor grau se beneficiam da renda do capital. Você pode eventualmente não ser um, mas certamente conhece vários.
Só uma parte pequena da população tem riqueza suficiente para reinvestir. O capital está concentrado entre os mais ricos. Este é o ponto de partida de Piketty. O passo seguinte é justamente o que levou Paul Krugman, ganhador do prêmio Nobel de 2008, a dizer que o autor francês elaborou uma teoria que se aproxima do Santo Graal da economia política: relacionar desigualdade com crescimento.
A desigualdade, diz Piketty, crescerá se a taxa de crescimento do capital – se os seus rendimentos – for maior que a taxa de crescimento das outras rendas, como as do trabalho. Ou seja, se uma parte muito concentrada da economia, o capital, crescer mais rápido que a parte bem menos concentrada, o trabalho, o resultado final será um aumento na desigualdade total.
Esse esquema teórico, porém, tem que enfrentar um problema. Nas estatísticas de distribuição de renda em todo o mundo, inclusive as que Piketty usa, a maior parte do 1% mais rico da população não é de capitalistas que vivem só de renda, mas de trabalhadores que recebem altos salários. A resposta do francês é a seguinte: esses trabalhadores são hoje a consequência, e amanhã serão a causa da concentração do capital e do aumento da desigualdade de renda. São consequência porque a concentração de capital permite a formação de grandes empresas, frequentemente monopólios. O volume de dinheiro controlado por elas é tão grande que algumas pessoas – seus dirigentes, sobretudo – têm facilidade para aumentar expressivamente seus salários, sem que isso afete seriamente as finanças das empresas.
É isso o que explicaria as altíssimas remunerações observadas entre gerentes de fundos de investimentos e executivos degrandes empresas nos Estados Unidos. O alto rendimento dessas empresas permite que uma parte diminuta de seus profissionais consiga aumentar muito seus salários e compensações. Os supersalários de hoje serão a causa de mais desigualdade amanhã – parte não consumida dessa renda será investida, tornando-se capital e realimentando o processo.
O horizonte que resulta desse esquema não é animador. Se nada for feito para controlar a desigualdade, ela continuará a aumentar, e a sociedade se tornará cada vez mais patrimonialista – comandarão a economia os proprietários, e não os produtores inovadores. Quanto mais a propriedade se tornar um fator dominante sobre a vida das pessoas, mais a riqueza que dela provém será capaz de influenciar a economia, mas também as ações de governo e a legislação. Como a concentração da riqueza afeta a dinâmica política e as oportunidades econômicas, seus resultados de longo prazo são difíceis de prever.
Piketty argumenta que os mercados não possuem nem os mecanismos nem os incentivos para frear esse processo. Ele precisa ser controlado por instituições, a começar pelo Estado. Em apoio a esse raciocínio, Piketty invoca a história de mais de vinte países: nos períodos em que os mercados são desregulados, a desigualdade aumenta; nos períodos em que são regulados, cai. Um debate que era antes travado de forma acalorada no terreno da especulação e da ideologia agora tem mais de 100 anos de estatísticas exaustivas como critério de desempate.
Há mais de duas décadas a desigualdade vem crescendo rapidamente nos Estados Unidos e na Inglaterra, e, em menor velocidade, em outros países desenvolvidos. Também cresce em países em desenvolvimento, como a Índia e a China. Por trás disso, diz Piketty, está o mecanismo que ele identificou: os rendimentos do capital são superiores ao crescimento da economia. O processo começou com a liberalização econômica, em especial com as reduções da progressividade dos tributos. Os Estados Unidos, que já tiveram a alíquota máxima de imposto de renda acima de 90% entre 1944 e 1964 – um período em que a desigualdade era baixa e o crescimento, alto –, reduziram suas alíquotas máximas para cerca de 40%. Também caíram radicalmente os impostos sobre heranças e a tributação sobre patrimônio. Nos países em que as mudanças foram menos radicais, a desigualdade não evoluiu tão rapidamente.
A principal solução de Piketty para isso vem no final do livro: tributos. Essa é, por sinal, a parte da ideia original de Kuznets que seus seguidores descartaram. Uma das maneiras de reduzir a desigualdade é montar um sistema tributário que seja capaz de, idealmente, estimular o investimento produtivo e, ao mesmo tempo, elevar a arrecadação do Estado – a fim de permitir gastos em educação, saúde e proteção social.
A ideia já havia sido apresentada em um livro anterior sobre a França, Pour une Révolution Fiscale, de Camille Landais, Piketty e Emmanuel Saez, publicado em 2011, mas agora a preocupação é global. Em poucas palavras, a recomendação é aumentar a progressividade do imposto de renda, elevando as alíquotas superiores e reduzindo as alternativas de dedução, e implementar um imposto global sobre o capital que alcançaria inclusive os paraísos fiscais.
O foco do livro são os ricos das economias da América do Norte e Europa Ocidental. A pergunta que imediatamente vem à cabeça é: “Isso se aplicatambém à América Latina?” A princípio parece que as coisas na América Latina são bastante diferentes – enquanto nos Estados Unidos a desigualdade subia vertiginosamente, em vários países latino-americanos ela começava a cair. No Brasil, houve euforia em relação a essa queda, inflamada pelo combustível das disputas presidenciais. Porém, agora que a redução da desigualdade brasileira dá sinais de desaceleração, parece mais claro que os ricos daqui também são muito importantes quando se quer entender o problema. Afinal, um dos fatores que frearam a queda ano passado foi exatamente o aumento da renda do 1% mais rico.
A análise de Piketty pretende ser universal. Ele fala de “leis gerais do capitalismo” com a naturalidade de um Newton tratando da gravidade. Sim, a teoria se aplica à América Latina, mas é bem possível que não completamente. O esquema básico de Piketty foi desenhado para tratar de um país ilhado em relação aos demais. Todavia, em todo o mundo, particularmente nas nações subdesenvolvidas e nas de pequeno porte, uma parte importante do capital em setores que tendem a concentrar muita renda pertence a outros países. Parte dos rendimentos de capital dos países em desenvolvimento é remetida ao exterior. É difícil medir exatamente quanto, mas um estudo de Gabriel Zucman calcula que 8% de toda a riqueza financeira global resultam de transferências de países pobres para países ricos – principalmente os Estados Unidos e aqueles na Zona do Euro – por intermédio de paraísos fiscais. Trabalhando em conjunto, Piketty e Zucman estimaram que um terço dos rendimentos de capital nos Estados Unidos vem de investimentos feitos em outros países.
Como parte dos rendimentos de capital é remetida ao exterior, é possível que a desigualdade não se altere depois da sua concentração. Ao remeter recursos ao exterior, as economias subdesenvolvidas exportam não só parte da sua riqueza e potencial de crescimento, mas, também, parte de sua desigualdade.
O único país latino-americano tratado nas análises de longo prazo do livro é a Argentina. Isso porque lá as estatísticas tributárias anônimas são públicas. A Colômbia recebe atenção, mas apenas para um período recente. No Brasil não é possível replicar o estudo, pois a concentração de renda nos dados tributários é tratada como um segredo. As poucas informações acessíveis datam da década de 90, quando a Receita Federal decidiu publicar relatórios com informações gerais sobre a distribuição da renda declarada, do patrimônio e dos impostos no Brasil. Os dados mostraram o que já se suspeitava: a renda era extremamente concentrada, o patrimônio ainda mais. O que não sabemos é como isso evoluiu desde então, pois a transparência durou pouco.
Ainda assim, a pesquisa sobre ricos no Brasil avança. Hoje está claro que ninguém precisa ser faraó para estar no topo da pirâmide social. De acordo com o Censo de 2010, quem tem salários de mais de 10 mil reais já pertence ao 1% mais rico da força de trabalho. Alguém pode até resistir a usar o termo “rico” para esse grupo, afinal nenhuma elite gosta de assumir publicamente que é elite, mas o fato indiscutível é que qualquer pessoa com essa renda está na ponta mais alta da distribuição de renda no país.
E o topo da pirâmide concentra renda. Muita. O Censo mostra que o 1% mais rico dos trabalhadores detém quase 17% de toda a renda do trabalho do país. O que os mais ricos recebem é mais do que recebe toda a metade mais pobre dos trabalhadores brasileiros juntos. Se considerássemos os rendimentos de capital, que o Censo capta muito mal, a concentração seria ainda maior. Ao que tudo indica, somos tão desiguais quanto outros países muito desiguais. Nos Estados Unidos, que usam dados tributários que captam melhor todas as rendas no topo da distribuição, o 1% concentra mais de 19% da renda. É evidente que para entender o que faz o Brasil ser tão desigual é importante saber o que faz os ricos serem ricos.
Parte da explicação reside na atuação do Estado. Temos um Estado com razoável capacidade para fazer investimentos em políticas públicas. Mas que usa uma parte pequena dessa capacidade para promover a igualdade. Proporcionalmente, o poder público contribui mais para as rendas dos 5% mais ricos do que para as rendas dos 50% mais pobres, mesmo depois de considerar as transferências da assistência social. Ou seja, por não ser suficientemente igualitarista, o Estado contribui para aumentar a desigualdade, em vez de minorá-la. Serviços públicos, como os de educação e saúde, melhoram o cenário, é verdade, mas não são suficientes para revertê-lo.
O imposto de renda, que no Brasil tem alíquotas ainda menores que as dos Estados Unidos, ajuda a frear os níveis de desigualdade, mas pouco. O imposto de renda brasileiro é bastante progressivo, mas limitado. Isso porque a carga do imposto de renda no país é baixa, ao contrário do que se costuma anunciar. “Escorchante” é um adjetivo que só se usa para tributos. Os dados de Piketty mostram que de escorchante o imposto de renda não tem nada: países desenvolvidos optaram por ter uma carga de impostos muito maior do que a nossa quando ainda estavam no nível em que estamos hoje. Além disso, enquanto esses países sempre taxaram patrimônio e heranças, no Brasil esses tributos são de pouca importância. Nos Estados Unidos, boa parte da educação pública é financiada com o equivalente do nosso IPTU, e a prática de doações a fundações é disseminada porque os impostos sobre heranças são expressivos.
Ao que tudo indica, a desigualdade entre os ricos e o restante da população é um tipo particular de desigualdade, bem mais particular do que a diferença entre pobres e não pobres. Aquilo que tradicionalmente se usa para explicar as diferenças de renda entre os 99% mais pobres não explica tão bem a desigualdade entre o 1% mais rico e os demais. Diferenças de escolaridade, por exemplo, permitem prever razoavelmente bem as desigualdades salariais para a população em geral. Mas, no caso dos ricos, esse poder explicativo é menor. Eles não são mais ricos apenas porque são mais qualificados. Ter uma educação de boa qualidade ajuda, mas não basta para levar alguém ao topo da pirâmide. Tampouco as justificativas convencionais para a riqueza são realmente capazes de explicar por que algumas pessoas estão no alto da distribuição da renda. Trabalhar duro ou ter menos filhos, por exemplo, não é o bastante para diferenciar os ricos do resto.
Uma pista forte vem dos estudos de mobilidade entre gerações no país: quem está entre os mais ricos de hoje quase sempre vem de famílias que já estavam entre as mais ricas no passado. A mobilidade social no país existe, mas é quase sempre de curta distância. Várias pessoas conseguem melhorar um pouco de vida, mas só muito raramente conseguem uma grande ascensão social. Isso também acontece entre os ricos: nem todos os ricos de hoje nasceram em berço de ouro, mas quase todos cresceram em famílias que viviam pelo menos confortavelmente. Essa reprodução resulta não apenas da herança de patrimônio, mas também de um sem-número de outras coisas (tempo livre, rede de relações sociais, hábitos culturais, mais chance de errar e recomeçar etc.) que abrem as oportunidades para que alguém seja rico – e que, de alguma maneira, têm relação com a riqueza das gerações passadas. Ao que parece, Piketty tem muita razão no que diz.
Apesar de todo o sucesso, O Capital no Século XXI também tem recebido críticas. Parte delas tem o mesmo caráter dogmático da doutrina da Guerra Fria que assumiu a previsão otimista da curva de Kuznets como uma verdade sagrada: não importa quantos dinossauros Piketty e seus colegas sejam capazes de desenterrar, está escrito que o mundo foi criado em sete dias e a terra que mana leite e mel nos aguarda. Digam o que disserem os mais de 100 anos de estatísticas do livro, dias melhores naturalmente virão e qualquer posição contrária a isso é uma heresia subversiva.
No entanto, a parte das críticas que realmente interessa é aquela que contrasta as ideias de Piketty com avanços recentes das ciências sociais. A desigualdade global, por exemplo, passa ao largo do debate do livro. O autor francês não é capaz de dar a devida atenção às pesquisas que revelam uma desigualdade entre países, tão ou mais importante que a desigualdade dentro dos países. Uma maneira de entender isso é observar o que acontece com o coeficiente de Gini, um índice comumente utilizado para medir a desigualdade de renda. O Gini do mundo é mais alto que o Gini de qualquer país isolado. Aqui, a solução proposta por Piketty para o problema da desigualdade falha. A tributação de um país retém os tributos dentro desse país e, portanto, não faz nada – ao menos diretamente – para reduzir a desigualdade entre os países. Ao tributar os ricos, o governo americano estaria tributando lucros que foram obtidos em outros países e trazidos aos Estados Unidos. Com isso, reduziria a desigualdade em seu próprio país, mas não no mundo.
O livro também subestima a importância de se comandar a economia por meio da política e das instituições. Há determinantes importantes da desigualdade que afetam diretamente quem ganha o quê na sociedade: as concessões públicas, a organização dos sindicatos, os subsídios diretos e indiretos à produção, a concentração na distribuição do crédito e da infraestrutura, o controle das remessas de lucros e os acordos comerciais internacionais, apenas para mencionar exemplos. Alguns desses fatores são citados, mas não são bem incorporados no diagnóstico, tampouco na solução proposta aos problemas que o livro identifica.
Politicamente, Piketty é bem-comportado, especialmente para o público americano, e talvez isso explique parte do seu sucesso. A proposta que faz para o problema da desigualdade está centrada na esfera da distribuição – tributos –, e não na esfera da produção – regulação direta. Piketty nem passa perto do impacto distributivo de medidas mais controversas, como a liberalização da migração internacional, o controle de setores estratégicos da economia, as políticas industriais, a redução da garantia de privilégios dada por patentes e até mesmo o uso da guerra para garantir preços estáveis de recursos energéticos. Dentro da academia americana até Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001, é mais radical do que ele. Se é verdade que, por um lado, tributos são uma ferramenta importante de controle da desigualdade na economia, por outro lado o foco em tributos é muito pouco para quem escreve algo com as pretensões de grandeza de Piketty.
Ele é bom para identificar o problema, mas não para encaminhar soluções. O fato é que as propostas do livro não são resultado de um debate tão longo, nem contaram com o apoio de uma equipe tão ampla e qualificada quanto a que fez o diagnóstico da dinâmica da desigualdade. Seu trabalho é primoroso e seu livro é um sucesso, mas teria sido glória maior para Piketty terminar seu livro seguindo o exemplo do autor de O Capital com K: as propostas de solução de Marx foram lançadas em outras obras, separando aquilo que é daquilo que deve ser.